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Procº nº 454/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Notificada do Acórdão nº 21/99, proferido nestes autos em 13 de Janeiro de 1999 (fls. 866 a875), que indeferiu a reclamação deduzida da decisão sumária lavrada pelo relator em 9 de Junho de 1998 (fls. 843 a 852), por via da qual se não tomou conhecimento do objecto do recurso desejado interpor do acórdão tirado pelo pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo em 16 de Abril de 1997 (fls. 769 a 780), veio a recorrente M..., Ldª, arguir a respectiva nulidade e, subsidiariamente, requerer a sua reforma.
1.1. No tocante ao vício de nulidade, disse, em síntese, que o aresto arguido continha fundamentos em oposição com a decisão, já que, muito embora aceitando que a desconformidade com normas constitucionais não tinha de se dirigir directamente a uma norma infra-constitucional, podendo traduzir-se numa determinada forma de interpretação, veio a decidir pelo não conhecimento do recurso fundado na circunstância de a recorrente, antes da prolação do aresto intentado recorrer, não ter assacado um vício de inconstitucionalidade a uma norma jurídica, mas sim a uma decisão jurisdicional. Assim, e na perspectiva da arguente, deparar-se-ia aqui com uma oposição dos fundamentos com a decisão, porquanto, de um lado, do conteúdo desta se retiraria que o vício de desconformidade com a Lei Fundamental se tinha de reportar à norma jurídica e já não a uma forma de interpretação normativa e, de outro, porque se não atentou em que, estando em causa um recurso jurisdicional, impugnando-se, pois, uma decisão judicial, se estava, afinal, a pôr em causa uma determinada forma de interpretação de uma dada norma jurídica.
De outra banda, segundo a arguente, o acórdão em causa ainda padeceria de um outro vício, também subsumível ao de nulidade, por isso que o mesmo se não pronunciou sobre questões de que deveria conhecer, quais fossem, justamente, as razões invocadas pela recorrente na peça processual consubstanciadora da reclamação que, em sua óptica, apontariam para que a mesma, antecedentemente ao acórdão querido impugnar, tinha posto em causa uma determinada forma de interpretação e aplicação da norma constante do nº 2 do artº 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
1.2. No que concerne ao pedido subsidiário de reforma do Acórdão nº
21/99, pedido esse estribado na alínea b) do nº 2 do artº 669º do Código de Processo Civil, a recorrente discreteou assim:-
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De facto, como se compendiou nos nºs 4 a 7 da reclamação (que se dão como integralmente reproduzidos aqui), e servindo-se do próprio texto da decisão reclamada, a requerente invocou em devido tempo, e nas peças processuais adequadas, a interpretação e a aplicação da norma jurídica em causa (o art. 4º, nº 2, do ETAF) em desconformidade com ao preceitos constitucionais invocados.
O uso, uma só vez, da expressão interpretação ‘errada’ (e não
‘errónea’, como por lapso se afirma no Acórdão) não pode ser dissociado do texto global de cada uma das peças processuais em causa, e do seu contexto global, e, por aí, se vê, com mediana clareza, que o que a requerente sempre questionou, repetida e constantemente, foi apenas a interpretação e a aplicação do art. 4º, nº 2, do ETAF, em desconformidade com os preceitos constitucionais invocados. Por isso, é manifestamente inverdade, inverdade essa que o exame atento dos autos não consente, afirmar--se, como se afirma no nº 2 do Acórdão sob censura, que, por uma vez que seja, ‘a recorrente apenas pôs em causa o concreto processo substantivo constante da decisão de que recorria’. A não haver um juízo pré-concebido sobre a decisão a tomar (no que sinceramente se não crê), essa afirmação só se compreende, em face do que resulta das peças processuais em questão, de um manifesto e evidente lapso de leitura e de interpretação daquelas peças.
Os elementos constantes do processo provam que a requerente pôs em causa a interpretação e a aplicação, pela decisão jurisdicional, do art. 4º, nº
2, do ETAF, não o processo substantivo daquela decisão, como o Acórdão sob censura entendeu. Se tivesse atendido a esses elementos, o Acórdão teria, pois, decidido em sentido oposto.
Por isso, encontra-se preenchida a previsão da al. b) do nº 2 do art.
669º do CPC, pelo que, com o fundamento referido, o douto Acórdão deve ser reformado, o que aqui se requere.
4. Mas há ainda um outro fundamento para a requerente pedir a reforma do Acórdão em apreço.
Perante as peças processuais em causa, só por manifesto lapso se admite, também (diz-se-o com igual veemência), a afirmação, contida no penúltimo parágrafo do Acórdão sob censura, de que o vício da incompatibilidade com a Constituição foi dirigido ‘a uma decisão jurisdicional’, visando-se com essa afirmação formar o juízo de que a requerente não pôs em causa a interpretação ou a aplicação da norma jurídica mas sim a decisão jurisdicional, em si mesma.
Também esta questão ficou clara e pormenorizadamente explicada nos citados nºs 4 a 7 da reclamação para a conferência. Estranha-se, por isso, a insistência nessa questão, que se tem de reconhecer, objectivamente, que está mais do que esclarecida neste processo. De facto, nos nºs 4 a 7 da reclamação, e dos trechos das peças processuais para onde aí se remete, resulta, com clareza e rigor, que a requerente nunca questionou a constitucionalidade da decisão jurisdicional em si mesma mas, sim, da interpretação e da aplicação que ela dá à norma, isto é, ao art. 4º, nº 2, do ETAF. E, óbvia e manifestamente, não podia ser de outra forma. Com efeito, uma vez assente que o vício de desconformidade com a Constituição pode ser imputado à interpretação ou à aplicação da norma jurídica (como mostrámos ser expressamente aceite pelo Acórdão sob censura, na sua fundamentação) essa imputação torna-se indissociável da decisão jurisdicional que interpreta e aplica a norma. Ou seja, é a decisão jurisdicional o agente da interpretação e da aplicação da norma em desconformidade com a Constituição e, por conseguinte, é aquela decisão o parâmetro necessário da interpretação e da aplicação em desconformidade com a Constituição.
Tudo isso já fôra sustentado e demonstrado na reclamação para a conferência, inclusive com remissão para as peças processuais respectivas, que foram apresentadas no Tribunal a quo. E caso a conferência tivesse levado isso em conta não teria, como decidiu no seu penúltimo parágrafo, que o vício de desconformidade foi dirigido à decisão jurisdicional em si. Isso, objectivamente, não é verdade e bole com os elementos carreados pela requerente nos locais referidos da reclamação dirigida à conferência.
Por isso, ao decidir que a desconformidade alagada pela requerente foi assacada à decisão jurisdicional em si, e não apenas à interpretação e à aplicação que ela dá à norma jurídica em causa, o Acórdão sob censura decidiu em sentido oposto àquele que é determinado pelos elementos que constam do processo, especificamente, dos nºs 4 a 7 da reclamação. Por isso, também aqui se encontra preenchida a previsão do art. 669º, nº 2, al. b), do CPC, com base no qual se requere a reforma do Acórdão.
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Cumpre decidir, começando pelas arguidas nulidades assacadas ao Acórdão nº 21/99.
2. Adianta-se, desde já, que a arguição em espécie não deve lograr deferimento.
De facto, é por demais óbvio que se não depara o vício segundo o qual o aresto em causa, após ter aceite que a inconstitucionalidade de uma dada norma pode reportar-se a uma certa forma de interpretação da mesma, veio a decidir que, no caso, o que a recorrente não fez foi assacar essa forma de invalidade a uma norma, o que apontaria (no entendimento da mesma recorrente) para que nessa decisão se estava a exigir que tal forma de invalidade devesse, e unicamente, ser dirigida à norma em si.
Na verdade, sublinhou-se no aresto em crise que, 'a recorrente, precedentemente ao acórdão tirado pelo pleno do Supremo Tribunal Administrativo, não assacou a qualquer norma constante do ordenamento jurídico infra-constitucional (ou a um qualquer modo interpretativo dela) um vício de desconformidade com a Lei Fundamental' (realce agora efectuado) e que '[n]ão pode, desta arte, dizer-se que a impugnante tenha, directa ou indirectamente, efectuado qualquer confrontação de uma interpretação normativa com a Constituição'. A conexão destas asserções, com aqueloutra, ínsita no penúltimo parágrafo do arguido acórdão, segundo a qual o 'vício de incompatibilidade com a Constituição não foi, deste modo, dirigido a uma norma jurídica' só pode, inequivocamente, significar que a então recorrente não cumpriu o ónus de, antes do acórdão querido impugnar, suscitar uma questão de enfermidade com o Diploma Básico da norma jurídica em causa, quer reportadamente a ela mesma, quer reportadamente a um qualquer modo pelo qual esse normativo foi interpretado.
Não foi, deste modo, no passo decisório do Acórdão nº 21/99, directa ou encapotadamente, exigido que a questão de inconstitucionalidade se devesse circunscrever à própria norma, afastando, assim, que essa questão pudesse recair sobre uma interpretação normativa.
2.1. No que toca à nulidade que, de harmonia com a arguente, seria consistente em, aceitando o acórdão que a questão de inconstitucionalidade poderia incidir sobre uma forma de interpretação de dada norma, e que a decisão, não obstante essa aceitação, veio a redundar na não tomada de conhecimento do recurso, pois que se não teria atendido a que era uma forma de interpretação normativa que estava em causa, também, neste ponto, não assiste qualquer razão à dita arguente.
Efectivamente, a razão de ser do decidido foi o juízo levado a efeito por este Tribunal e segundo o qual, antes da prolação do acórdão do pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, a então impugnante não assacou a uma qualquer norma, recte, à norma do nº 2 do artº 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ou, repete-se, a uma qualquer forma de interpretação dela), o vício de contraditoriedade com a Lei Fundamental, antes tendo posto em causa o processo subsuntivo (e não substantivo, como é referido no requerimento de arguição de que ora se cura) constante da decisão de que então se recorria, ou seja, o acórdão tirado na 2ª Subsecção daquela 1ª Secção em 19 de Dezembro de 1995, sem, por isso, questionar, do ponto de vista da sua compatibilidade constitucional, a forma pela qual foi, neste aresto, interpretada e aplicada a norma ínsita no preceito daquele nº 2 do artº 4º.
Vale isto, pois, por dizer que não há qualquer contradição entre o fundamento e a decisão. É que, se um dos requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, reside na suscitação, antes da decisão pretendida impugnar, da inconstitucionalidade de uma norma jurídica (ou de uma sua forma de interpretação), e não já a suscitação da inconstitucionalidade de um outro qualquer acto do poder público como, verbi gratia, as decisões judiciais consideradas qua tale, se o recorrente vem imputar
à decisão esse vício, não o imputando concretamente à norma (ou a uma sua interpretação tal como a que teria sido efectuada, in casu, no acórdão de 19 de Dezembro de 1995), então isso significa que haverá de concluir, como nos presentes autos se concluiu, que se não congregava aquele requisito e, consequentemente, se não poderia tomar conhecimento do objecto do recurso.
2.2. Afirma a ora arguente que o Acórdão nº 21/99 é nulo porque se não pronunciou sobre questões das quais tinha de tomar conhecimento, questões essas que, em direitas contas, seriam as que se ligavam com aquilo que a referida arguente diz ser uma demonstração - que produziu na reclamação da decisão sumária - de que, efectivamente, suscitou o vício de desconformidade com a Constituição de uma dada interpretação do nº 2 do artº 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Uma vez mais se não reconhece razão à arguente.
O arguido aresto e, bem assim, a decisão sumária sobre a qual se pronunciou e em cujos fundamentos, inter alia, se estribou, demonstram, isso sim, no ponto de vista deste Tribunal, que a arguente, no recurso para o pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, não colocou em causa, em sede de conformidade com a Constituição, a norma constante do aludido nº 2 do artº 4º ou a interpretação que teria sido acolhida pelo acórdão tirado em 19 de Dezembro de 1995 pela 2ª Subsecção daquela 1ª Secção.
A arguente pode não concordar com um tal juízo. Porém, essa não concordância não é, de todo em todo, motivo para inquinar o acórdão em causa com o vício de nulidade previsto na alínea d) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil, ao esgrimir agora, como esgrime, com a circunstância de ter provado que, adequadamente, levou a efeito uma tal suscitação.
3. Pelo que respeita ao pedido subsidiário de reforma, efectuado, em súmula, com base em que o processo continha elementos que, por si só, levariam à conclusão de que a suscitação da questão de inconstitucionalidade dirigida a uma forma de interpretação da norma do nº 2 do artº 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais teve realmente lugar por banda da arguente, limitar-se-á este Tribunal a dizer que reitera o que ficou consignado na decisão sumária e no arguido Acórdão nº 21/99. Ou seja: que entende que os elementos constantes dos autos não apontam para que, da parte da então recorrente, tivesse havido, de modo directo ou indirecto, explícito ou implícito, a colocação de uma questão de desconformidade com a Lei Fundamental de determinada norma ou de uma sua interpretação, antes esse vício sendo imputado ao próprio acórdão da 2ª Subsecção da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo.
Foi este o juízo que este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa levou a cabo de acordo com os elementos objectivos que dos autos constavam, não obstante a arguente vir agora argumentar que, na sua óptica, 'objectivamente não é verdade' que 'o vício de desconformidade foi dirigido à decisão jurisdicional em si'.
Se, em tese, se não pode negar que o agente de uma interpretação normativa pode ser uma decisão jurisdicional, igualmente se não deve negar que, tendo em conta que, como o nosso sistema constitucional e legal elege como objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade normas jurídicas (aqui se incluindo uma sua interpretação), o vício da invalidade constitucional, para efeitos de uma forma de impugnação como a que se postava nos autos, há-de ser reportado à norma (ou à interpretação) e não à decisão que a aplicou, sob pena de, trilhando-se esta última via, se não conhecer do objecto do recurso.
Esta a postura que, desde sempre, tem sido seguida pela jurisprudência deste Tribunal e que, pelo acórdão sub specie, também foi enveredada, sem que à sua decisão estivesse subjacente qualquer 'juízo pré-
-concebido'.
De onde não dever lograr deferimento o pedido de reforma solicitado.
4. Em face do exposto, indefere-se a arguição de nulidades fundada nas alíneas c) e d) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil e, bem assim, indefere-se o pedido de reforma formulado com base na alínea b) do nº 2 do artº 669º do mesmo corpo de leis.
Custas pela peticionante, fixando-se em 10 unidades de conta a taxa de justiça. Lisboa, 16 de Junho de 1999- Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida