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Procº nº 247/99.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 16 de Março de 1998, que reviu e confirmou a sentença lavrada em 4 de Julho de 1996 no
7º Tribunal Superior Cível, Mercantil e do Trânsito da Circunscrição Judicial da
Área Metropolitana de Caracas, e por intermédio da qual foi N... condenado a pagar à F..., SA, a quantia de 7.999.654 bolívares, acrescida de juros, recorreu o requerido N... para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo que, na alegação que produziu, formulou as seguintes «conclusões»:-
'a) a sentença cujo reconhecimento e revisão se pretende obter, emana de um país, não signatário da Convenção de Bruxelas, e como tal, não deve ser objecto apenas de formal reapreciação;
b) ora, nunca tendo sido sequer citado o recorrente, ou intervido no mesmo processo, não pode considerar-se terem sido respeitados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, e nos termos do disposto na alínea e) do art. 1096 do CPC;
c) nem se diga que, com a citação edital, e nomeação de um defensor oficioso, foram tais princípios respeitados, pois, sómente com a efectiva intervenção do recorrente no processo é que é que tais princípios têm justificação;
d) aliás, é facil constatar que a falta de citação do recorrente, foi propositada, pois bem sabia a recorrida da morada do recorrente, e ao omiti-la o fez de forma a impedir poder valer os seus direitos no processo;
e) daí que, haveria falta de citação, nos termos do disposto no artº
195, alínea c) do CPC, nulidade esta que é do conhecimento oficioso, e desde logo violados aqueles princípios;
f) são fundadas também as dúvidas sobre a inteligência da decisão, atentos os factos referidos naquele documento;
g) o direito privado português, com a amplitude hoje consagrada pela sua adesão á Comunidade Europeia não permite reconhecer a dita confirmação, que a ter lugar até conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional;
h) a dita decisão, a ser emanada de um país da comunidade, não seria passível de confirmação, atenta a violação ao disposto no nº 2 do artº 27º do Capítulo VIII, do Código da União Europeia, repugnando pois que o possa ser de outro país, e mormente quando não existe reciprocidade, reforçando o dito entendimento de que, a decisão do acordão recorrido o é incompatível com os princípios de ordem pública internacional que norteiam o Estado Português;
i) bem como, se ofenderiam princípios constitucionalmente consagrados, tais como o da soberania e legalidade, (art. 3), as tarefas fundamentais do Estado, (artº 9), o da igualdade, (artº 13 e 14) e acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, (artº 20), todos da Constituição da República.
j) o acordão recorrido violou pois assim aquels supra citados preceitos, e bem ainda o disposto nos artigos 1094, 1096, 1101, e 659, todos do C.P. Civil,'
Por outro lado, no «teor» da aludida alegação, não se descortina qualquer menção de onde se extraia, directa ou indirectamente, implícita ou explicitamente, a arguição de uma desconformidade com a Lei Fundamental dirigida a norma ou normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional.
Na verdade, e como resulta a referência das transcritas «conclusões» i) e j), a violação da Constituição que ali unicamente se lobriga é a de o ora reclamante ter sustentado que o aresto lavrado na Relação do Porto ofendeu os artigos 3º, 9º, 13º, 14º e 20º do Diploma Básico, sendo que, no mencionado
«teor» é, em dados passos, dito:-
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Na verdade, a falta de citação do réu, viola, desde logo, o princípio do contraditório, sem prejuízo de o vício poder ser sanado pela comparência voluntária daquele no processo, seguida de uma tomada de posição quanto ao fundo da causa .(...)
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Foi por certo para evitar estas situações, fáceis por demais países que não têm a tradição jurídica europeia, que a citada alteração pretendeu salvaguardar a defesa dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, que, no caso em apreço, também foram de forma irrefutável se constata não terem sido respeitados.
Nem se diga que, face à citação edital (!?), e á nomeação de um defensor oficioso, tais princípios foram cumpridos: desde logo porque, não tendo tido conhecimento dos factos alegados, não intervindo nos autos vez alguma, fosse de que forma fosse, não tendo sequer sido contactado pelo seu defensor oficioso, apenas teoricamente teriam sido respeitados tais princípios, ao arrepio daquela determinação que, no nosso entender, pretende uma tradução efectiva e real destes princípios, para que se faça, sempre, boa e sá justiça, com respeito mais material que formal dos determinativos legais.
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Daí que naturalmente, e face á citada alteração processual, se deva ter uma concepção ampla destes princípios, em ordem a que se deva recusar aqueles pedidos, quando, como o caso em apreço, não teve, fosse de que forma fosse, efectivamente, intervenção neles o cidadão português, de resto, no respeito, pelo menos literal, da proposta de alteração apresentada por aqueles Mestres de Direito.
Na base de tal entendimento foi que se alegou a violação dos princípios constitucionais, na eventualidade de se decretar a dita confirmação e revisão de sentença estrangeira, pois, de outro modo, permitir-se-ia a condenação de um cidadão nacional, no seu país, sem que o mesmo pudesse valer-se dos seus direitos de cidadania nacional e europeia, ofendendo-se eventualmente até princípios constitucionais de soberania e legalidade, em detrimento até de uma decisão proferida por país que não acolhe sequer a reciprocidade deste tratamento, estabelecendo-se insensatamente um princípio de maior flexibilidade nas ditas pretensões, por não ser aquele até um dos signatários da Convenção de Bruxelas, à qual está o Estado Português vinculado por tratado de adesão.
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Daí que, também seja feito apelo ao bom sentido da interpretação dos princípios gerais a que deve obedecer a revisão e confirmação do mesmo documento, em ordem a que, sem margem de dúvida, se respeitem os princípios jurídicos em que assenta a ordem pública portuguesa, com a actualidade que lhe foi transmitida pela adesão á nova comunidade europeia, e seu enriquecimento em termos jurídicos.
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Por acórdão de 12 de Novembro de 1998, negou o Supremo Tribunal de Justiça provimento ao recurso, o que motivou que o então recorrente fizesse juntar aos autos um requerimento, que se transcreve:-
'N..., recorrente no processo à margem identificado, e em que é recorrida, F..., C.A.. não se conformando com o aliás, douto, acordão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, dele vem interpôr recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artº 70º alíneas a) a g) da Lei 28/82, de 15 de Novembro, por este, em concreto, violar o princípio do contraditório e de igualdade de armas consagrado nos artº 3º, 9º, 13º, 14º e 20, todos da Constituição da República Portuguesa.
Entende o recorrente, que a citação edital, tida como suficiente no processo cuja revisão a recorrida solicitou, não é suficiente para acautelar o seu direito e acesso
à justiça, plasmados nos artºs supra citados da Lei Fundamental, nomeadamente não foi acautelado o princípio do contraditório, princípio esse basilar de um Estado de Direito Democrático como se quer que seja Portugal!'.
E, num outro requerimento posteriormente junto, veio, à guisa de esclarecimento, indicar que:-
'........................................................................................................................................................................................................................................................................................ o recurso interposto para o Tribunal Constitucional é efectuado ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artº 70 daquele diploma legal, por no entender do recorrente o mui douto acordão do STJ, violar em concreto o princípio do contraditório e da igualdade consagrado nos artºs 3º, 9º, 13º, 14º, e 20, todos da Constituição da República Portuguesa.
O ora recorrente nas suas alegações interpostas para o Supremo Tribunal de Justiça, nas alíneas a), b); c); d); e) e i), suscita o problema da desconformidade da decisão do Tribunal da Relação do Porto, com o plasmado em tais normativos legais, mas no douto acordão do Supremo Tribunal de Justiça, entende-se que não existe violação dos princípios supra referidos, ou seja, do contraditório e da igualdade. Daí o presente recurso para o Tribunal Constitucional'.
Por despacho de 21 de Janeiro de 1999, o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso, por ter entendido, em síntese, que o impugnante, no transcrito requerimento e, bem assim, naqueloutro, de que parte se encontra também transcrita, não indicou qual a norma jurídica aplicada pelo acórdão recorrido e cuja inconstitucionalidade pretendia que fosse apreciada pelo Tribunal Constitucional, antes tendo imputado um tal vício ao acórdão proferido pela Relação do Porto e ao acórdão intentado recorrer.
2. É deste despacho que vem deduzida a vertente reclamação, dizendo-se, inter alia, no respectivo requerimento dela consubstanciador:-
'Conforme flui abundantemente dos autos, a reconhecer-se a douta decisão estrangeira esta decisão violaria princípios constitucionais, e que desde início foram publicitados.
De resto, as próprias decisões recorridas, quer do Tribunal da Relação do Porto, quer do Supremo Tribunal de Justiça, são unânimes em apreciar a referida alegação e constitucionalidade alegada, embora entendam a não reconheçam.
Mas se na verdade existem questões que devem ser conhecidas pelo Tribunal Constitucional estes autos integram esse rol, e com o devido respeito por melhor opinião, e daí e ter sempre alegado, provavelmente não com a exaustão e profundidade devida, a questão cimeira da constitucionalidade.
É ou não verdade que, o reconhecer-se uma decisão estrangeira, emanada e um País onde sem sequer existe reciprocidade, e onde não teve cidadão nacional possibilidade de aí intervir, se viola o princípio hoje aceite na Comunidade Europeia de que, qualquer decisão que abranja os cidadãos da mesma deve possibilitar o princípio efectivo do contraditório, e que este não foi respeitado e na verdade, como flui dos autos, nenhuma intervenção teve, ou foi possibilitada ao cidadão português?
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Ora, face ao não reconhecimento dessas questões constitucionais levantadas, desde início, natural parece que deva caber ao Tribunal Constitucional a última palavra na apreciação desta questões constitucionais, cuja total alegação o deve ser feita perante tal Tribunal, e nas Alegações e não no requerimento de recurso, pois a ser assim, desde logo se permitiria que o STJ apreciasse tais questões e se superiorizasse aquele Tribunal, que, em última instância deverá dizer se sim ou não a douta decisão violou ou não as regras e princípios constitucionais.
De resto, e no modesto entender do recorrente, uma vez que incontroversamente foram alagadas tais violações de princípios Constitucionais, desde início, sempre cabe recurso para o Tribunal Constitucional, que tem jurisdição não só sobre normas ou preceitos que o são inconstitucionais, como decisões que contrariam aquele preceito constitucional, e daí caber no âmbito do recurso...’a questão da inconstituionalidade ou da ilegalidade suscitada...artº
71 da supra citada Lei).
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Tendo tido «vista» dos autos, pronunciou-se o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto em funções neste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa em termos de defender a improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
II
1. É por demais óbvia a sem razão do reclamante.
Na verdade, para que a vertente reclamação merecesse atendimento, mister seria que, no caso, se congregassem os requisitos do recurso a que alude a alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82.
De entre eles, e como facilmente decorre do estatuído em tal disposição, aliás em consonância com o que se prescreve na alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição, avulta o de impender sobre quem pretende lançar mão dessa forma de impugnação o ónus de, antes do proferimento da decisão desejada recorrer, suscitar a questão de desconformidade com a Lei Fundamental por parte de normas jurídicas.
Significa isso, indubitavelmente, que a Constituição e a lei elegeram como objecto desse tipo de recurso as normas jurídicas e não outros actos do poder público como, por exemplo, as decisões judiciais qua tale consideradas. O mesmo é dizer, pois, que, se a violação de normas ou princípios constitucionais é assacada à decisão jurisdicional e não à norma ou às normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional que constituíram o suporte dessa decisão, então não se poderá ter como verificado um dos requisitos a que deve obedecer o recurso a que se reportam as ditas alíneas, números e artigos.
Tem, aliás e neste particular, sido seguida por este Tribunal uma jurisprudência pacífica, de há muito consolidada e já consabida, pelo que até seria incurial efectuar-se aqui a citação qualquer aresto exemplificativo dessa postura.
2. Ora, como deflui do relato que acima se deixou feito, é inquestionável que o ora reclamante, antes da prolação do acórdão pretendido colocar sob a censura deste Tribunal, nunca imputou a uma qualquer norma jurídica o vício de desconformidade com a Constituição, antes tendo sustentado que foi o próprio acórdão tirado na Relação do Porto - que veio a impugnar perante o Supremo Tribunal de Justiça - que violou, ele mesmo, determinados normativos ou princípios constitucionais. E idêntico posicionamento tomou no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, desta feita tendo por alvo o acórdão lavrado no mais alto tribunal da ordem dos tribunais judiciais.
Consequentemente, e para além do mais que porventura se poderia dizer, falece, in casu, um dos requisitos a que deve obedecer o recurso a que alude a já mencionada alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82.
Neste contexto, o recurso em questão não poderia ser admitido, como o não foi. De onde dever a presente reclamação ser perspectivada como conduzindo ao respectivo insucesso.
III
Em face do que se deixa dito, indefere-se a reclamação, condenando-se os recorrentes nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 16 de Junho de 1999 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida