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Proc. nº 323/97
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. M... recorreu, junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, do acto tácito de indeferimento do pedido de promoção à categoria de liquidadora tributária principal, do Director-Geral das Contribuições e Impostos (=DGCI). Por sentença de 24 de Outubro de 1995, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa concedeu provimento ao recurso, decidindo que a recorrente, tendo completado, em 25 de Outubro de 1989, três anos de serviço na categoria de liquidadora tributária de 1ª classe e tendo obtido classificação superior à média legalmente exigida, reunia os requisitos necessários ao deferimento do pedido de promoção apresentado ao Director-Geral das Contribuições e Impostos, de acordo com os artigos 45º, nº 1, alínea c), e 114º do Decreto Regulamentar nº
42/83, de 20 de Maio, e 1º do Decreto-Lei nº 199/85, de 25 de Junho.
O tribunal afastou a argumentação do DGCI no sentido de não conceder a promoção em virtude do disposto no artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 187/90, de 7 de Junho, conjugado com os artigos 12º e 15º do mesmo diploma; concluiu que o legislador, tendo extinguido a categoria de liquidador tributário principal, com efeitos a partir de 1 de Outubro de 1989, retirou à recorrente o direito a ser promovida a essa categoria:
'Como resulta da matéria dada como provada, a recorrente pretende a sua nomeação como liquidador tributário principal, com efeitos a 25.10.89. Ora, tal categoria foi extinta pelo art.º 12º do Decreto-Lei nº 187/90, de 7 de Junho. Uma vez que o citado diploma legal produz efeitos a partir de 1.10.89 no que respeita à matéria de incidência remuneratória (cfr. artº 15º), temos que em relação a promoções para categorias extintas apenas entrou em vigor no 5º dia posterior ao da publicação, ou seja, em 12.6.90. Por outro lado, e de acordo com o disposto nos artºs 45º, nº 1, al. c), e 114 do Decreto Regulamentar nº 42/83, de 20 de Maio, estamos perante uma promoção automática, verificados os respectivos pressupostos. Daí que por mero efeito da lei, a recorrente em 25.10.89 tivesse inscrita na sua relação de emprego público o direito a ser promovida à categoria de liquidador tributário principal.'
2. A DGCI interpôs recurso desta sentença para o Supremo Tribunal Administrativo. Na sua contra-alegação de recurso, M... invocou a inconstitucionalidade das normas dos artigos 3º, nº 2, 12º e 15º, do Decreto-Lei nº 187/90, de 7 de Junho, desde que lhes seja atribuída eficácia retroactiva. Nas suas palavras,
'Com efeito, considerando que o direito fundamental de acesso à função pública, contemplado no artº 47º nº 2 da Constituição, abrange igualmente, o direito às promoções dentro da carreira, de tal facto decorre que normas restritivas de um tal direito que pretendam, como sugere a Autoridade Recorrente, retroagir os seus efeitos a momento anterior à sua aplicação, violariam frontalmente o artº
18º nº 3 da Constituição [...].'
O Supremo Tribunal Administrativo concedeu provimento ao recurso. Considerou que, tendo o legislador feito repercutir os efeitos do Novo Sistema Remuneratório (NSR) a 1 de Outubro de 1989 (artigo 15º do Decreto-Lei nº 187/90)
– facto que não configura, para o Supremo Tribunal Administrativo, verdadeira retroactividade, uma vez que o Decreto-Lei nº 353-A/89, de 18 de Outubro, já previra que a reforma do sistema retributivo se reportasse a 1 de Outubro de
1989 (artigo 45º) –, e tomando em consideração o disposto nos artigos 3º, nº 2, e 12º do mesmo diploma, a recorrente não tinha qualquer direito, nem a ser promovida, nem, consequentemente, a que a transição para a nova escala salarial se efectivasse com base em categoria superior àquela que tinha em 30 de Setembro de 1989:
'Em tal diploma [Decreto-Lei nº 353-A/89, de 18 de Outubro], no seu artº 45º, também se previu que o novo sistema retributivo para todas as carreiras (as já reguladas e as a regular posteriormente) produzisse efeitos a partir de 1.10.89. Por tal motivo é que no artigo 15º do DL 187/90 se estabeleceu a sua produção de efeitos a partir de 1.10.89, no que toca à matéria de incidência remuneratória; por idêntico motivo é que, no nº 2 do art. 3º se estabeleceu que «a transição para a escala salarial prevista no mapa I anexo ao presente diploma dos funcionários com as categorias de liquidador tributário... far-se-á para o escalão correspondente à categoria a que tinham direito a 30 de Setembro de
1989, nos termos do disposto nos arts. 45º, 46º, 48º e 114º do Dec. Reg. 42/83, de 20-5, no nº 1 do artº 45º do Dec. Reg. 54/80, de 30-9 e no artº 1º do Dec.-Lei 199/85, de 25-6». Foi este, nas suas grandes linhas, o regime geral e específico para a transição dos trabalhadores tributários para o NSR que, entretanto, veio receber ainda o contributo legislativo do DL 393/90, de 11.12, no intuito de reparar algumas injustiças, a frustração de legítimas expectativas, veio estabelecer normas, uma a do nº 3 do art. 2º e art. 3º que contemplam e darão satisfação devida às expectativas da recorrente.'
3. M... interpôs o presente recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo a apreciação dos artigos 3º, nº 2, e 12º do Decreto-Lei nº 187/90. Nas alegações de recurso para o Tribunal Constitucional caracterizou assim a inconstitucionalidade daquelas normas, tal como foram interpretadas pelo acórdão recorrido:
'Este reporte da integração do funcionário na categoria a que tinha direito, por mero efeito da lei, a momento anterior ao da sua entrada em vigor, operado pelo DL 187/90 de 7/6, na interpretação dada pelo douto Acórdão em questão, reconduz-se, afinal, a uma retroacção dos seus efeitos com ofensa do direito
(fundamental) à promoção na carreira subjectivado em 25/10/89. A argumentação do douto Acórdão recorrido, procurando afastar o problema da retroactividade de lei restritiva de direitos, liberdades e garantias com base no facto de lei anterior (o DL 353-A/89 de 16/10) já ter previsto efeitos do NSR a momento anterior ilude um facto essencial: é que esse diploma nunca previu qualquer extinção de categorias na carreira de liquidador tributário, isto é, afinal, aquilo que está em causa na interpretação dada aos preceitos do DL
187/90 ora objecto do recurso de constitucionalidade. Não pode aceitar-se, assim, que «in casu» a recorrente tenha visto coarctado o seu direito à promoção, subjectivado muito antes da entrada em vigor do DL
187/90, de 7/6, merecendo portanto a protecção conferida pelo princípio da confiança e gozando do regime de tutela reforçada próprio dos direitos, liberdades e garantias, incluindo a proibição de restrição retroactiva (cfr. artº 18º nº 3 da Constituição). Defende-se, portanto, na esteira aliás de uma parte da jurisprudência dos Tribunais Administrativos de que o douto Acórdão da 1ª Secção supracitado
[Acórdão de 20 de Maio de 1993, recurso 30371] constitui exemplo, que o regime do DL 187/90, de 7/6 que, além de aplicar o NSR aos funcionários da Administração Tributária, determina a extinção das categorias correspondentes a todas as classes da carreira de Liquidador Tributário (cfr. artº 12º), só pode vigorar para futuro, sem retroacção a 1 de Outubro de 1989, pelo que a própria transição dos funcionários para o NSR (seja, num primeiro momento lógico, para o anexo II, seja, num segundo momento, para o anexo I) não pode deixar de ter em conta as promoções adquiridas. Afigura-se assim à recorrente que o douto Acórdão recorrido, ao não considerar o direito daquela à promoção subjectivada antes da entrada em vigor do DL 187/90, de 7/6, acolheu uma interpretação das normas constantes dos artºs 3º nº 2 e 12º desse diploma legal que as fere de inconstitucionalidade material, por ofensa do disposto no artº 47º nº 2 conjugado com os artºs 17º e 18º nº 3, todos da Constituição [...].'
II
4. O presente recurso tem por objecto a interpretação, feita pelo Supremo Tribunal Administrativo, das normas dos artigos 3º, nº 2, e 12º, do Decreto-Lei nº 187/90, de 7 de Junho – mais concretamente, na perspectiva da recorrente, a aplicação retroactiva dos artigos 3º, nº 2, e 12º, por força do artigo 15º do citado Decreto-Lei, a qual implicaria a violação dos artigos 47º, nº 2, 17º e 18º, nº 3, todos da Constituição, por restringir, com efeito retroactivo, o âmbito do direito à promoção na carreira, direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. O Decreto-Lei nº 187/90 veio estabelecer o estatuto remuneratório do pessoal da administração tributária e aprovar a respectiva escala salarial. As disposições em causa são do seguinte teor:
'Artigo 3º (Transição)
[...]
2 – A transição para a escala salarial prevista no mapa I anexo ao presente diploma dos funcionários com as categorias de liquidador tributário, técnico tributário, técnico verificador tributário e técnico de contencioso tributário far-se-á para o escalão correspondente à categoria a que tinham direito, a 30 de Setembro de 1989, nos termos do disposto nos artigos 45º, 46º, 48º e 114º do Decreto Regulamentar nº 42/83, de 20 de Maio, no nº 1 do artº 45º do Decreto Regulamentar nº 54/80, de 30 de Setembro e no artº 1º do Decreto-Lei nº 199/85, de 25 de Junho.'
'Artigo 12º (Extinção de categorias) São extintas as categorias correspondentes às classes de principal, de 1ª e de
2ª classes da carreira de liquidador tributário e de 1ª e 2ª classes de técnico tributário, técnico verificador tributário e técnico de contencioso tributário.'
5. Importa averiguar, antes de mais, se o direito à promoção na carreira está abrangido no núcleo do direito de acesso à função pública, consagrado no artigo 47º, nº 2, da Constituição e, caso a resposta seja afirmativa, em que termos. De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito de acesso à função pública não comporta o direito a obter um emprego, mas garante a realização de um procedimento concursal – direito a um due process de recrutamento, para assegurar a igualdade –, sempre que houver vagas a preencher no âmbito da função pública e a consequente contratação dos candidatos apurados nas provas de selecção. Além disso, 'embora o preceito refira expressamente apenas o direito de acesso (jus ad oficcium), o âmbito normativo-constitucional abrange igualmente o direito de ser mantido nas funções (jus in officio), e bem assim o direito ainda às promoções dentro da carreira' (Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, p. 265). O facto de a progressão na carreira se incluir no núcleo essencial do direito de acesso à função pública deriva da protecção que o legislador constitucional dispensa ao trabalho, em condições de estabilidade e como forma de realização pessoal – cfr. artigo 59º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa. A permanência num posto de trabalho proporciona a especialização e o aperfeiçoamento do trabalhador, e contribui para a sua inserção no ambiente laboral.
Esta estabilidade deve ser premiada, através da criação de um sistema de progressão na carreira, o qual é uma componente essencial da dignificação do trabalho. As promoções podem operar a dois títulos: um primeiro, objectivo, que traduz, pura e simplesmente, a permanência e estabilidade do trabalhador no seu posto, permitindo a manutenção de um padrão de prestação de serviço homogéneo – promoção por antiguidade; um segundo, subjectivo, que constitui um mais relativamente ao primeiro, na medida em que se apresenta como um incentivo, não à mera prestação de trabalho, mas à prestação de trabalho de qualidade – promoção por mérito.
Dizer que o trabalhador tem um direito à progressão na carreira não
é o mesmo que afirmar que o trabalhador tem o direito à carreira tal como ela se configurava na data em que ele ingressou no seu posto. A protecção constitucional da carreira como factor de valorização profissional do trabalhador não impede que o legislador proceda a reajustamentos, maiores ou menores, na estrutura das carreiras do funcionalismo público, de acordo com as exigências do interesse público. Ou seja, o legislador pode redefinir a organização administrativa dos serviços públicos, no sentido de reordenar ou mesmo reconstruir as carreiras dos funcionários. No entanto, em atenção os princípios da boa fé e da tutela das expectativas, deverá assegurar mecanismos substitutivos ou compensatórios da reestruturação, ou mesmo da extinção dos postos de trabalho anteriormente existentes.
Tudo isto significa, por um lado, que o legislador ordinário deve construir um sistema de promoções que garanta o reconhecimento objectivo da dedicação do trabalhador à causa pública, permitindo-lhe a progressão na carreira. Isso não obsta, por outro lado, a que o legislador introduza alterações na estruturação dos serviços públicos e na evolução profissional, em termos de categorias, dos funcionários. Caso opte por reestruturar as carreiras dos funcionários, sempre deverá respeitar as situações constituídas e ter em conta as legítimas expectativas dos funcionários.
6. No caso dos trabalhadores da administração tributária, a especificidade do seu regime de prestação e remuneração de trabalho – 'em virtude das especiais exigências e responsabilidades profissionais a que têm de satisfazer, considerando, em simultâneo, o empenhamento na defesa dos interesses da Fazenda Pública e nas garantias dos contribuintes' (cfr. preâmbulo do Decreto-Lei nº 187/90, de 7 de Junho) – justifica a disciplina deste em diploma autónomo do estatuto geral do funcionalismo público. Porém, isso não impede que a estruturação das carreiras se processe tendo em atenção as preocupações antes mencionadas.
7. Ao definir os princípios gerais em matéria de emprego público, remunerações e gestão de pessoal da função pública, o Decreto-Lei nº 184/89, de
2 de Junho, lançou as bases de um Novo Sistema Retributivo (=NSR). No artigo 43º desse diploma previa-se que:
'1. O presente diploma de princípios gerais será objecto de desenvolvimento e regulamentação e entra em vigor conjuntamente com os diplomas legais de desenvolvimento relativos a matéria salarial.'
Em qualquer caso, dispunha também o Decreto-Lei nº 184/89, no seu artigo 40º:
'2. Em caso algum pode resultar da introdução do novo sistema retributivo
'redução da remuneração que o funcionário ou agente já aufere ou diminuição das expectativas de evolução decorrentes quer da carreira em que se insere, quer do regime de diuturnidades vigente.'
As bases lançadas pelo Decreto-Lei nº 184/89 viriam a ser desenvolvidas pelo Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro (nos termos do citado artigo 43º do Decreto-Lei nº 184/89).
O Decreto-Lei nº 353-A/89 dispunha, no artigo 45º, nº 1, que o início dos seus efeitos se deveria reportar a 1 de Outubro de 1989, quanto ao regime geral. No nº 3 do mesmo artigo acrescentava que 'relativamente às carreiras e categorias não contempladas neste diploma, o Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho, entra em vigor, no que respeita à matéria salarial, à medida que forem publicados os respectivos diplomas de desenvolvimento, sem prejuízo de a produção de efeitos se reportar à data prevista no número anterior' [1 de Outubro de 1989].
Em virtude da sua especificidade, as remunerações dos funcionários da administração tributária foram objecto de regulação autónoma, através do Decreto-Lei nº 187/90.
Pertencem a este diploma as disposições sub judice. A norma do artigo 12º, que decreta a extinção de certas categorias do quadro de pessoal da administração tributária – de entre as quais a de liquidador tributário principal e de 1ª e 2ª classes –, não é aplicável retroactivamente, uma vez que o artigo 15º do mesmo diploma restringe a eficácia retroactiva das disposições nele contidas 'à matéria de incidência remuneratória'. Ou seja, a extinção da categoria em que se integrava a recorrente – quer daquela em que se integrava em 30 de Setembro de 1989 (Liquidadora Tributária de 1ª classe), quer daquela para a qual pretende ter o direito a transitar, em 25 de Outubro de 1989
(Liquidadora Tributária Principal) –, nunca poderia operar retroactivamente, à luz do artigo 15º citado.
8. Recorde-se que, no caso dos autos, de acordo com os artigos 45º, nº
1, alínea c), e 114º do Decreto Regulamentar nº 42/83, de 20 de Maio, e 1º do Decreto-Lei nº 199/85, de 25 de Junho, a recorrente reunia, em 25 de Outubro de
1989, as condições exigidas para a promoção à categoria de liquidadora tributária principal. Com efeito, ela exercia as funções de liquidadora tributária de 1ª classe há mais de dois anos e as suas classificações de serviço, nos últimos dois anos, eram superiores a suficiente (alínea b) do nº 1 do artigo 45º do Decreto Regulamentar nº 42/83). Por isso, nos termos do artigo
114º do mesmo diploma, aplicável por força do artigo 1º do Decreto-Lei nº
199/85, a promoção a categoria superior é um acto a cuja prática a Administração está predominantemente vinculada, só dependendo de requerimento da interessada
(cfr. a redacção do artigo 114º, onde se refere que 'sempre que nas carreiras previstas no presente decreto haja categorias com várias classes a que corresponda circularidade de lugares e a transição das inferiores para a as superiores dependa apenas do tempo e da classificação de serviço, é dispensada a realização de concurso'.
O artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 187/90, ao prever a transição dos funcionários com a categoria de liquidadores tributários para a escala salarial indicada no mapa I anexo ('para o escalão correspondente à categoria a que tinham direito, a 30 de Setembro de 1989'), opera, à primeira vista, um congelamento da evolução na carreira, desde a data referida até ao dia 12 de Junho de 1990 (data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 187/90). O mesmo é dizer que, ao reportar-se a 30 de Setembro de 1989, para efeitos de transição salarial, o diploma, ainda que indirectamente, está a afirmar que não serão tidas em consideração as modificações decorrentes do mero decurso do tempo, inclusive as relacionadas com promoções por antiguidade, cujo direito se consolidasse durante esse período. E está a fazê-lo com eficácia retroactiva. Não pode sequer argumentar-se que a eficácia retroactiva, com todos estes efeitos, já resultava da previsão do artigo 45º do Decreto-Lei nº 353-A/89, acima citado. O sentido dessa disposição é claramente o de garantir a uniformidade de benefícios remuneratórios introduzidos pelo NSR entre os funcionários públicos, estejam eles sujeitos ao regime geral, ou a regimes especiais (como é o caso dos funcionários da administração tributária). Ou seja, o legislador pretendeu tutelar a igualdade remuneratória entre os funcionários públicos, apesar do eventual atraso na emissão da legislação complementar a que se refere o nº 3 do artigo 45º, reconhecendo-lhes o direito a exigir as actualizações dos vencimentos retroactivamente.
Porém, essa eficácia retroactiva diz respeito apenas à matéria remuneratória, não à questão da progressão na carreira. Esta interpretação decorre da própria letra do nº 3 do artigo 45º do Decreto-Lei nº 353-A/89
('...entra em vigor, no que respeita à matéria salarial, à medida que forem publicados os respectivos diplomas de desenvolvimento, sem prejuízo de a produção de efeitos se reportar à data prevista no número anterior').
9. Para obviar a 'eventuais' injustiças derivadas da aplicação do NSR, surgiu, meses depois, o Decreto-Lei nº 393/90, de 11 de Dezembro. Este diploma, conforme consta do seu preâmbulo, 'salvaguarda a situação dos funcionários que obteriam pelo sistema salarial anterior, no período compreendido entre 1 de Outubro de 1989 e 31 de Dezembro de 1989, posição mais vantajosa que a resultante da aplicação do NSR se tivessem completado uma diuturnidade ou o módulo de tempo necessário para a progressão nas carreiras horizontais em que se encontrassem providos'. Assim, os artigos 2º e 3º deste diploma vêm determinar o cômputo do tempo decorrido até 1 de Julho de 1990, para efeitos de contagem do tempo de serviço nos casos das carreiras horizontais e das categorias extintas por agregação pelo Decreto-Lei nº 353-A/89 e legislação complementar (artigo 2º, nº 3), e desde 1 de Outubro de 1989 até 31 de Dezembro de 1989, para efeitos de progressão para um escalão superior, dos funcionários que, durante esse período, adquirissem o direito a uma diuturnidade ou à progressão nas respectivas carreiras (artigo 3º, nºs 1 e 2).
O Decreto-Lei nº 393/90, aplicando-se aos funcionários da Administração Tributária (por remissão do artigo 2º, nº 3, para a legislação complementar ao Decreto-Lei nº 353-A/89, em cujo artigo 29º se prevê, entre outras, a emissão de legislação especial para as carreiras da Administração Tributária), não resolve, porém, todos os problemas deixados em aberto pelo artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 187/90.
Com efeito, se, por um lado, vem obviar ao congelamento do tempo de serviço e da obtenção de diuturnidades, por outro lado, não rectifica a paralisação da progressão na carreira, nomeadamente, não corrige situações em que, tendo-se consolidado, no período compreendido entre 30 de Setembro de 1989 e 12 de Junho de 1990, um direito à promoção para categoria superior, tal direito foi eliminado pelo Decreto-Lei nº 187/90, mais concretamente pela aplicação retroactiva do seu artigo 3º, nº 2.
10. À face da Constituição, concretamente do artigo 47º, nº 2, a evolução na carreira é um valor a tutelar, como contrapartida da dedicação do funcionário ao serviço público. Como se notou, esta protecção constitucional da carreira não obriga o legislador a manter inalterada a estrutura inicialmente existente à data do ingresso do trabalhador no seu posto, mas os valores da segurança jurídica e da tutela das expectativas legítimas – referências fundamentais num Estado de Direito democrático, tal como vem delineado no artigo 2º da Constituição –, implicam que se devam respeitar as situações constituídas, ou seja, que não se retire ao trabalhador um benefício laboral adquirido por força de normas válidas e eficazes.
Conclui-se, deste modo, que, na interpretação feita pelo Supremo Tribunal Administrativo, que lhe imprimiu eficácia retroactiva, o artigo 3º, nº
2, do Decreto-Lei nº 187/90 violou o direito à evolução na carreira que decorria da legislação anterior, afectando, retroactivamente, o núcleo essencial de tal direito. Esta interpretação contraria o disposto no artigo 18º, nº 3, da Constituição – cujo regime é aplicável ao direito fundamental à evolução na carreira contido no âmbito do artigo 47º, nº 2, da Constituição. É, assim, inconstitucional o artigo 3º, nº 2, do Decreto-Lei nº 187/90, com o sentido que lhe foi atribuído pelo acórdão recorrido.
III
11. Neste termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Julgar inconstitucional, na interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, as normas conjugadas dos artigos 3º, nº 2, e 12º do Decreto-Lei nº
187/90, de 7 de Junho, por desconformidade com o preceituado nos artigos 47º, nº
2, 17º e 18º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa; b. Conceder provimento ao recurso, ordenando a reforma do acórdão recorrido, em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 15 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Artur Maurício (vencido nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto:
Não está – como não podia estar – em causa a questão de saber se foi, ou não, correcta a interpretação dos artigos 3º nº. 2 e 12º do DL nº.
187/90, feita no acórdão recorrido, no estrito plano do direito infra-constitucional.
Importa, sim, saber se a norma constante daquele preceito, conforme a interpretação acolhida, viola o direito de acesso à função pública, consagrado no artigo 47º nº. 2 da CRP.
Embora aceitando que a norma constitucional compreenda o direito às promoções dentro da carreira (neste sentido, G. Canotilho e V. Moreira in
'Constituição da República Portuguesa, anotada', 3ª ed., p. 265), entendo, porém, que não está o legislador impedido de reestruturar a carreira, onde o funcionário se mostra inserido, com efeitos retroactivos.
Extintas categorias de uma carreira com efeitos retroagidos a um momento em que, em substituição, outra se estrutura, o que a norma constitucional impõe é que, por um lado, o funcionário mantenha, na 'nova' carreira, o direito de aceder a escalões superiores e, por outro, as normas que prevêem a transição não provoquem distorções no posicionamento relativo dos funcionários nem afectem os seus direitos, com incidência remuneratória, já subjectivados.
Ora, no caso, estando directamente em causa a negação do direito à promoção a uma categoria que, nos termos do acórdão recorrido, se extinguiu por força do DL nº. 187/90, com efeitos reportados a 1/10/89, não pode dissociar-se esta medida da sua razão, ou seja do facto de se ter instituído um novo sistema retributivo para a função pública em geral e para o pessoal da administração tributária, em especial, com efeitos reportados àquela data.
Mas, sendo essa a razão, logo se vê do disposto no DL nº. 187/90
(artigo 6º) e, posteriormente, no DL nº. 393/90 (de que a recorrente beneficiou), que o legislador cuidou de garantir que o pessoal transitaria para o novo regime remuneratório sem afectação dos seus direitos com incidência remuneratória (a recorrente nem alega que tenha passado a receber menos...) o que tanto bastaria para obstar ao juízo de inconstitucionalidade que fez vencimento no presente acórdão. Luís Nunes de Almeida