Imprimir acórdão
Proc. nº 1005/98 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Por sentença de 21/5/98 do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, proferida em processo onde 'C..., Lda.', com sede no Largo de Santa Luzia, Amarante, impugna a liquidação e cobrança da 'taxa municipal de urbanização', mantida por deliberação da Câmara Municipal de Amarante, de 20/10/87, foi recusada a aplicação do 'Regulamento da Taxa Municipal de Urbanização', aprovado pela Assembleia Municipal de Amarante, em 30/6/86, com fundamento em inconstitucionalidade formal e orgânica.
Desta sentença recorre o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artigos 70º, nº. 1, alínea a), 72º, nº. 1, alínea a) e 3º da Lei nº.
28/82, de 15 de Novembro.
Nas suas alegações, formula as seguintes conclusões:
'1º - Constando do artigo 1º do Regulamento da Taxa Municipal de Urbanização de Amarante menção expressa da respectiva lei habilitante – a norma que prevê a possibilidade de os municípios cobrarem taxas pela realização de infra-estruturas urbanísticas – deve considerar-se cumprido o requisito formal exigido pelo nº. 8 do actual artigo 112º da Constituição da República Portuguesa.
2º - Como se decidiu no acórdão nº. 639/95 do Plenário deste Tribunal Constitucional, é lícito às autarquias locais o estabelecimento e cobrança de taxas de urbanização, como contrapartida da efectiva realização de infra-estruturas urbanísticas que visem facultar aos munícipes a normal utilização das obras por eles realizadas, na sequência de anterior licenciamento.
3º - Tais receitas – independentemente do modo 'presumido' como são calculadas, com base em índices estabelecidos em regulamento – têm natureza e estrutura sinalagmática, não se configurando como 'impostos', cujo estabelecimento está obviamente vedado às autarquias locais.
4º - A eventual não realização efectiva e pontual pela autarquia da contrapartida ou contraprestação que decorre do pagamento da referida taxa de urbanização, não a transmuta em imposto, apenas facultando ao particular a via de acção de incumprimento ou de restituição das quantias pagas.
5º - Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Em contra-alegações, sustentou a recorrida a decisão impugnada.
2 – A recusa de aplicação do Regulamento referido assentou na seguinte ordem de razões:
quanto à inconstitucionalidade formal: o dito Regulamento viola o artigo 115º
nº. 7 da Constituição da República Portuguesa, por dele não constar menção da
lei habilitante;
quanto à inconstitucionalidade orgânica: a matéria que é objecto do mesmo
Regulamento é da competência legislativa reservada da Assembleia da República,
nos termos do artigo 168º, alínea i) da CRP, pois a taxa por ele criada,
exigida sem qualquer contrapartida pela autarquia (não apresentando carácter
sinalagmático), deve ter o tratamento de imposto.
3 – A taxa municipal criada pelo Regulamento em causa visa 'compensar o município de despesas respeitantes à realização, reparação, manutenção e financiamento de infra-estruturas urbanísticas, executadas ou a executar, nos termos da alínea a) do artigo 8º do Decreto-Lei nº. 98/84, de 29 de Março'
(artigo 1º). Nos termos do nº. 2 do mesmo artigo 1º, são consideradas infra-estruturas urbanísticas 'a abertura, rectificação e pavimentação de vias ou arruamentos, a execução de redes de saneamento, abastecimento de água e energia eléctrica e ainda as obras de urbanização a levar a cabo em loteamentos urbanos pelos seus promotores'. A taxa de urbanização incide sobre a realização de 'obras de construção, reconstrução ou ampliação de edificações destinadas a habitação, indústria, comércio e profissões liberais 'em terrenos não loteados' (artigo 2º nº. 1) e de
'operações de loteamento nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº. 400/84 e legislação complementar, relativamente aos lotes servidos por arruamentos públicos existentes' (artigo 3º nº. 1). A taxa não será, porém, cobrada nas seguintes situações:
'sempre que se realizem obras em terrenos já onerados anteriormente com
semelhante encargo, salvo se for alterada a natureza da construção
inicialmente prevista e daí resultar a aplicação de uma taxa superior' (artigo
2º nº. 1).
quando as edificações se possam considerar 'de pequena importância, sem
actividade própria e/ou independente, designadamente do tipo das referidas no
parágrafo único do artigo 2º do Regulamento Municipal das Edificações Urbanas'
(artigo 2º nº. 2).
'quando se realizem obras de construção em loteamento cujas infra-estruturas
tenham sido custeadas pelo promotor do loteamento e integradas no domínio
público ou tenham sido custeadas pelo promotor do loteamento e integradas no
domínio público ou tenham sido taxadas nos termos do presente regulamento há
menos de cinco anos' (artigo 4º). A este propósito, importa ainda salientar que, nos casos de realização de obras de construção em 'lotes servidos por algumas infra-estruturas a cargo do loteador, a cobrança será efectuada em função da parte das infra-estruturas que não fiquem realizadas' (artigo 3º nº. 2). No que concerne ao montante da taxa sobre construções em terrenos não loteados, o artigo 7º do Regulamento estabelece que ela será calculada 'em função da área bruta de construção a licenciar, representando 1% do custo da obra'; o valor será corrigido em função do factor respeitante à localização (artigo 9º). No caso de loteamentos, a taxa 'será calculada em função do comprimento da frente dos lotes objecto deste encargo e representa o custo unitário da realização das infra-estruturas e obras de urbanização por metro linear de arruamento' (artigo 10º, corpo); o valor da taxa será corrigido em função de factores respeitantes à localização, à ocupação e à situação dos terrenos ou lotes (artigo 12º, corpo). A Câmara fixa, anualmente, 'o valor de metro linear de pavimentação, saneamento e abastecimento de água para efeitos do cálculo da taxa a cobrar'. Enfermará este Regulamento, cujos traços essenciais se deixaram evidenciados, dos vícios de inconstitucionalidade que a sentença recorrida lhe imputou?
É do que se passa a conhecer, começando pela apontada inconstitucionalidade formal.
4 - Ao tempo em que foi aprovado o Regulamento em causa, dispunha o artigo 115º nº. 7 da CRP:
'Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva ou objectiva para a sua emissão.' A norma é aplicável a todo e qualquer regulamento independentemente do órgão ou da autoridade de que tiver emanado, o que desde logo se retira do cotejo do nº.
7 com o nº. 6 (que expressamente se reporta apenas aos 'regulamentos do Governo') do citado artigo 115º (cfr. Acórdão nº. 76/88, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 11º vol., pág. 322). Afirmado na mesma norma o princípio da primariedade ou precedência da lei, - lei a que todo e qualquer regulamento se encontra necessária e 'umbilicalmente'
(usando a expressão do citado Acórdão nº. 76/88) ligado – o regulamento em causa, dada a sua natureza, deveria indicar a lei que definia a competência, subjectiva e objectiva, do órgão autárquico para cobrar taxa pela realização de infra-estruturas urbanísticas, ou seja o DL nº. 94/84, de 29 de Março, emitido no uso de autorização legislativa conferida pela Lei nº. 19/83, de 6 de Setembro, e que no seu artigo 8º alínea a) estabelecera:
'Os municípios podem cobrar taxas:
Pela realização de infra-estruturas urbanísticas;
.............................................................................' Não impõe a lei constitucional que a indicação da lei definidora da competência conste de um qualquer trecho determinado do Regulamento. Ela limita-se à exigência de a menção ser expressa, recusando deste modo, a legitimidade de citações 'tácitas' da base legal autorizante. De notar, a este propósito, que a jurisprudência do Tribunal Constitucional parece aceitar que a menção seja 'implícita' ou 'indirecta' como decorre do Acórdão nº. 319/94, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 27º vol., pág.939, quando salienta que o regulamento então em causa 'não indica implicitamente sequer' a lei habilitante, e dos Acórdãos nºs. 63/88, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 11º vol., pág. 645 e 253/88, in DR, 2ª Série, de 9/2/89, no ponto em que fundamentam o juízo de inconstitucionalidade formal no facto de os regulamentos não referirem 'nem directa nem indirectamente' a lei autorizante, recusando-se porém o cumprimento da imposição nos casos em que a omissão não obstasse a que 'se pudessem identificar, com elevado grau de probabilidade, as normas das leis das autarquias locais que habilitaram o órgão autárquico a aprovar esse regulamento (Acórdão nº. 160/93, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 24º vol., pág. 381). Decisivo será que um dos fins visados com uma tal exigência – 'a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito democrático' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª edição, p. 516), - seja cabalmente atingido, o que será apenas conseguido se a menção da lei habilitante se revelar patente ou ostensiva. De novo revertendo à jurisprudência deste Tribunal, é de chamar à colação o que se decidiu (i) no Acórdão nº. 524/95 (inédito) onde se julgou não ser suficiente
'que conste apenas da acta da assembleia municipal que aprovou o regulamento a norma que atribui a esse órgão colegial competência para aprovar 'posturas e regulamentos', sendo o regulamento 'totalmente omisso' a este respeito (ii) no Acórdão nº. 110/95, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 30º vol., pág.
627, onde se aceitou como cumprida a obrigação constitucional, conjugando a menção (insuficiente) feita no próprio texto do regulamento com a 'mais completa' constante do livro de actas e (iii) no Acórdão nº. 639/95, in
'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 32º vol., pág. 169, onde a indicação feita na proposta camarária aprovada e no edital publicitado no 'Diário Municipal' se julgou bastante. Entende o Tribunal que, no caso, mesmo à luz de critérios da maior exigência, se deve julgar o regulamento em apreço isento do vício de inconstitucionalidade formal por violação do artigo 115º nº. 7 da CRP. Na verdade, sendo à data da aprovação do regulamento a norma do artigo 8º alínea a) do DL nº. 98/84, de 29 de Março, a lei habilitante dos municípios para cobrar taxas pela realização de infra-estruturas urbanísticas - e, para este efeito, é irrelevante que essa norma não disponha sobre critérios ou regras da incidência ou taxa ou sobre o que deva entender-se por 'infra-estruturas urbanísticas' nem estabeleça regras relativas à liquidação e cobrança do tributo - é patente e ostensivo que o regulamento que a Assembleia Municipal de Amarante aprovou, instituindo no município a 'taxa municipal de urbanização', que 'tem como objectivo compensar o município de despesas respeitantes à realização, reparação, manutenção e funcionamento de infra-estruturas urbanísticas', indica uma tal lei, expressando no artigo 1º (corpo) que a referida taxa visa aquele objectivo, 'nos termos da alínea a) do artigo 8º do Decreto-Lei nº. 98/84, de 29 de Março'. Não enferma, pois, o regulamento de inconstitucionalidade (formal) por violação do artigo 115º nº. 7 da CRP.
5 - De outra e maior complexidade é a segunda questão de constitucionalidade suscitada pela recorrente, que pode sintetizar-se nos seguintes termos: Incluída a 'criação de impostos e sistema fiscal' na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 168º nº. 1 alínea i) da CRP (na versão revista pela LC nº. 1/82, ao tempo em vigor, por que há-de aferir-se a constitucionalidade orgânica do regulamento em causa) foi violada aquela norma com fundamento em que, a 'taxa municipal de urbanização', nos termos do mesmo regulamento, não é uma taxa, mas um tributo que é ou deve ser tratado como imposto? Tem o Tribunal Constitucional entendido (Acórdãos nºs. 205/87, 461/87 e 640/95, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 9º vol., pág. 209, 10º vol., pág. 181,
32º vol., pág. 185, respectivamente) que, na reserva de lei consagrada naquele preceito, se não inclui a matéria das taxas, mas apenas a dos impostos, cuja criação cabe à lei, que 'determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes', por força do disposto no artigo 106º nº. 2 da Lei Fundamental, na versão anterior à revisão de 97, (no mesmo sentido cfr. Cardoso da Costa 'O enquadramento constitucional do Direito dos impostos em Portugal', in 'Perspectivas constitucionais – nos 20 anos da Constituição de
1976', II vol. p.p. 401 e 405, Gomes Canotilho e Vital Moreira ob. cit. p.p. 460 e 674, Casalta Nabais 'Jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria fiscal', in 'Estudos sobre a jurisprudência do Tribunal Constitucional', p.p.
249 e segs.) A resposta à questão enunciada passa, assim, decisivamente, pela qualificação da
'taxa municipal de urbanização', tal como a disciplina o Regulamento, sendo certo que, a ser considerada, substancialmente, como taxa, se impõe a improcedência da arguição do vício de inconstitucionalidade orgânica. Na verdade, nos termos do DL nº. 100/84, de 29 de Março, competia à assembleia municipal 'estabelecer, nos termos da lei, taxas municipais e fixar os respectivos quantitativos'; por seu turno, o já citado artigo 8º, alínea a) do DL nº. 98/84, habilitava os municípios a cobrar taxas pela realização de infra-estruturas urbanísticas, o que vem a ser reiterado pelo artigo 11º, alínea a), da Lei nº. 1/87, de 6 de Novembro. Na indagação que se seguirá não pode, contudo, relevar a circunstância de ter sido dada à 'prestação' o nomen de 'taxa' (cfr. Parecer da Comissão Constitucional nº. 30/81 in 'Pareceres da Comissão Constitucional', 17º vol. pág. 89); de outro modo se abriria a via para a criação de verdadeiros impostos
à margem ou contra os princípios constitucionais aplicáveis, maxime, o do citado artigo 106º nº. 2 da CRP. Ao longo dos anos, o Tribunal Constitucional e já antes a Comissão Constitucional, tem vindo a sedimentar uma jurisprudência sobre os conceitos de imposto e taxa a propósito de diversas prestações exigidas pelo Estado ou outros entes públicos, designadamente e sem preocupações de exaustividade, taxa de justiça, taxa de radiodifusão, taxa de estacionamento, taxa de recolha de lixos, taxa de publicidade móvel, tarifa de saneamento. Dela se retira, como traço fundamental definidor do conceito de imposto e na sua diferenciação com o de taxa, o da 'unilateralidade' – à prestação exigida pelo Estado ou outro ente público não corresponde contrapartida específica – em contraste com a 'bilateralidade' caracterizadora da taxa. No que concerne especificamente à taxa, ela vem sendo definida como uma prestação exigida 'como restituição dos serviços prestados individualmente aos particulares, no exercício de uma actividade pública, quer como contrapartida de utilização de bem do domínio público, quer ainda da remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares, deste modo e acolhendo a definição dada por Sá Gomes 'Manual de Direito Fiscal', p. 73 (cfr. entre muitos outros os Acórdãos nºs. 1140/96, 379/94 e 382/94, o primeiro publicado in DR, 2ª Série, de
10/2/97, e os dois últimos in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 28º vol., pág. 233 e pág. 241, respectivamente). Recorte mais preciso do conceito é ainda dado quando se admite que a utilização do bem (voluntária ou obrigatória) se perfile como mera possibilidade, exigindo-se, porém, que a imposição do pagamento continue exclusivamente relacionada com aquela utilização. Tem ainda o Tribunal entendido que se não integra no conceito de taxa a correspondência entre o montante da prestação imposta e o custo do bem ou serviço que constitui a contraprestação do ente público (cfr. Acórdão nº. 67/90, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 15º vol., p. 241), salvo nos casos em que, entre aqueles montante e custo houver uma 'desproporção intolerável' (Ac. nº. 1140/96, in DR II Série de 10/2/97). E foi assim que, munido destes instrumentos conceituais, considerou a taxa de radiodifusão como imposto, por se tratar de prestação relacionada com o consumo eléctrico e não com o serviço de radiodifusão sonora (cfr., entre outros, Acs. nºs. 29/83, 468/89 e 104/90 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 1º vol., pág. 217, 14º vol., pág. 137 e 15º vol., pág. 347, respectivamente), qualificou a taxa de justiça como taxa por corresponder à sua imposição um serviço prestado pelo Estado, não decorrendo a sua variação de um aleatório valor processual
(cfr. Acs. 412/89, 98/90 e 155/90 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 13º vol., pág. 1187 e 16º vol., pág. 249, respectivamente o primeiro e o último e inédito o segundo), a 'taxa de estacionamento' como imposto (ou 'contribuição especial', sujeita ao mesmo tratamento do imposto) por inexistir, da parte do Estado, uma qualquer contraprestação, não conferindo o pagamento do tributo o direito à utilização individualizada ou efectiva de qualquer área de parqueamento público e sem que o município se constitua na obrigação de criar ou manter tais áreas (cfr. Acs. 277/86 e 313/92, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 8º vol., p. 383 e 23º vol., p. 309, respectivamente), a tarifa de saneamento, como imposto na parte em que a tarifa se destina a custear a drenagem de águas residuais, por incidir sobre consumidores que não gozam desse benefício e como taxa na parte em que tem como contrapartida o serviço municipal de recolha, depósito e tratamento de lixos (cfr. cit. Ac. nº. 76/88), a taxa de recolha de lixos, como taxa por corresponder a uma utilização de um serviço – o serviço de recolha e de destino do lixo – (cfr. Ac. cit. Ac. nº. 1140/96), a taxa de publicidade móvel, como imposto ou 'tributo especial', por não haver utilização de bem semi-público e por o ente tributador se não constituir em qualquer obrigação de assunção de maiores encargos pelo levantamento do obstáculo jurídico (cfr. Ac. 558/98 in DR II Série de 11/11/98). Na já longa jurisprudência do TC sobre a constitucionalidade de diversas taxas, não se conhece, porém, qualquer acórdão que verse sobre um tributo com as características que o regulamento aprovado pela Assembleia Municipal de Amarante em 30/6/86 confere à 'taxa municipal de urbanização'. Na jurisprudência do STA dá-se nota da publicação de um acórdão que se pronuncia sobre a 'taxa municipal de urbanização', regulada em termos muito semelhantes à que agora nos ocupa e onde se afasta a qualificação do tributo como taxa, 'pois
à prestação exigida ao particular, a pretexto (e não por causa) do requerimento de licença de loteamento, de construção e de obras não corresponde por parte da autarquia, a prestação individualizada de um serviço público, o acesso à utilização de bens do domínio público ou a remoção de um limite jurídico (limite ou obstáculo jurisdicional levantado por razões de interesse público geral) à actividade dos particulares' (Ac. de 10/2/94, in 'Apêndice ao Diário da República' de 20/12/96, p.p. 1071 e segs). Por seu turno, o Conselho Consultivo da PGR, no seu Parecer nº. 59/86, in BMJ nº. 366 p. 152, qualifica como taxa uma 'compensação' exigida pela construção de
'andares a mais' com fundamento na sobrecarga das infra-estruturas que servem o edifício. Taxas semelhantes (e diz-se 'semelhantes' por se tratar de tributos essencialmente idênticos mas com pormenores de regulamentação distintos) têm merecido a atenção da nossa doutrina. Assim, sobre a 'taxa de urbanização' prevista no 'Regulamento Municipal de Obras' aprovada pela Assembleia Municipal do Porto em 5/6/89 e publicitada pelo Edital 11/89, pronunciou-se Afonso Marcos ('As taxas municipais e o princípio da legalidade fiscal', na revista 'Fisco' nºs. 74/75, p. 22 e segs.), sustentando que ela não é uma taxa, mas uma 'contribuição especial'. A inexistência de uma prestação individual de serviço aos particulares a que acrescia a impossibilidade de determinar uma 'razoável equivalência' entre o montante do serviço e a da taxa, obstariam à qualificação do tributo como taxa. O ser pressuposto da tributação a utilidade da actividade pública de interesse geral ou o agravamento de encargo público em virtude da actividade particular justificaria o enquadramento da taxa nas 'contribuições especiais'. No mesmo sentido e com os mesmos fundamentos se pronuncia Sá Gomes in 'Alguns aspectos jurídicos e económicos controversos da sobretributação imobiliária no sistema fiscal português', in 'Ciência e Técnica Fiscal' nº. 386, pp. 65 e segs. Recusam, igualmente, a qualificação de taxa, Leite de Campos ('Fiscalidade do Urbanismo', in 'Direito do Urbanismo', INA, pág. 460) por se tratar de um tributo exigido independentemente do valor das infra-estruturas a realizar e da própria necessidade de realizar essas infra-estruturas, Osvaldo Gomes ('Direito do Urbanismo in Direito das Empresas', INA, pág. 201) quando a execução das infra- estruturas for imposta aos particulares e, nos mesmos termos, Freitas do Amaral ('Direito do Urbanismo – sumários', 1993, pág. 119). Em sentido oposto e quanto à mesma 'taxa pela realização de infra-estruturas urbanísticas', prevista em Regulamento aprovado pela Assembleia Municipal de Lisboa em 11/7/91, pronunciaram-se Paz Ferreira ('Ainda a propósito da distinção entre impostos e taxas: o caso da taxa municipal pela realização de infra-estruturas urbanísticas' in 'Ciência e Técnica Fiscal', nº. 380, pp. 57 e segs.) e Aníbal Almeida ('Sobre a natureza jurídica das 'taxas pela realização de infra-estruturas urbanísticas', in 'Estudos de Direito Tributário', pp. 35 e segs.). De acordo com o Regulamento em causa, 'a taxa municipal de urbanização' visa compensar o município de despesas com a 'realização, reparação, manutenção e funcionamento de infra-estruturas urbanísticas, executadas ou a executar (...)', sendo como tal considerados os trabalhos de 'abertura, rectificação e pavimentação de vias ou arruamentos, a execução de redes de saneamento, abastecimento de água e energia eléctrica e ainda as obras de urbanização a levar a cabo em loteamentos urbanos pelos seus promotores' (artigo 1º, corpo, e nº. 1). Incidindo a taxa sobre obras de construção, reconstrução ou ampliação de edificações destinadas a habitação, indústria, comércio e profissões liberais
(em termos não loteados) ou sobre operações de loteamento nos termos do artigo
1º do DL nº. 400/84 e legislação complementar, relativamente aos lotes servidos por arruamentos públicos existentes (artigos 2º, corpo e 3º, corpo), desde logo se pode concluir que o 'objectivo' referido no artigo 1º não traduz uma mera afectação financeira das receitas provenientes da cobrança da taxa, mas a compensação das despesas efectuadas, ou a efectuar, pelo município, causadas, directa ou indirectamente, pelas obras sobre que a taxa incide. Determinando estas obras a necessidade, actual ou futura, de realização de infra-estruturas urbanísticas, tais como as enunciadas no corpo do artigo 1º, elas constituem, afinal, a contraprestação da autarquia, o serviço prestado pela autarquia conexionado com o pagamento da taxa. Este nexo surge, aliás, mais nítido quando, nos termos do artigo 2º nº. 1 do Regulamento se dispõe que a 'cobrança não será efectuada sempre que se realizem obras em terrenos já onerados anteriormente com semelhante encargo' e no nº. 2 do mesmo artigo se estabelece que a taxa não será cobrada nos casos de edificações de 'pequena importância, sem actividade própria e/ou independente'; e, ainda, quando, em lotes servidos por algumas infra-estruturas a cargo do loteador, a cobrança se limita, por força do artigo 3º nº. 2, 'em função da parte das infra-estruturas que não fiquem realizadas' ou quando, no artigo 4º, se dispõe que a taxa não será cobrada nos casos de 'obras de construção em loteamento cujas infra-estruturas tenham sido custeadas pelo promotor do loteamento e integradas no domínio público'. Esta delimitação negativa da incidência da taxa revela, claramente, que o tributo visa corresponder a serviços prestados, ou a prestar, pela autarquia numa conexão directa com as obras realizadas. Trata-se, aliás, de um traço essencial do conceito de taxa, como adverte Aníbal Almeida (ob. cit. págs. 66/67), depois de rejeitar o 'sinalagma' como característica da relação entre o serviço prestado pela autarquia e a utente (o carácter sinalagmático tem sido acolhido na jurisprudência do Tribunal Constitucional, sem que, no entanto, para tal se exija uma correspondência económica entre o serviço e o montante da taxa):
'É, porém, necessário em qualquer caso (mesmo nos casos em que se cobrem taxas pela mera possibilidade de o utente efectivamente o ser) que exista uma conexão concreta entre os serviços ou bens materiais (ou o conjunto de uns e outros) em que se venha a traduzir, concretamente, cada serviço público pensado em abstracto e os utentes a quem ele é prestado, em todo o caso, a cuja produção tenham dado causa (...)'. Não obsta ao carácter bilateral da taxa o critério consagrado no Regulamento para a fixação do montante da prestação exigida – em função da área bruta de construção a licenciar, representando 1% do custo da obra, corrigida tendo em conta o factor localização (construções em terrenos não loteados) e em função do comprimento da frente dos lotes objecto do 'encargo', representando o custo unitário da realização das infra-estruturas e obras de urbanização por metro linear de arruamento, corrigida considerando os factores localização, ocupação e situação dos terrenos (operações de loteamento) – artigos 7º a 12º. Na verdade, afastada a exigência de uma absoluta correspondência económica entre as prestações do ente público e do utente (cit. Acórdãos nºs. 205/87 e 76/88), o critério adoptado, fundamentalmente pela ponderação da área de construção –
índice quer da utilidade retirada pelo obrigado, quer do grau de exigência na realização, reforço, manutenção ou funcionamento, de obras de infra-estruturas urbanísticas – não deixa de ser ditado por uma preocupação de proximidade entre o custo e a utilidade da prestação do serviço e o montante da taxa. E também não contradiz a bilateralidade da taxa a eventualidade de a prestação do serviço não implicar vantagens ou benefícios para quem é obrigado ao pagamento (cfr. cit. Acórdão nº. 67/90), muito embora, seja considerável, no caso, a probabilidade dessas vantagens ou benefícios em qualquer das modalidades de obras de infra-estruturas urbanísticas ('realização, reparação, manutenção e funcionamento') em geral exigíveis, ou convenientes, quando se efectuam as construções ou operações de loteamento referidas nos artigos 2º e 3º do Regulamento, o que do mesmo modo retira o carácter presuntivo, em abstracto, das maiores despesas ou encargos por parte da pessoa pública que é próprio das
'contribuições especiais por maiores despesas' (neste sentido, Aníbal Almeida, ob. cit. pág. 72). Por outro lado, a circunstância de aquelas obras poderem gerar utilidade para a generalidade da população não contende com o facto de elas serem efectuadas no interesse do onerado (cfr. cit. Parecer da PGR nº. 59/86) que delas retira, ou pode retirar, uma utilidade própria (o serviço prestado é, nesta dimensão, específico e divisível). Em suma, pois, não se vê que a 'taxa municipal de urbanização' em causa revista características diversas das que, na jurisprudência do Tribunal Constitucional
(e cita-se aqui, em especial, o Acórdão nº. 354/98, de 12/5 in DR II Série de
15/7/98), têm fundamentado a qualificação de outros tributos como 'taxa'. E, sendo assim, não pode o 'Regulamento da Taxa Municipal de Urbanização', aprovado pela Assembleia Municipal de Amarante em 30/6/86 estar ferido de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 168º nº. 1 alínea i) da CRP (na versão revista em 82) que às 'taxas' se não reporta.
6 – Duas últimas notas: A primeira para se salientar que o DL nº. 334/95, de 28 de Dezembro, e a Lei nº.
26/96, de 1 de Agosto, que deram novas redacções ao artigo 32º do DL nº. 448/91, respeitam apenas ao licenciamento municipal de operações de loteamento e de obras de urbanização, pelo que, estando em causa, como alega a recorrente, a cobrança de uma taxa no procedimento de licenciamento de obras particulares, eles não contendem com a legalidade dessa cobrança. A segunda, para se dizer da irrelevância do facto de a revisão constitucional de
97 ter inserido na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República legislar sobre o 'regime geral das taxas', pois seja qual for o sentido da inovação, constante do artigo 165º nº. 1 alínea i) da CRP, ela deixa seguramente incólume a constitucionalidade dos regulamentos municipais que criaram taxas numa altura em que, como se viu, o princípio constitucional da legalidade tributária não abrangia esses tributos – na sua parte inovadora, o citado artigo 165º nº. 1 alínea i) só dispõe para o futuro. Trata-se, aliás, de uma situação semelhante à que foi versada nos Acórdãos nºs.
221 e 341 da Comissão Constitucional (in Apêndice ao Diário da República de
16/4/81 e 18/1/83), para cuja fundamentação se remete, e onde se entendeu que os diplomas então em causa não enfermam de inconstitucionalidade material superveniente.
7 - Decisão: Pelo exposto e em conclusão decide-se não julgar inconstitucional o Regulamento da Taxa Municipal de Urbanização aprovado pela Assembleia Municipal de Amarante e, consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformada em conformidade com o julgado. Lisboa, 15 de Junho de 1999- Artur Maurício Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida