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Proc. nº 187/99 TC – 1ª Secção Rel.: Cons.º Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - D... e mulher, com os sinais dos autos, reclamam, ao abrigo do artigo 76º nº 4 da Lei nº 28/82, do despacho que não lhes admitiu o recurso interposto para este Tribunal do despacho que indeferiu o pedido de reforma e arguição de nulidade por omissão de pronúncia do acórdão do STJ que negou provimento a recursos de agravo e de revista. Dizem na sua reclamação:
'1. Os recorrentes suscitaram a nulidade do douto Acórdão por omissão de pronúncia, quanto à questão do exercício abusivo do direito de constituir, nos casos dos autos, a servidão de passagem (requerimento de fls. 301 e segs., II, nºs. 1 e segs.).
Nesse requerimento levantaram, também, a questão da inconstitucionalidade do uso de tal direito. Como defesa jurídica retardada
(Prof. Manuel de Andrade, Noc. Ele. de Proc. Civil, 1979, p.141. 'É a que pode ser deduzida fora de tempo, mesmo sem alegações nem prova de superveniência.
Estão nestas condições...dum modo geral toda a defesa que pode ser conhecida oficiosamente pelo Tribunal').
2. O Tribunal apreciou a dita questão do abuso do direito, por despacho de 20-1-99, II, B. Todavia, salvo o devido respeito, apreciou tal questão apenas na subsunção às normas do direito civil. Mas não, na suscitada compatibilização do exercício do direito com as normas constitucionais invocadas.
3. Assim, não se encontrava esgotado, quanto a tal questão, do referido abuso do direito, o poder jurisdicional (art. 666º, 2, do C. Pr. Civil).
Bem como, assim, a questão da inconstitucionalidade foi suscitada, antes e funcionalmente, de modo a dela o Tribunal puder conhecer ao decidir tal questão: como decidiu pelo douto despacho de 20-1-99.
4. E, o abuso de direito existe, é certo, no caso de seu exercício de modo clamorosamente ofensivo da justiça ou do sentimento jurídico dominante
(cit. Ac. S.T.J. de 8-11-84). Mas não só. Existe, também, quando se exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico do direito (art.
334º do C. Civil).
5. E ao reportar-se a Lei ao fim social e económico do direito – reporta-nos, necessariamente à obediência constitucional das 'normas' da Constituição sobre o valor do fim social e económico do direito de propriedade.
Ora a respectiva densificação constitucional do direito de propriedade, quer do proprietário eventualmente serviente, quer do dominante – torna constitucionalmente ilegítimo (abusivo) o direito de constituir a servidão nos casos tipo em causa, pelo que o artigo 1550º do C. Civil (na respectiva densificação) abragendo-os (nesses casos, concedendo tal faculdade de constituição) e o art. 334º do mesmo Código não a considerando (nesses caso tipo) abusiva: são inconstitucionais.
6. E esta colação, e a respectiva inconstitucionalidade – como referido supra em 2: foi colocada a tempo e funcionalmente, antes de esgotado o poder jurisdicional para decisão de tal questão (decidida a 20-1-99). Pelo que, a tempo, antes e funcionalmente com ela foi confrontado o Tribunal. Respeitando-se, pois, a letra e o espírito do cit. art. 70º, 1, b) da Lei
28/82.'
Neste Tribunal, o Exmo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
'É manifesta a improcedência da presente reclamação, já que os ora reclamantes não suscitaram durante o processo, podendo perfeitamente tê-lo feito, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa que seja susceptível de fundamentar o recurso de constitucionalidade interposto, baseado na alínea b) do nº. 1 do art.
70º da Lei nº. 28/82.'
Independentemente de vistos, dada a simplicidade da causa, cumpre decidir.
2 - Dos autos resulta o seguinte:
Os reclamantes requereram a reforma de acórdão proferido em recurso de agravo com fundamento em inexactidões daquele aresto, cuja correcção implicaria a ilegitimidade dos reclamantes por preterição de litisconsórcio necessário passivo.
Na mesma peça arguiram também a nulidade por omissão de pronúncia de acórdão proferido em recurso de revista, por nele se não ter conhecido de questão de conhecimento oficioso – a existência de abuso de direito.
Disseram a este propósito:
'II Nulidade, no Recurso de Revista, de omissão de pronúncia sobre o exercício abusivo, pelos Autores, da faculdade de exigirem a constituição da servidão de passagem
1. Os Réus alegaram nas conclusões das suas alegações (nºs. 50 e 51) a categoria jurídica do abuso de direito. Como já, antes, na 'contestação' (art. 55º e 67º) e nas alegações de direito da primeira instância (ali f) das conclusões).
2. Salvo o devido respeito, entendem os recorridos que tal questão deve também ser apreciada – pelo que a omissão da respectiva pronúncia, no douto Acórdão, constitui nulidade (art. 668º, nº. 1, d) do C. Pr. Civil). Aliás, se o exercício de um direito é ilegítimo quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art. 334º do C. Civil) – então, num Estado de Direito, mesmo oficiosamente, não deve o Tribunal conceder o exercício do direito pretendido se, no caso, tal exorna (art. 2º e 20º da Const.).
3. Bem como – em defesa jurídica – os recorridos entendem que são inconstitucionais, substantivamente, os artigos 1550º e 334º do C. Civil na interpretação de que, face a um proprietário dum prédio que comunica, no seu todo, com facilidade com a via pública, mas tão só relativamente encravado face a instalações que voluntariamente constrói no interior do prédio, e sem prévia e provada justificação social ou económica da necessidade da opção dessa escolha desse exacto local e, mormente, em adequação face a uma eventual localização acessível junto à via pública – tais artigos lhe concedem a faculdade, e de exercício legítimo, de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos.
4. E são inconstitucionais, nessa interpretação, tais artigos, por violação dos arts. 2º, 20º e 62º da Constituição, dos princípios axiais do Estado de Direito, da Boa-fé e Certeza Jurídica e do Protocolo I, Adicional à Conv. Eur. Dos Dir. do H., art. 1º.
5. Pois, o 'direito' de propriedade está constitucionalmente consagrado, em modo que não é aceitável a sua restrição senão por superiores razões ponderadas, objectivas de carácter social e económico. O que não acontece se o encrave relativo, voluntário, não assente e pela positiva, nessas razões. E, antes, assenta num mero acto 'voluntário' privado: e que 'se' é um incómodo, a tal propriedade se imputará (a sibi imputat), que apenas está a venire contra factum proprium e a querer repercutir no terceiro a sua inidónea gestão. Aliás, ao proprietário é legítimo esperar que o outro respeite a Boa-fé, como
'dever-ser', de que ele, vizinho, agirá como bonus pater familia – e, sem necessidade justificada, não vá instalar obras ou serviços interiores, junto ao seu prédio e não à via pública: e, depois, o venha a querer prejudicar! O que também será contra os bons costumes; e onde se insere também o respeito pelas relações de boa-vizinhança. Aliás, tal proceder do vizinho não se insere nos limites do 'fim social ou económico' do direito que, em princípio, a lei concede para desencrave de prédios, por razões de objectivo interesse social. Bem como, tal eventualidade de o terceiro vizinho puder vir a instalar tais obras ou serviços, hoje e amanhã, aqui ou ali e sem opções objectiva e previamente justificadas – e, mesmo assim, ser-lhe concedida, hoje e amanhã, a faculdade de constituir a servidão ou servidões de que vier a precisar, porque provoca encraves relativos – é pôr em causa a certeza jurídica da propriedade do vizinho potencialmente serviente: pela permanente insegurança da plenitude do uso do direito de propriedade, na dependência de meras vontades de terceiro.'
Sobre este requerimento e no que concerne à arguição de nulidade (e só ela interessa para o caso), foi proferido o seguinte despacho:
'B) Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia sobre o abuso do direito: Quanto a este aspecto, alicerçados nas conclusões 50º e 51º das suas contra-alegações para este Supremo, pretendem que se decida se o exercício do direito pretendido pelos AA. é ou não abusivo.
Salvo o devido respeito, esta pretensão é completamente descabida.
Existe abuso do direito quando este se exerce em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou quando, com esse exercício, se ofende clamorosamente, o sentimento jurídico dominante (Ac. deste Supremo de 8/11/84, BMJ 341º, p. 418). O abuso do direito é de conhecimento oficioso, como vem sendo uniformemente decidido por este Supremo Tribunal. Assim, ou o julgador, ao pretender aplicar a lei, conclui pela flagrante injustiça, resultante dessa aplicação, numa nítida situação de abuso do direito e não a aplica: ou, no caso contrário, aplica a norma, mas a lei não exige que, quando a aplica, deva referir-se expressamente à inexistência de situação de abuso para justificar a aplicação, sob pena de praticar uma omissão de pronúncia.
Também nesta parte vai indeferido.'
Os reclamantes interpuseram então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, nos seguintes termos:
'D.... e mulher, no processo à margem referido em que são recorridos, não se conformando com o douto Acórdão, e por inconstitucionalidade, vêm do mesmo interpor recurso, de apelação, para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b), do nº. 1, do artigo 70º da L. 28/82, de 15 de Novembro, com indicação seguinte dos elementos constantes do artigo 75º-A da citada Lei:
1. A 'norma' cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie é a norma do art. 1550º do C. Civil de 1967 'aplicada' e como 'aplicada' no Acórdão recorrido no quadro do posterior ordenamento constitucional de 2-4-76 (e alterações subsequentes): como norma, princípio normativo ou juízo de valor legal que concede, como ordenamento legal da vida em sociedade, a faculdade, e de exercício legítimo, de constituição de servidões legais de passagem sobre prédios vizinhos também ao proprietário de prédio que no seu todo comunica com a via pública e que tão só é relativamente encravado face a instalação que o próprio proprietário voluntariamente construiu no interior do seu prédio sem alegação e assunção, pelo menos, duma causal justificação, numa perspectiva social ou económica, da necessidade da opção da escolha desse exacto local para implantação específica de tais instalações.
2. As normas ou princípios constitucionais que se consideram violadas pela norma referida em 1., são as normas, princípios normativos ou juízos de valor constitucionais consubstanciados e exornantes dos artigos 2º, 20º e 62º da Constituição e do art. 1º do Protocolo I, Adicional à Conv. Eur. Dos Dir. do Homem e os princípios axiais e constitucionais do Estado de Direito da Boa-fé e Certeza Jurídica.
3. A peça processual em que o recorrente suscitou a questão de tal inconstitucionalidade foi a peça de fls. 301 e segs. em que se requer a reforma do Acórdão proferido no recurso de agravo e se arguiu a omissão de pronúncia sobre o abuso de direito no recurso de revista: e nomeadamente, nessa peça processual, sob os nºs. 3, 4 e 5.'
O recurso não foi admitido nos termos do despacho que a seguir se transcreve na íntegra:
'No requerimento que antecede, os recorrentes vêm recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 b) da LTJ, com a alegação de que a inconstitucionalidade foi alegada na peça de fls. 301 e ss. em que requerera a reforma do acórdão e arguiram a omissão de pronúncia.
Como se vê, os recorrentes só suscitaram tal questão já depois da prolação do acórdão, quando, estando esgotado o poder jurisdicional, só é possível requerer-se o suprimento dos vícios mencionados nos arts. 668º e 669º do CPC.
Face à al. b) do nº. 1 do art. 70º da LTC, na redacção que lhe deu a Lei 85/89 de 7/9, a inconstitucionalidade tem de ser suscitada durante o processo.
E a expressão 'durante o processo' vem ser entendido, unanimemente, pelo TC, no sentido funcional, significando que essa questão há-de ser colocada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido, a fim de este a poder decidir, ou, por outras palavras, antes da prolação da decisão de que pretende recorrer (vide, os recentes Acs. do TC, nº. 17/95 de 31/1/95, nº. 96/95 de 22/2/95 e 139/95 de 15/3/95, in Acórdãos do TC, 30º volume, págs. 1061, 539 e
701, respectivamente; e ainda 'Breviário de Direito Processual Constitucional – recurso de constitucionalidade –' de Guilherme da Fonseca e Inês Domingues, ed. de Coimbra Editora, 1977, págs. 40 e ss).
Termos em que não admito o recurso para o TC, fixando em 2 Ucs. a taxa de justiça do incidente, cujos custos ficam a cargo dos recorrentes.'
3 - A não admissão do recurso no despacho ora reclamado fundou-se, como se viu, na falta de um dos pressupostos do recurso previsto no artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82: a suscitação da inconstitucionalidade da norma em causa durante o processo.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso que delimita o âmbito do objecto do recurso, a norma cuja constitucionalidade os recorrentes pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, a norma é a que consta do artigo 1550º do Código Civil, 'como norma, princípio normativo ou juízo de valor legal que concede, como ordenamento legal da vida em sociedade, a faculdade, e de exercício legítimo, de constituição de servidões legais de passagem sobre prédios vizinhos também ao proprietário de prédio que no seu todo comunica com a via pública e que tão só é relativamente encravado face a instalação que o próprio proprietário voluntariamente construiu no interior do seu prédio sem alegação e assunção, pelo menos duma causal justificação, numa perspectiva social ou económica'.
Incontroverso é que a questão de inconstitucionalidade desta norma não foi suscitada até à prolação do acórdão do STJ que decidiu o recurso de revista; foi-o, apenas, na reclamação por nulidade, fundado em omissão de pronúncia, daquele mesmo acórdão.
A questão que importa decidir na presente reclamação é, pois, a de saber se a fase processual em que os reclamantes sucitaram a questão de inconstitucionalidade se pode considerar 'durante o processo', de acordo com os termos em que este pressuposto do recurso vem sendo interpretado e aplicado na jurisprudência do TC.
Sintetizando essa jurisprudência escreveu-se no Acórdão nº 595/96, publicado in DR. II Série, de 23/7/96:
'Este Tribunal vem entendendo o primeiro dos mencionados requisitos
– suscitação 'durante' o processo – por forma que ele deva ser tomado não num sentido puramente formal – tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância – mas num sentido funcional – tal que a arguição de inconstitucionalidade deverá ocorrer num momento em que o tribunal recorrido ainda pudesse conhecer da questão. Deve, portanto, a questão de constitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz, na medida em que se está perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe a existência de uma decisão anterior do tribunal a quo sobre a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso.' Uma vez que, em regra, o poder jurisdicional se esgota com a prolação da sentença e dado que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, há-de entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade, não é já, em princípio, meio idóneo e atempado para suscitar a questão de constitucionalidade.
Só em casos muito particulares, em que o recorrente não tenha tido oportunidade para suscitar tal questão ou em que, por força de preceito específico, o poder jurisdicional não se esgote com a decisão final, é que será admissível o recurso de constitucionalidade sem que sobre esta questão tenha havido uma anterior decisão do tribunal recorrido.'
Ora, no caso, a nulidade arguida reportou-se a um pretenso não conhecimento da verificação de abuso do direito invocado pelos autores, pois, os reclamantes entendiam ser de conhecimento oficioso a questão de saber se, nos termos do artigo 334º do Código Civil, o exercício do direito reconhecido por força do artigo 1550 do mesmo Código era ilegítimo.
E é então que os reclamantes suscitam a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 334º e 1550º do Código Civil na
'interpretação' que teria sido acolhida no acórdão reclamado, resultante da aplicação daquela última norma à situação de facto provada.
Estando agora em causa, como objecto do recurso, a questão da constitucionalidade apenas da norma do artigo 1550º do Código Civil (e não também da que consta do artigo 334º, podendo mesmo neste caso questionar-se se se trataria de questão de 'interpretação normativa'), é para este Tribunal claro que tal questão poderia e deveria ter sido suscitada antes de proferido o acórdão arguido de nulo.
Na verdade, ainda que o não conhecimento da questão da aplicação do artigo 334º do Código Civil integrasse uma omissão de pronúncia – o que não interessa discutir – seria unicamente essa a questão para a qual não estaria esgotado o poder jurisdicional, mas não a da conformidade constitucional da
'interpretação' da norma do artigo 1550º do Código Civil que os reclamantes controvertem – a aplicação dessa norma não é, a todas as luzes, causa de nulidade da decisão.
A suscitação da questão de constitucionalidade não ocorreu, assim,
'durante o processo' como o impõe o artigo 70º nº 1 alínea b) da Lei nº 28/82, pelo que bem decidiu o despacho reclamado não admitindo o recurso.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em Ucs Lisboa, 15 de Junho de 1999- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa