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Processo n.º 996/98 Conselheiro Sousa e Brito
(Messias Bento)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O Juiz Desembargador J. interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, de 23 de Setembro de 1998, que indeferiu o pedido de suspensão de eficácia do despacho do PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS, de 25 de Junho de
1998, “que determinou ao Sr. Dr. A. o prosseguimento dos ulteriores termos do processo disciplinar n.º 439 de que é instrutor, ao requerente instaurado por factos participados pelo Sr. Dr. J.A.”.
O recorrente indicou como constituindo objecto do recurso as normas constantes dos seguintes preceitos legais:
(a). Artigos 3º, nºs 4, alínea f), e 19; 1º; 26º, nºs 1 e 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro);
(b). Artigos 82º; 90º, n.º 1; e 95º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais);
(c). Artigo 76º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho
(Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - LPTA);
(d). Artigo 15º do mencionado Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA);
(e). Artigo 17º, n.º 1, alínea g), da citada Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei n.º 10/94, de 5 de Maio.
O relator, porém, ao proferir o despacho inicial, lançou no processo o seu parecer de que o aresto sob recurso apenas aplicou as normas constantes dos seguintes preceitos legais:
(a). Artigo 76º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho
(Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - LPTA);
(b). Artigo 15º do mencionado Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA);
(c). Artigo 17º, n.º 1, alínea g), da citada Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei n.º 10/94, de 5 de Maio. Acrescentou que, por isso - ou seja, porque só essas normas (as normas constantes dos preceitos legais por último indicados) foram aplicadas pelo acórdão recorrido -, só delas se pode conhecer no presente recurso. E que, assim, só se justifica o prosseguimento deste para decidir as questões de constitucionalidade que as têm por objecto. Quanto às restantes normas - a saber: as normas constantes dos artigos 3º, nºs 4, alínea f), e 19; 1º; 26º, nºs
1 e 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro); e dos artigos 82º; 90º, n.º 1; e 95º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais) -, não tendo elas sido aplicadas pela decisão impugnada, não pode o Tribunal conhecer da questão da sua constitucionalidade.
A esse parecer do relator respondeu o recorrente, dizendo, para o que aqui importa, o seguinte:
(a). Na decisão recorrida, o Supremo Tribunal Administrativo afirma, implicitamente, a constitucionalidade dos artigos 3º, n.º 4, alínea f), e n.º
19, 1º, 26º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, e nos artigos 82º, 90º, n.º 1, e 95º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, uma vez que dá por assente a legalidade do acto impugnado e a sua adequação ao interesse público;
(b). A questão de constitucionalidade foi suscitada durante o processo, e as normas em causa foram efectivamente aplicadas, se bem que de forma implícita;
(c). Daí que o recurso está em condições de prosseguir, conhecendo-se a final da inconstitucionalidade invocada do complexo normativo dado pelas normas dos artigos 3º, n.º 4, alínea f), e n.º 19, 1º, 26º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, e nos artigos 82º, 90º, n.º 1, e 95º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho.
O recorrente concluiu a sua alegação como segue:
1. O objecto do presente recurso de constitucionalidade é dado pela inconstitucionalidade das seguintes normas legais:
· artºs 3º, nº 4, alínea f), e nº 19, 1º, 26º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e artºs 82º, 90º, nº 1, e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho – que viola, o estabelecido no artº 37º, nº 2, da Constituição.
· art. 76º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho – que viola o disposto nos artºs 18º, nº 2, 20º, nº 5, e 268º, nº 4, da Constituição.
· art. 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho – que viola o disposto nos arts. 202º, nº 2, 203º, e 219º, nºs 1 e 2, da Constituição.
· artº 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio – que viola o disposto nos arts. 18º, nº 3, e 20º, nº
1, da Constituição.
2. O recorrente pretende da jurisdição protecção para o seu direito de, como juiz de tribunal superior, ser arguido num processo disciplinar cujo agente instrutor se encontre numa posição em que a sua imparcialidade não seja questionável – direito fundamental garantido pelos artºs 32º, nº 10, e 266º, nº
2, da Constituição.
3. O recorrente vem denunciado pelo recorrido particular Dr. Pego de lhe ter ofendido a honra, consideração e dignidade pessoal e profissional no decurso de uma sessão da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo, sendo instaurado o respectivo processo disciplinar nº 439 em que o agente instrutor em causa, o recorrido particular Dr. A., acusou disciplinarmente o recorrente das ditas ofensas, propondo a pena capital de aposentação compulsiva – expulsão pura e dura do recorrente da magistratura!
4. Em 22.6.98 o requerente suscitou o incidente de impedimento em relação ao agente instrutor do processo disciplinar nº 439, Dr. A., o que foi indeferido pelo despacho de 25.6.98 do recorrido público, despacho este de que o recorrente solicitou a suspensão de eficácia, não concedida pelo Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo agora recorrido.
5. No processo disciplinar levantado ao recorrente, enquanto juiz, estão em causa declarações ou opiniões, que aquele teria proferido ou emitido, durante a conferência da 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo no passado dia
12.3.98, pelo que constituindo infracção cometida no exercício do direito de exprimir o seu pensamento pela palavra (artº 37º, nº 1, da Constituição), são da exclusiva apreciação pelos tribunais judiciais (nº 3).
6. É manifesto que o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais não é um tribunal.
7. A consagração constitucional da competência disciplinar do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais não significa que tal competência disciplinar inclua a apreciação das infracções ao abuso da liberdade de expressão, pois tal apreciação, também por força da Constituição, é da competência exclusiva dos tribunais judiciais.
8. Assim, o processo disciplinar em curso implica a violação do princípio da separação de poderes, constituindo a prática de procedimentos por órgão administrativo incluído nas atribuições dos tribunais judiciais, o que configura o vício de usurpação de poder, e acarreta a sua nulidade, nos termos do artº
133º, nº 2, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo, nulidade que aqui vai invocada, nos termos e para os efeitos do artº 134º, nºs 1 e 2.
9. Perante a invocação da nulidade referida feita oportunamente, o Tribunal recorrido limitou-se a afirmar ser compulsivo que parta “da presunção da legalidade do acto suspendendo e da sua adequação à realização do interesse público que visou prosseguir”, considerando “irrelevantes as considerações do requerente quanto à pretensa ilegalidade do acto em causa”.
10. Daí que tenha feito aplicação implícita do complexo normativo dado pelos artºs. 3º, nº 4, alínea f), e nº 19, 1º, 26º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e nos artºs 82º, 90º, nº 1, e 95º, nº 1, alínea a), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, em oposição com o estabelecido no artº 37º, nº 2, da Constituição, na medida em que as normas em causa sustentam normativamente o processo administrativo sancionador em curso contra o recorrente enquanto juiz, o que gera a sua inconstitucionalidade.
11. O agente instrutor do procedimento sancionatório administrativo nulo tem o dever de actuar imparcialmente, não obstante a nulidade.
12. Com a suspensão de eficácia, pretende o recorrente que, continuando-se a tramitar o procedimento sancionatório administrativo nulo, a respectiva instrução não seja da responsabilidade de agente parcial, a fim de que não se comprometa irremediavelmente o acto final do processo disciplinar em curso.
13. O Acórdão recorrido indefere o pedido, considerando que dá por assente a legalidade do acto suspendendo e a sua adequação à realização do interesse público que visou prosseguir, e que não se encontra verificado o requisito do artº 76º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho.
14. O Tribunal Constitucional não teve ainda ensejo de testar a conformidade constitucional da aplicação que a justiça administrativa vem fazendo do instituto da suspensão jurisdicional de eficácia dos actos administrativos impugnados, à luz da IV Revisão Constitucional.
15. A IV Revisão Constitucional veio assegurar a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos – artº 20º, nº 1, da Constituição – realçando-se aqui a expressão defesa efectiva, tutela efectiva (artº 20º, nº 5).
16. Estes direitos à efectivação jurídica dos direitos e interesses jurídicos são específica e constitucionalmente concretizados no que toca ao cidadão na veste de administrado, garantindo-se aos “administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, [...] a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, [...] e a adopção de medidas cautelares adequadas” (artº 268º, nº 4).
17. A justiça administrativa cautelar, no caso de impugnação contenciosa de actos administrativos inválidos, tem uma função essencialmente garantística.
18. É aqui de invocar o artº 2º, nº 2, do CPC, com aplicação no contencioso administrativo, face ao disposto no artº 1º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, mas decorrendo desde logo dos artºs 20º, nº 1, e 268º, nº 4, da Constituição.
19. Assim, podemos afirmar como pressupostos da concessão da suspensão de eficácia judicial dos actos administrativos impugnados, o “periculum in mora”, e o “fumus boni iuris”, na medida em que espelhados pelas diversas alíneas do nº 1 do artº 76º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, formatadas à luz da garantia introduzida pela IV Revisão Constitucional.
20. O Acórdão recorrido para indeferir o pedido de suspensão limita-se a transpor, em sede de “prejuízos”, o princípio da impugnação unitária defendido para justificar a irrecorribilidade dos actos preparatórios ou instrumentais, e a excluir do requisito “prejuízo” os chamados danos morais, insusceptíveis de avaliação pecuniária.
21. Tais exclusões do âmbito normativo em apreço impedem a integração da factualidade invocada pelo recorrente nos artºs 115º a 146º da petição, o que significa uma restrição injustificada e desproporcional da sua posição jurídica, na medida em que não permite que os seus direitos e interesses espelhados na situação em que se encontra actualmente (de que a nulidade do procedimento administrativo sancionador é elemento integrante) sejam confrontados com o interesse público concretamente prosseguido pela manutenção em função de instrução de agente impedido por parcialidade.
22. Assim, afigura-se ao recorrente que a interpretação do art.º 76.º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, aplicada pelo Tribunal recorrido, não observa o parâmetro constitucional dado pelo art.º 20º, nº 5,
(defesa de 'direito a defesa em processo administrativo sancionador' de forma a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaça de violação daquele), concretizado pelo art.º 268º, nº. 4 (tutela jurlsdlclonal efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos traduzido na adopção de medidas cautelares adequadas); nem observa o parâmetro constitucional constituído pelo art.º 18º, nº 2, na medida em que a restrição efectuada resulta, não de lei específica, nem da necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, mas sim de posições jurisprudenciais ditas pacíficas.
23. Pelo que a interpretação e aplicação efectuadas pelo Supremo Tribunal Administrativo do artº 76º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, violam o disposto nos art.ºs 20º, nº 5, e 268º, nº 4, bem como no art.º
18º, nº 2, todos da Constituição.
24. O Acórdão recorrido aplicou o disposto no artº 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, já que, apesar do carácter reservado do órgão jurlsdlclonal
'conferência”, o agente do Ministério Público teve intervenção na sessão em que foi resolvido indeferir o pedido do recorrente, desacompanhado deste, chegando a apor a sua assinatura no acto jurisdicional, pelo que o agente em causa vem configurado como “juiz”.
25. Daí que o art.º 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na medida em que permite essa configuração, seja inconstitucional por violação do disposto nos artºs 202º, nº 2, 203º, 219º, nºs 1 e 2, da Constituição.
26. Na medida em que os juízes, sendo o recorrente juiz, só nos casos especialmente previstos na lei podem ser responsabilizados disciplinarmente em razão do exercício das suas funções (artº 5º, nº 2, da Lei nº 21/85, de 30 de Julho), por definição, qualquer processo administrativo sancionador de juiz pressupõe necessariamente que a respectiva infracção disciplinar tenha sido praticada 'em razão das funções de magistrado judicial'.
27. O recorrente vem ao tribunal defender-se de razões de índole disciplinar directamente conexionadas com o exercício das suas funções - porque se as razões de índole disciplinar não estivessem directamente conexionadas com o exercício das funções do recorrente, o processo disciplinar em causa era inadmissível.
28. O processo disciplinar de que o recorrente é alvo - o processo disciplinar nº 439 do CSTAF - assenta na circunstância de que a respectiva infracção disciplinar tenha sido praticada 'em razão das funções de magistrado judicial'.
29. O próprio Acórdão recorrido reconhece que o recorrente é infractor 'por factos ocorridos durante o exercício das suas funções' de juiz.
30. Se a expressão 'exercício das suas funções' é idêntica nos art.º 5º, nº 2, e no artº 17º, nº 1, alínea g), ambos da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, não se vislumbra motivo jurídico para a interpretar de forma diversa: para perseguir o recorrente, a expressão tem um determinado significado jurídico; para o recorrente se defender dessa perseguição, a expressão já tem outro significado jurídico!
31. Qualquer Estatuto, enquanto conjunto de direitos e deveres aplicáveis a titulares de órgãos do Estado - um juiz é titular de um órgão jurisdicional - deve ser aplicado unitariamente, isto é, as suas expressões normativas têm de manter o mesmo significado jurídico face às diversas hipóteses em que suscite a sua aplicação, sob pena de relevar a facticidade dos resultados pretendidos, em detrimento da conformação resultante do dever-ser jurídico.
32. O direito conferido pelo art.º 17º, nº 1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, é direito especial dos juízes, traduzido em isenção de preparos e custas em qualquer acção em que o juiz seja parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções.
33. A isenção é concedida (aos juízes) nos expedientes judiciais em que é pedida por ou contra um juiz, uma determinada composição de um litígio suscitado por causa do exercício das suas funções.
34. Para efeito da isenção de custas em causa, um juiz está no exercício de funções quando se encontra em posição de poder actuar os poderes funcionais implicados na competência do tribunal a que está adstrito.
35. Por isso, o exercício de funções deve coconstituir a causa de pedir da acção, de tal forma que aqui são contidos os litígios de natureza estatutário em que o juiz é parte; ou seja, a acção há-de fundar-se em factos directamente conexionados com o exercício das funções do juiz, pelo que a isenção concedida é uma isenção de tipo subjectivo - vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº
466/97, in Diário da República, II, nº 245, de 22.10.97.
36. No caso dos autos, o litígio surge em virtude de o 'exercício de funções de juiz do Tribunal Central Administrativo', em comissão permanente de serviço, do recorrente, já que a pretexto de punição disciplinar mediante processo disciplinar instruído por agente impedido pretende o órgão recorrido puni-lo por eventual abuso de liberdade de expressão no decurso de uma sessão do órgão jurisdicional de que o recorrente é titular.
37. Assim não considerando, está-se a interpretar restritivamente o artº 17º, nº
1, alínea g), da Lei nº 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei nº 10/94, de 5 de Maio, com violação do disposto nos art.ºs 18º, nº 3, e 20º, nº 1, da CRP. Termos em que requer: a) - a declaração de inconstitucionalidade das normas apontadas, na interpretação aplicada pelo Tribunal “a quo”; b) - a revogação do Acórdão recorrido; c) - a baixa do processo ao Supremo Tribunal Administrativo, a fim de ser reformada a decisão em conformidade com o julgamento de inconstitucionalidade, deferindo-se o pedido de suspensão de eficácia subjacente aos presentes autos.
Por sua parte, o PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS concluiu a sua alegação do modo seguinte:
1. A aplicação do preceituado no artigo 76º, n.º 1, alínea a), da LPTA, na interpretação acolhida no acórdão recorrido, não consubstancia qualquer inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 18º, n.º 2, e 268º, n.º 4, da CRP.
2. O artigo 15º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, tal como foi aplicado no acórdão recorrido, também não enferma de qualquer inconstitucionalidade.
3. Uma vez que não se enquadra a realidade factual de que decorre o pedido, no normativo do artigo 17º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 21/85,de 30 de Julho, na redacção dada pela Lei n.º 10/94, de 5 de Maio, também relativamente a este preceito, não se verifica qualquer inconstitucionalidade. Termos em que será de manter o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, de 23 de Setembro de 1998 [...].
2. Cumpre decidir.
III. Fundamentos:
3. O objecto do recurso:
No mencionado parecer do relator, escreveu-se: Diz o recorrente ter suscitado a inconstitucionalidade das referidas normas “na petição do pedido de suspensão de eficácia, bem como no pedido de declaração de ineficácia”. E acrescenta que o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de
23 de Setembro de 1998, ora sob recurso, as aplicou. O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 23 de Setembro de 1998, aqui em recurso, indeferiu o pedido de suspensão de eficácia formulado pelo recorrente, tendo por objecto o despacho do Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, de 25 de Junho de 1998, “que determinou ao Sr. Dr. A. o prosseguimento dos ulteriores termos do processo disciplinar n.º 439 de que é instrutor, ao requerente instaurado por factos participados pelo Sr. Dr. J. A.”. O indeferimento desse pedido fundou-se em que, no caso, se não verifica o requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), ou seja, a probabilidade de prejuízo de difícil reparação decorrente da execução do acto - “o que, só por si - lê-se no acórdão
- conduz ao indeferimento da pretensão do requerente”. E isto - ponderou o aresto -, porque a suspensão de eficácia do acto só se pode decretar, verificando-se, cumulativamente, os requisitos enunciados nas referidas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 76º. Não há no acórdão uma única palavra sobre a questão da constitucionalidade do mencionado artigo 76º, n.º 1, alíneas a), b) e c), na interpretação apontada. Apenas a indicação de que essa interpretação constitui jurisprudência pacífica. Este silêncio terá, muito possivelmente, ficado a dever-se ao facto de o Supremo Tribunal Administrativo ter entendido que o requerente, quando, no n.º 113 da petição, afirmava “isto significa que a posição tradicional de considerar em separado os requisitos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 76º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, pode, no contexto global da situação concreta, consubstanciar-se numa interpretação inconstitucional daquela norma
(...)”, não estava propriamente a questionar a legitimidade constitucional de tal interpretação. E, na verdade, há-de convir-se que este não é um modo particularmente adequado de suscitar uma questão de constitucionalidade. Aceita-se, no entanto, que tal questão de constitucionalidade foi suscitada nos autos, para o efeito de abrir a via do recurso de constitucionalidade. No aludido acórdão - que foi tirado na sessão de 23 de Setembro de 1998, em que esteve presente o Magistrado do Ministério Público, conforme consta do seu texto e se regista na acta -, o Supremo Tribunal Administrativo decidiu, porém, duas questões de constitucionalidade, estas, sim, claramente colocadas pelo requerente. A elas respondeu o Supremo Tribunal Administrativo como segue:
(a). não é inconstitucional o artigo 15º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, ao abrigo do qual teve lugar a intervenção do Ministério Público na sessão de julgamento;
(b). não é inconstitucional o artigo 17º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 21/85, de
30 de Julho, na redacção da Lei n.º 10/94, de 5 de Maio, interpretado no sentido de que o requerente do pedido de suspensão de eficácia, que é Juiz Desembargador, não beneficia, nesse processo, de isenção de custas, porque esse pedido “decorre de um processo disciplinar por factos ocorridos durante o exercício das suas funções mas que não têm nenhuma conexão com a função de julgar”. Como decorre de quanto se disse, o acórdão recorrido não aplicou as normas que constam dos artigos 3º, nºs 4, alínea f), e 19; 1º; 26º, nºs 1 e 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro), nem as constantes dos artigos 82º; 90º, n.º 1; e 95º, n.º 1., alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais). De resto, nem as podia aplicar, pois o Supremo Tribunal Administrativo não apreciou decisão que tivesse aplicado uma pena disciplinar. Limitou-se a apreciar o pedido de suspensão de eficácia do despacho do Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que “determin[ou] que o Exmº Conselheiro A. prossiga os ulteriores termos do processo disciplinar” de que é instrutor, instaurado contra o recorrente. Tal aresto apenas aplicou as normas constantes dos seguintes preceitos legais:
(a). Artigo 76º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho
(Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - LPTA);
(b). Artigo 15º do mencionado Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA);
(c). Artigo 17º, n.º 1, alínea g), da citada Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei n.º 10/94, de 5 de Maio. Como só as normas constantes dos preceitos legais por último indicados foram aplicadas pelo acórdão recorrido, só delas se pode conhecer no presente recurso. Por isso, só se justifica que o prosseguimento do recurso para decidir as questões de constitucionalidade que as têm por objecto. Quanto às restantes normas, não tendo elas sido aplicadas pela decisão impugnada, não pode o Tribunal conhecer da questão da sua constitucionalidade. Nessa parte, pois, não pode conhecer-se do recurso.
Nada do que aí se escreveu foi abalado pela mencionada resposta do recorrente.
De facto, suposto que pudesse dizer-se, como faz o recorrente, que o aresto sob recurso afirma, “implicitamente, a constitucionalidade dos artigos 3º, n.º 4, alínea f), e n.º 19, 1º, 26º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, e nos artigos 82º, 90º, n.º 1, e 95º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, uma vez que dá por assente a legalidade do acto impugnado e a sua adequação ao interesse público” - questão que aqui não tem que decidir-se -, nem por isso poderia concluir-se que ele aplicou tais normas. Ora, só a aplicação, por parte da decisão recorrida, como sua ratio decidendi, das normas cuja inconstitucionalidade é suscitada pelo recorrente, é susceptível de abrir a via do recurso de constitucionalidade. Uma eventual afirmação, mesmo que explícita, da constitucionalidade dessas normas, não sendo elas aplicadas pela decisão recorrida como sua ratio decidendi, não passa de um obiter dictum, insusceptível de abrir as portas do recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, o Tribunal não vai conhecer do recurso, na parte em que ele tem por objecto as normas constantes dos artigos 3º, n.º 4, alínea f), e n.º 19, 1º,
26º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro), e nos artigos 82º, 90º, n.º 1, e 95º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho.
Conhecer-se-á, pois, tão-só da questão de constitucionalidade das normas que o acórdão recorrido aplicou, a saber:
(a). da norma constante do artigo 76º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - LPTA);
(b). da norma constante do artigo 15º do mencionado Decreto-Lei n.º 267/85, de
16 de Julho (LPTA); e
(c). da norma constante do artigo 17º, n.º 1, alínea g), da citada Lei n.º
21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei n.º 10/94, de 5 de Maio.
É o que, seguidamente, passa a fazer-se.
4. As questões de constitucionalidade:
4. 1. A norma constante do artigo 76º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos):
4.1.1. Este preceito legal reza assim: A suspensão de eficácia do acto recorrido é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos: a). A execução do acto cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso.
O recorrente sustenta que “a interpretação do artigo 76º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, aplicada pelo tribunal recorrido, não observa o parâmetro constitucional dado pelo artigo 20º, n.º 5 (‘direito a defesa em processo administrativo sancionador’ de forma a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaça de violação daquele), concretizado pelo artigo
268º, n.º 4 (tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos traduzida na adopção de medidas cautelares adequadas); nem observa o parâmetro constitucional constituído pelo artigo 18º, n.º 2, na medida em que a restrição efectuada resulta, não de lei específica, nem da necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses protegidos, mas sim de posições jurisprudenciais ditas pacíficas”. E que, por isso, “a interpretação e aplicação efectuadas pelo Supremo Tribunal Administrativo do artigo 76º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, violam o disposto nos artigos 20º, n.º 5, e 268º, n.º 4, bem como no artigo 18º, n.º 2, todos da Constituição”.
Pois bem: o acórdão recorrido, quanto a ser necessário, para que se decrete a suspensão do acto impugnado, que a execução deste “cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso”, disse: Só são de considerar para o efeito os prejuízos que se podem considerar adequados ou prováveis da execução do acto, como se infere da expressão
“provavelmente” ínsita no citado normativo, o que constitui apelo à teoria da causalidade adequada, consagrada no artigo 563º do Código Civil, não relevando os meramente hipotéticos, virtuais ou conjecturais. Para fundamentar o requisito em análise, o requerente alega, no essencial, o seguinte:
”O instrutor do processo disciplinar, Dr. A., já tem uma opinião formada e inabalável sobre a legalidade e regularidade das eleições pelas quais o Sr. Dr. P. se ‘elegeu’ presidente do Tribunal Central Administrativo sendo que, por outro lado, é suspeito de um inquérito criminal em que o requerente é ofendido, o que constitui índice e manifestação de possível parcialidade de actuação.
“Daí que [a] ‘espada de Dâmocles’ do processo disciplinar, instruído pelo Sr. Dr. A., com clara intenção expulsiva, sobre a cabeça do requerente, reforçada pela instauração do referido processo crime, implique uma grave perturbação da vida diária do requerente, face ao previsível propósito de reedição da situação em que se encontra o Juiz Pimenta, sem vencimento, apesar das suspensões de eficácia e dos recursos contenciosos com efeito suspensivo que instaurou contra a pena de aposentação compulsiva aplicada pelo CSTAF no mesmo dia em que decidiu instaurar o processo disciplinar ao requerente.
“A perspectiva de perder o vencimento até à decisão do recurso contencioso levado contra o acto determinativo de processo disciplinar, tal como aconteceu ao Juiz Pimenta, implica uma grande preocupação para o requerente, já que é exclusivamente com o seu vencimento que faz face ao seu sustento e ao de dois filhos menores de 10 e 8 anos, exclusivamente a seu cargo”. O requerente indica depois com grande pormenor as despesas que tem com o seu agregado familiar, às quais tem de prover com o seu vencimento, pois não aufere qualquer outro rendimento. [E continua]:
“O prosseguimento do processo disciplinar por instrutor impedido, tal como se configura, pela perturbação, preocupação e falta de serenidade que gera no requerente, viola a independência que como juiz lhe deve ser assegurada, desde logo pelo recorrido particular Sr. Dr. A., enquanto agente do CSTAF, a quem precisamente cabe a atribuição de garantir essa independência, constitucionalmente imposta pelo artigo 203º da Constituição.
“A perturbação, preocupação e falta de serenidade apontadas, pelo desvalor que encerram para o requerente, configuram-se como prejuízos para os interesses que o mesmo defende (interesses como pai e como juiz do Tribunal Central Administrativo), analisando-se como uma consequência típica, normal, provável da execução do acto que determinou o prosseguimento do processo disciplinar por alegado abuso da liberdade de expressão, a cargo de instrutor impedido”. Ora, analisando o requisito em causa à luz da alegada factualidade, é manifesta a sua inverificação no caso vertente. No que concerne às equacionadas perdas de rendimento, trata-se de danos eventuais, hipotéticos ou conjecturais, na medida em que não decorrem do acto suspendendo, mas de um acto futuro que não se sabe sequer ainda, com segurança, se irá ocorrer - o acto punitivo. Trata-se, pois, de danos sem qualquer conexão com o acto requerido e muito menos em termos de relação de causalidade adequada. Quanto à alegada perturbação, preocupação e falta de serenidade que a execução imediata do acto causa ao requerente, trata-se de incómodos inerentes ao processo disciplinar, constituindo uma sua consequência normal. Tal situação, obviamente, que é susceptível de causar perturbações ou incómodos, em maior ou menor grau, ao visado, tudo dependendo da sua compleição psíquica. Todavia esse tipo de incómodos está ligado à simples prolação do acto que manda instaurar o processo disciplinar, e não à sua execução, pelo que também a suspensão de eficácia do acto em causa nos presentes autos é insusceptível de paralisar esses efeitos. Pelo exposto, há que concluir pela inverificação do requisito da alínea a) do n.º 1 do artigo 76º da LPTA, o que, só por si, conduz ao indeferimento da pretensão do requerente.
4.1.2. Vejamos, então:
A norma sub iudicio não viola o artigo 20º, n.º 5, da Constituição.
Este preceito constitucional dispõe como segue:
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
A garantia de acesso aos tribunais (consagrada no n.º 1 deste artigo 20º) visa assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos. Como é sabido, a eficácia desta garantia depende, sobremaneira, de a justiça ser administrada em prazo razoável (cf. o n.º 4 do artigo 20º da Constituição), pois
- como escreveu MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, página 372) - “vencer o pleito, mas só tarde e a más horas, equivale em certa medida a não vencer”.
De acordo com o disposto do n.º 5 do artigo 20º da Lei Fundamental, que se transcreveu atrás, na revisão constitucional de 1997, entendeu-se que, quando estiverem em causa direitos, liberdades e garantias pessoais - que são os previstos nos artigos 24º a 47º - o legislador, com vista a que os cidadãos possam obter “tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”, deve organizar procedimentos judiciais céleres e com prioridade. Nos dizeres do deputado JOSÉ MAGALHÃES: “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei deve assegurar procedimentos judiciais credibilizados pela celeridade e prioridade de modo a obter tutela efectiva em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” (cf. Diário da Assembleia da República, I série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997). Ou seja: as leis hão-de prever instrumentos processuais que - nas palavras do deputado LUÍS DE SÁ
(Diário da Assembleia da República, I série, n.º 94, de 16 de Julho de 1997) - permitam aos cidadãos “recorrer, de uma forma muito célere e pronta, dando um conteúdo efectivo e uma protecção eficaz aos direitos, liberdades e garantias pessoais”.
Ora, antes de mais, o direito a recurso contencioso não é um direito pessoal. Ao que acresce que a suspensão de eficácia se caracteriza, justamente, por ser um procedimento cautelar, que está associada ao recurso contencioso de anulação, na dependência do qual se encontra, e por ter a natureza de processo urgente [cf. artigos 6º, n.º 1, e 76º a 81º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos
(Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho)].
É que, em determinadas circunstâncias, a suspensão de eficácia torna-se indispensável para acautelar o efeito útil daquele recurso. Indispensável, porque, num sistema de administração executiva, como é o português, o recurso contencioso de anulação não tem, em regra, efeito suspensivo, pois a autoridade própria do acto administrativo conduz a que, não obstante a interposição do recurso, o acto impugnado possa, em regra, ser executado. Fala-se, a tal propósito, em privilégio de execução prévia. E invoca-se também o facto de os actos administrativos gozarem de uma presunção de legalidade. Com a suspensão de eficácia, procura-se, pois, obstar a que a demora normal do recurso possa retirar à sentença de provimento todo o seu alcance prático. O procedimento de suspensão de eficácia é, assim, um procedimento judicial urgente, célere e com prioridade (cf. artigos 6º, nºs 2 e 3, e 78º da citada Lei de Processo dos Tribunais Administrativos). Só desse modo, de resto, está apto a desempenhar a sua função, que é a de dar combate ao periculum in mora.
Um procedimento judicial assim caracterizado - e, obviamente, a norma que o recorta - não pode entrar em colisão com o mencionado n.º 5 do artigo 20º da Constituição, que tem exactamente em vista assegurar, em tempo útil, a tutela efectiva dos direitos, liberdades e garantias pessoais contra ameaças e violações de que sejam objecto.
4.1.3. A norma sub iudicio também não viola o artigo 268º, n.º 4, da Constituição.
Este o artigo 268º, n.º 4, da Constituição, após a revisão de 1997, passou a dispor como segue:
É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.
Este preceito constitucional veio deixar claro que o princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa - a mais do que obrigar o legislador a regular o clássico direito ao recurso contencioso contra actos administrativos; e, bem assim, o direito de acesso à justiça administrativa para tutela dos direitos ou interesses legalmente protegidos (nomeadamente, das acções para o reconhecimento desses direitos ou interesses) - obriga-o a prever meios processuais que permitam ao administrado exigir da Administração a prática de actos administrativos legalmente devidos (acções cominatórias) e, quando for o caso, lançar mão de medidas cautelares adequadas.
É que tudo são manifestações (concretizações) do direito de acesso aos tribunais para defesa, por parte dos administrados, dos “seus direitos e interesses legalmente protegidos”, como dispõe o n.º 1 do artigo 20º da Constituição.
O mencionado artigo 268º, n.º 4, não impede, porém, que a lei estabeleça requisitos a cuja verificação condiciona o decretamento judicial da suspensão de eficácia do acto administrativo impugnado ou a impugnar. Não impede, designadamente, que exija, como condição desse decretamento, que a execução do acto “cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso”
É que, o acto impugnado visa a prossecução do interesse público.
Assim, pois, é razoável que o interesse público ceda, se for provável que o acto administrativo impugnado cause prejuízos de difícil reparação ao interessado - probabilidade que existe, toda a vez que, de acordo com um juízo de prognose, a execução de tal acto seja adequada a causá-los. Nesse caso, então, justifica-se que se suspenda a execução do acto administrativo. Não é, porém, constitucionalmente exigível que se ordene a suspensão de eficácia, quando os prejuízos forem apenas “eventuais, hipotéticos ou conjecturais”, ou quando os mesmos se traduzam em incómodos (“perturbação, preocupação e falta de serenidade”) directamente decorrentes da instauração de um processo disciplinar.
Ora, a perda de vencimentos invocada pelo recorrente é, segundo o acórdão recorrido, meramente hipotética ou conjectural. Trata-se de “danos sem qualquer conexão com o acto requerido e muito menos em termos de relação de causalidade adequada”. No tocante aos invocados incómodos (“perturbação, preocupação e falta de serenidade”, referidas pelo recorrente), são eles “inerentes ao processo disciplinar, constituindo uma sua consequência normal”. Ou seja - diz o acórdão recorrido - estão ligados “à simples prolação do acto que manda instaurar o processo disciplinar, e não à sua execução”. A suspensão de eficácia do acto que determinou o prosseguimento desse processo disciplinar seria, por isso mesmo - acrescenta o aresto -, “insusceptível de paralisar esses efeitos”.
A interpretação, que o acórdão recorrido fez do artigo 76º, n.º 1, alínea a), da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos, na parte em que este exige, como condição do decretamento da suspensão de eficácia do acto administrativo impugnado, que a sua execução “cause provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso”, é, pois, compatível com a Constituição (recte, com o artigo 268º, n.º
4).
4.1.4. A norma sub iudicio tão-pouco viola o artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
Este preceito constitucional dispõe como segue: A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
De facto, contrariamente ao que vem sustentado pelo recorrente, a dita norma não contém uma restrição que “resulta, não de lei específica, nem da necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses protegidos, mas sim de posições jurisprudenciais ditas pacíficas”.
A norma questionada, quando faz depender o decretamento da suspensão de eficácia do facto de o acto impugnado ser adequado a causar prejuízos de difícil reparação, não restringe o direito ao recurso contencioso. Limita-se, antes, a regulamentar o exercício de um tal direito em termos que, já se viu, são razoáveis e proporcionados - e nessa medida necessários - à prossecução do interesse público visado com a prática do acto impugnado (cfr. artigo 266º da Constituição) e à 'necessária eficácia' da Administração (artigo 267º, nº 2 da Constituição), sem descurar os legítimos interesses do requerente, pois que o protege contra a risco de prejuízos de difícil reparação.
E também não há inconstitucionalidade por violação da garantia de tutela juridicional efectiva mediante a adopção de medidas cautelares adequadas, consagrada a partir de 1997 no nº 4 do artigo 268º, seja porque os limites resultantes dos interesses constitucionalmente protegidos que já se referiram são visados à partida pela exigência constitucional de adequação daquelas medidas cautelares, ou seja porque se deduzem sistematicamente da protecção constitucional ao interesse público prosseguido pela Administração e à necessária eficácia desta.
4.2. A norma constante do artigo 15º do mencionado Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA):
Este preceito legal, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, está assim redigido:
No Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de julgamento e é ouvido na discussão.
Pretende o recorrente que esta norma viola o disposto nos artigos 202º, n.º 2,
203º, e 219º, nºs 1 e 2, da Constituição, uma vez que permitiu ao agente do Ministério Público intervir “na sessão em que foi resolvido indeferir o pedido do recorrente, desacompanhado deste, chegando a apor a sua assinatura no acto jurisdicional, pelo que o agente em causa vem configurado como juiz”.
O acórdão recorrido decidiu que o referido artigo 15º - que impõe ao Ministério Público que “assista às sessões de julgamento, sendo ouvido na discussão, quando lhe ‘esteja confiada a defesa da legalidade’, isto é, sempre que não represente os interesses de qualquer dos intervenientes no processo” - não viola nenhuma daquelas normas constitucionais, “porquanto não perturba a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do requerente ou a decisão do conflito de interesses que se suscitam, e até favorece a defesa da legalidade democrática, tal como, de resto, lhe é imposto pelo n.º 1 do artigo 219º da Constituição. Além disso, a presença do Ministério Público na sessão de julgamento em nada afecta a independência do Tribunal, apenas sujeito, como está, ao imperativo da lei”.
Vejamos, então:
No que toca ao núcleo tradicionalmente central da justiça administrativa, que é o recurso contencioso, o Ministério Público tem legitimidade para interpor recursos de anulação de quaisquer actos administrativos [cf. artigo 46º, n.º 2, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 41.234, de 20 de Agosto de 1957). E, quando não seja o recorrente, tem o poder de suscitar a regularização da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, e pronunciar-se sobre questões que não tenha suscitado; promover diligências de instrução; emitir parecer sobre a decisão final a proferir; arguir vícios não invocados pelo recorrente; e requerer, assumindo a posição de recorrente, o prosseguimento de recurso interposto durante o prazo em que podia impugnar o respectivo acto, para julgamento não abrangido em decisão, ainda não transitada, que tenha posto termo ao recurso por desistência ou outro fundamento impeditivo do conhecimento do seu objecto [cf. artigo 27º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho)]. Para este efeito, o Ministério Público - para além de poder fazer requerimentos no processo (cf. o citado artigo 27º) - tem vista dos autos, inicialmente, logo que feito o preparo (cf. artigo 42º da citada Lei de Processo), e, mais tarde, depois de apresentadas as alegações ou de findo o respectivo prazo (cf. artigo 53º da mesma Lei). Além disso, quando o recorrido ou o próprio relator suscitem a questão prévia do não conhecimento do recurso, o Ministério Público é ouvido sobre essa questão (cf. artigo 54º da referida Lei de Processo). Tudo isto, obviamente, com vista à defesa da legalidade, que é uma das funções que a Constituição lhe comete, no artigo 219º, n.º 1: “Ao Ministério Público - diz-se nesse preceito - compete [...], nos termos da lei [...], defender a legalidade democrática”.
Não se vê, por isso, como é que tal norma pode violar o artigo 219º, nºs 1 e 2, da Constituição.
Em casos como o dos autos, em que o Ministério Público não é parte no recurso, o normativo em causa também não viola o artigo 202º, n.º 2, da Constituição - que dispõe que “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados” -, nem o artigo 203º da mesma Lei Fundamental, que prescreve que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”.
Cabe perguntar se a norma do referido artigo 15º viola a norma que se extrai do nº 4 do artigo 20º da Constituição, na parte em que consagra o direito a um
'processo equitativo' . Tal violação não foi invocada pelo recorrente, mas o Tribunal não está vinculado às normas perante si invocadas como fundamento
(artigo 79-C da Lei do Tribunal Constitucional).
O conceito de 'processo equitativo' tem sido desenvolvido sobretudo pela jurisprudência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo artigo 6º tem precisamente como epígrafe 'direito a um processo equitativo' e cujo § 1º dispõe
, retirando as palavras do artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que 'qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativamente', frase que é repetida no artigo 14º do Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos. Ora a revisão constitucional pretendeu precisamente, fazendo uma 'transposição explícita do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem', tendo presente 'todo o trabalho do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem', 'dar dignidade constitucional' (expressões do deputado Alberto Martins na reunião de 5.9.1996 da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, edição provisória não oficial de José de Magalhães, Dicionário da Revisão Constitucional em CD-Rom, 2ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 1999), a conteúdos normativos que, através daquele direito internacional, já integravam a ordem jurídica portuguesa e inclusivamente, num certo entendimento, através da remissão no nº 2 do artigo 16º, a própria ordem constitucional (no mesmo sentido se pronunciou o deputado Luis Sá, ibidem: 'toda a densificação é bem vinda e nesse sentido creio que a consagração do princípio do processo equitativo pode ser uma contribuição para que no plano da legislação ordinária venha a ser reforçado o princípio da igualdade das armas, dos direitos de defesa, da justiça no processo em termos gerais': também o deputado Luis Marques Guedes admitiu um 'ganho acrescido').
A partir do Acórdão Lobo Machado contra Portugal de 20 de Fevereiro de 1996
(Recueil des arrêts et décisions 1996 - I, pp. 195 ss.), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem firmou uma jurisprudência segundo a qual o direito a um processo equitativo inclui 'o direito a um processo contraditório. Este implica em princípio a faculdade para as partes de um processo, penal ou civil, de tomar
conhecimento de, e de discutir, todo o elemento ou observação apresentado ao juíz, mesmo por um magistrado independente, tendo em vista influenciar a decisão' (p.206, § 31). Tal direito teria sido violado no caso pela impossibilidade para o interessado de tomar conhecimento e de responder ao parecer do procurador-geral adjunto anterior ao julgamento do recurso na secção social do Supremo Tribunal da Justiça - parecer que foi de apoio à decisão recorrida - (p. 205, § 31) e também pela presença daquele Magistrado no julgamento, onde teve oportunidade de se pronunciar novamente no sentido do anterior parecer - pelo que a aparência de imparcialidade do Tribunal, ao dispor-se a ouvir de novo apenas uma das opiniões em confronto também seria afectada (§ 32). Esta jurisprudência foi confirmada uniformemente em acórdãos posteriores, nomeadamente nos Acórdãos Vermeulen, da mesma data (Recueil cit.,
1996-I, p. 225 ss., 234, § 33 e 34), Niederost-Huber, de 18 de Fevereiro de 1997
(Recueil cit., 1997-I, p. 101 ss., 108-109 §§ 24-31), Montovanelli de 18 de Março de 1997 (Recueil cit., 1997-II, p. 424 ss., 436, § 33), Van Orshoven, de
25 de Julho de 1997 (Recueil cit., 1997 - III, p. 1039 ss., 1051 § 41). É especialmente significativo o Acórdão Montovanelli, por se tratar de jurisdição administrativa francesa.
Com esta jurisprudência obtida por unanimidade, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirmou uma viragem de jurisprudência da Comissão dos Direitos do Homem, que na sua decisão de 9 de Dezembro de 1986 sobre a queixa nº 10938/84
(caso Kaufmann: Décisions et rapports 50, p. 98) tinha entendido que a intervenção do ministério público belga junto da Cour de Cassation, não sendo ele parte no processo e tendo por função exclusiva a defesa da legalidade, intervenção essa sem possibilidade de resposta do recorrente, não ofendia o artigo 6º, § 1º da Convenção. Precisamente no caso Lobo Machado a Comissão tinha passado a considerar, por catorze votos contra nove, que 'tendo em conta a importância atribuída pela jurisprudência dos órgãos da Convenção às aparências e à sensibilidade acrescida do público às garantias de uma boa justiça' não se poderia considerar como neutra do ponto de vista das partes a intervenção do Ministério Público, uma vez que ao pronunciar-se no sentido do não provimento do recurso, 'tinha agido como adversário objectivo do recorrente' (Recueil cit.,
1996 - I, p.216). Haveria, por consequente, uma 'ruptura da igualdade das armas'. A Comissão (p. 217) e no seu seguimento o Tribunal (p. 207) questionaram também que as missões atribuídas ao Ministério Público, nomeadamente quanto à unidade de jurisprudência, a segurança jurídica ou o interesse geral, exigissem o tipo de intervenção em causa nos tribunais superiores, 'como o testemunha de resto a prática da maioria dos outros Estudos membros do Conselho da Europa '
(p.207).
Em face deste claro desenvolvimento dos direitos do homem na Europa, há que reponderar alguma jurisprudência anterior deste Tribunal, tendo em vista o desenvolvimento de direito à tutela jurisdicional do artigo 30º da Constituição na revisão de 1997. Com efeito, este Tribunal já interpretou o artigo 6º, § 1º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem no sentido de não obstar à intervenção do Ministério Público, imediatamente anterior à decisão, a fim de se pronunciar sobre o pedido de apoio judiciário, previsto pelo artigo 28º do Decreto-Lei nº 387-B/87. Segundo o Acórdão nº 263/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24, p. 670): 'revestindo a actuação do Ministério Público nos incidentes de apoio judiciário em que não figura como requerente, a natureza de um órgão de justiça, estabelecendo-se o contraditório entre os requerentes e requeridos, e não entre os requerentes e o Ministério Público, que ocupa um plano diverso daquele, há-de dizer-se não poder legitimamente convocar-se aqui, a propósito da pronúncia emitida ao abrigo do artigo 28º do Decreto-Lei nº
387-B/87, uma qualquer violação do princípio da igualdade de armas, do mesmo modo que um qualquer afrontamento à independência dos tribunais.'
Em face das razões invocadas pelos órgãos jurisdicionais da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e da clara vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo da jurisprudência europeia no desenvolvimento dos direitos fundamentais igualmente previstos na Convenção e na Constituição, há que rever a jurisprudência anterior à revisão constitucional de 1997.
Ora o Tribunal Constitucional já se pronunciou em sessão plenária, no sentido de que, 'se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes a possibilidade de responderem' (Acórdão nº 150/93, Acórdãos cit., 24, p. 308). Em face da nova redacção do nº 4 do artigo 20º da Constituição, há que alargar esta jurisprudência, em função das normas em cada caso questionadas.
Quanto ao artigo 15º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 299/96 de 29 de Novembro, há que julgá-lo inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 20º da Constituição, uma vez que não permite às partes tomar conhecimento e discutir qualquer elemento da intervenção do Ministério Público no processo que possa influenciar a decisão. Não tem cabimento qualquer restrição aos casos de pronúncia possivelmente desfavorável. Mesmo quando o Ministério Público nada diga na sessão de julgamento, basta a possibilidade de dizer sem controlo do facto pela parte para tornar a intervenção inadmissível, em face das exigências de transparência ligadas ao correcto entendimento do princípio do contraditório, implicado pelo nº 4 do artigo 20º da Constituição.
A referida exigência de transparência é uma consequência do papel das aparências na apreciação do respeito pelo princípio do contraditório e, mais geralmente, do carácter equitativo do processo, noção que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem considerado 'marcada em particular pela importância atribuída às aparências e à sensibilidade acrescida do público às garantias de uma boa justiça '(acórdão Borgers contra a Bélgica de 30 de Outubro de 1991; Cour Européenne des Droits de l'Homme, série A, nº 214-B, § 29, pp.8-9). Tem-se invocado aqui um dictum de Lord Hewart: «It is not merely of some importance, but it is of fundamental importance that justice should not only be done, but should manifestly and undoubtedly be seen to be done». Despido de acentos retóricos, o princípio tem sido formulado pelo Tribunal Europeu nestas palavras:
«justice must not only be done; it must be seen to be done» (a justiça não só deve ser feita; deve parecer que é feita)'.
Já foi com base nestas considerações que o Tribunal Europeu decidiu no referido Acórdão Borgers, «tendo em vista as exigências dos direitos da defesa e da igualdade das armas assim como o papel das aparências na apreciação do respeito delas» haver violação do artigo 6º, § 1º, da Convenção pela legislação belga
(artigos 1107 e 1109 du Code judiciaire) que permite ao ministério público em recurso perante a Cour de cassation apresentar as mesmas conclusões na audiência, «após o que nenhuma nota será recebida», e ainda assistir à deliberação sem voto deliberativo. Foi esta jurisprudência em matéria penal que o Tribunal Europeu agora generalizou com o acórdão Lobo Machado, quanto à legislação portuguesa, e com o caso Vermeulen, quanto à legislação belga.
4.3. A norma constante do artigo 17º, n.º 1, alínea g), da citada Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na redacção da Lei n.º 10/94, de 5 de Maio:
Este normativo reza assim:
1. São direitos especiais dos magistrados judiciais: g). A isenção de preparos e custas em qualquer acção em que o juiz seja parte principal ou acessória, por via do exercício das suas funções.
Este Tribunal já teve ocasião de se pronunciar sobre o sentido e alcance da norma acabada de transcrever. Assim, no acórdão n.º 697/96 (por publicar), o Tribunal sublinhou que a isenção de preparos e custas de que aqui se trata “refere-se tão-somente aos casos em que o magistrado seja parte principal ou acessória na acção que por ele (ou contra ele) seja movida, com fundamento no exercício das respectivas funções, ou seja, tal isenção configurada como um ‘direito especial de função’ parece visar essencialmente as acções a que se reportam os artigos 1083º a 1093º do Código de Processo Civil, as acções de indemnização contra magistrados”. Posteriormente, no acórdão n.º 466/97 (publicado no Diário da República, II série, de 22 de Outubro de 1997), escreveu-se que a isenção de preparos e custas, que nessa norma se consagra, se acha “condicionada pela verificação cumulativa de dois pressupostos: o juiz há-de ser parte principal ou acessória na respectiva acção; esta deverá fundar-se em factos, comportamentos ou razões directamente conexionados com o exercício das suas funções”; e, no acórdão n.º 476/97 (também por publicar), o Tribunal insistiu em que não existe “nenhuma consagração legal de harmonia com a qual os magistrados judiciais, pelo facto de o serem, desfrutam de uma isenção pessoal de custas”.
A isenção de preparos e custas de que gozam os juízes não pode, pois, ser entendida como um privilégio. É, antes, um direito especial, com cujo reconhecimento se visa a criação de condições objectivas capazes de permitir ao juiz o cumprimento do dever de julgar os casos, cuja resolução se lhe pede, com independência e imparcialidade - um dever que, sendo, simultaneamente, ético e jurídico, é postulado pela garantia da independência dos tribunais, consagrada no artigo 203º da Constituição. Por isso, tal isenção só vale para os processos em que o juiz é parte (principal ou acessória) por causa do exercício das suas funções - é dizer: para os processos em que ele se vê envolvido, nos dizeres da lei, “por via do exercício das suas funções”. Ela não vale - contrariamente ao que pretende o recorrente
(cf. a conclusão 34ª da sua alegação) - para os processos emergentes de factos que o juiz pratica em momento em que “se encontra em posição de poder actuar os poderes funcionais implicados na competência do tribunal a que está adstrito”. Só naqueles processos - e não também nestes, que surgem por ocasião, mas não por causa do exercício das funções - é que a isenção é, de facto, necessária ao cumprimento independente e imparcial das funções de juiz (maxime, da função judicativa). E, por isso, a isenção de preparos e custas, se valesse para os processos do segundo tipo, constituiria um privilégio atribuído ao juiz pelo tão-só facto de o ser, pois que não decorria já da assinalada necessidade de lhe garantir condições de independência e imparcialidade.
O caso dos autos é um pedido de suspensão de eficácia de acto relativo a um processo disciplinar instaurado ao juiz que a requereu - diz o acórdão recorrido
- “por factos ocorridos durante o exercício das suas funções, mas que não têm nenhuma conexão com a função de julgar”. Por isso, como decorre do que se disse, o juiz não intervém aí por causa do exercício da função de julgar. Intervém, isso sim, porque, na ocasião de exercer o seu múnus de julgar, praticou factos que o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais - que é o órgão competente para o efeito, já que lhe cabe a gestão e disciplina do corpo de juízes a que pertence o requerente (cf. artigo 98º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril) - considerou ilícitos. Ao praticar tais factos, o juiz não estava, pois, no cumprimento do dever de julgar.
Decorre do que acaba de dizer-se que a norma agora em apreciação, tal como foi interpretada pelo acórdão recorrido - ou seja, no sentido de que “os magistrados judiciais apenas estão isentos de custas [...] nas acções ou recursos em que sejam parte principal ou acessória por causa do exercício concreto da sua função de julgar”, e não também nos processos em que “o pedido [...] decorre de um processo disciplinar instaurado ao requerente por factos ocorridos durante o exercício das suas funções, mas que não têm nenhuma conexão com a função de julgar” - não é inconstitucional, pois que não viola a garantia de independência dos tribunais, consagrada no artigo 203º da Constituição.
Tal normativo também não viola qualquer outra norma ou princípio constitucional. Designadamente, não viola o disposto nos artigos 18º, n.º 3, e 20º, n.º 1, da Constituição, pois a não concessão de um privilégio aos juízes - e era disso que se tratava, se a isenção de preparos e custas fosse concedida no caso - não assume a natureza de restrição de um direito, maxime do direito de acesso aos tribunais.
5. Conclusão:
O recurso, na parte em que dele se toma conhecimento, apenas merece, pois, parcial provimento.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). não conhecer do recurso, na parte em que ele tem por objecto as normas constantes dos artigos 3º, n.º 4, alínea f), e n.º 19, 1º, 26º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do Estatuto Disciplinar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro), e nos artigos 82º, 90º, n.º 1, e 95º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º
21/85, de 30 de Julho;
(b).julgar inconstitucional, por violação do nº 4 do artigo 20º da Constituição, ou norma constante do artigo 15º do Decreto-lei 267/85 de 16 de Julho;
(c). consequentemente conceder provimento ao recurso apenas nessa parte, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade.
Lisboa, 15 de Junho de 1999 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Messias Bento (vencido quanto à alínea b) da decisão, nos termos da declaração de voto junta). Luís Nunes de Almeida
DECLARAÇÃO DE VOTO:
Votei vencido, na parte em que se julga inconstitucional o artigo 15º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho (LPTA).
As razões do meu voto são as que se seguem:
Este preceito legal, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, está assim redigido: No Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de julgamento e é ouvido na discussão.
Pretende o recorrente que esta norma viola o disposto nos artigos 202º, n.º 2,
203º, e 219º, nºs 1 e 2, da Constituição, uma vez que permitiu ao agente do Ministério Público intervir “na sessão em que foi resolvido indeferir o pedido do recorrente, desacompanhado deste, chegando a apor a sua assinatura no acto jurisdicional, pelo que o agente em causa vem configurado como juiz”.
O acórdão recorrido decidiu que o referido artigo 15º - que impõe ao Ministério Público que “assista às sessões de julgamento, sendo ouvido na discussão, quando lhe ‘esteja confiada a defesa da legalidade’, isto é, sempre que não represente os interesses de qualquer dos intervenientes no processo” - não viola nenhuma daquelas normas constitucionais, “porquanto não perturba a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos do requerente ou a decisão do conflito de interesses que se suscitam, e até favorece a defesa da legalidade democrática, tal como, de resto, lhe é imposto pelo n.º 1 do artigo 219º da Constituição. Além disso, a presença do Ministério Público na sessão de julgamento em nada afecta a independência do Tribunal, apenas sujeito, como está, ao imperativo da lei”.
Vejamos, então:
No que toca ao núcleo tradicionalmente central da justiça administrativa, que é o recurso contencioso, o Ministério Público tem legitimidade para interpor recursos de anulação de quaisquer actos administrativos [cf. artigo 46º, n.º 2, do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 41.234, de 20 de Agosto de 1957)]. E, quando não seja o recorrente, tem o poder de suscitar a regularização da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao conhecimento do recurso, e pronunciar-se sobre questões que não tenha suscitado; promover diligências de instrução; emitir parecer sobre a decisão final a proferir; arguir vícios não invocados pelo recorrente; e requerer, assumindo a posição de recorrente, o prosseguimento de recurso interposto durante o prazo em que podia impugnar o respectivo acto, para julgamento não abrangido em decisão, ainda não transitada, que tenha posto termo ao recurso por desistência ou outro fundamento impeditivo do conhecimento do seu objecto [cf. artigo 27º da Lei de Processo dos Tribunais Administrativos (Decreto-Lei n.º
267/85, de 16 de Julho)]. Para este efeito, o Ministério Público - para além de poder fazer requerimentos no processo (cf. o citado artigo 27º) - tem vista dos autos, inicialmente, logo que feito o preparo (cf. artigo 42º da citada Lei de Processo), e, mais tarde, depois de apresentadas as alegações ou de findo o respectivo prazo (cf. artigo 53º da mesma Lei). Além disso, quando o recorrido ou o próprio relator suscitem a questão prévia do não conhecimento do recurso, o Ministério Público é ouvido sobre essa questão (cf. artigo 54º da referida Lei de Processo). Tudo isto, obviamente, com vista à defesa da legalidade, que é uma das funções que a Constituição lhe comete, no artigo 219º, n.º 1: “Ao Ministério Público - diz-se nesse preceito - compete [...], nos termos da lei [...], defender a legalidade democrática”.
Justamente para se poder desimcumbir desse encargo constitucional de defender a legalidade democrática, é que a norma aqui sub iudicio impõe ao Ministério Público que assista às sessões de julgamento e aí seja “ouvido na discussão”.
Não se vê, por isso, como é que tal norma pode violar o artigo 219º, nºs 1 e 2, da Constituição.
Em casos como o dos autos, em que o Ministério Público não é parte no recurso, o normativo em causa também não viola o artigo 202º, n.º 2, da Constituição - que dispõe que “na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados” -, nem o artigo 203º da mesma Lei Fundamental, que prescreve que “os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei”. Na verdade, o Ministério Público não intervém no julgamento do recurso. Limita-se a assistir à respectiva sessão e a dar parecer sobre o caso, o qual
“não tem, nem por força da lei, nem por tradição, uma influência na sentença ou um papel informativo semelhante às conclusões do ‘avocat général’ junto do
‘Conseil d’État’ francês (ou também do advogado geral junto do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia)” [cf. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, in A Justiça Administrativa (Lições), Coimbra, 1998, página 195]. O seu papel é, assim, o de um conselheiro imparcial, assemelhando-se ao de um amicus curiae. Por isso, ao dar o seu parecer, o Ministério Público não invade a reserva do juiz, a quem cabe dizer o direito do caso, com independência e imparcialidade. E tão-pouco atinge ou põe em perigo a independência dos tribunais, pois, não sendo parte no processo e agindo com “vinculação a critérios de legalidade e objectividade” (cf. artigo 2º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público, republicado em anexo à Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto), o seu parecer é uma opinião desinteressada, que apenas visa o triunfo da justiça.
Contrariamente à posição que fez vencimento, entendi que o mencionado artigo 15º também não viola o artigo 20º, nº 4, da Constituição. Muito embora seja certo que, no processo de um Estado de Direito, as aparências têm a sua importância [sobre esta questão, cf. a sentença do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 30 de Outubro de 1991 (caso Borgers versus Bélgica), publicada em Novos Estilos, n.º 5, Maio de 1994, página 104 e seguintes), e mais recentemente, a sentença do mesmo Tribunal, de 20 de Fevereiro de 1996 (caso Lobo Machado versus Portugal)], a intervenção do Ministério Público de que ora se trata, nos recursos contenciosos de anulação em que não seja parte, não o transforma, consoante dê parecer favorável ou desfavorável às teses defendidas pelo recorrente, em seu aliado ou adversário objectivo, por forma a ser necessário dar a este oportunidade de defesa, sob pena de o julgamento deixar de ser um julgamento justo e leal (a fair trial), por ficar comprometida a independência do tribunal.
Na verdade, o recurso é julgado apenas pelos juízes que compõem a respectiva subsecção: o juiz relator e os dois juízes adjuntos [cf. artigo 27º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril]. E estes decidem sem outra obediência que não seja à lei e aos ditames da sua consciência, tendo, inclusivé, a possibilidade de lavrar voto de vencido.
Na minha opinião, pois, o processo não deixa de ser equitativo pelo facto de o Ministério Público, que não é parte no processo, assistir à respectiva audiência de julgamento, e de, aí, emitir parecer sobre o caso – parecer que até pode ser favorável ao recorrente. Na verdade, penso que as exigências de transparência não podem ser levadas ao ponto de sobrepor as aparências (é dizer: a simples possibilidade de violação do contraditório) às vantagens da intervenção do Ministério Público como defensor da legalidade. Pese, embora, o já assinalado valor das aparências – (é, com efeito, sabido que, a mais do que fazer justiça, é preciso que pareça que justiça foi feita) – há casos em que se torna necessário romper com as puras aparências e pôr a nu a realidade que elas escondem. E a realidade é esta: a presença do Ministério Público na audiência de julgamento do recurso contencioso de anulação contribui, não poucas vezes, para que os direitos e interesses dos particulares sejam devidamente acautelados. Não reconhecer isto é correr o risco de se ficar pelas aparências. E a caminhada, que se empreendeu em busca do processo equitativo, pode terminar num processo todo ele moldado por grandes e generosos princípios, mas onde já não são audíveis as reais necessidades de vida dos homens. Ou seja: a busca da perfeição pode desembocar num perfeccionismo desvitalizado.
Messias Bento