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Processo n.º 460/12
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Tributário de Lisboa recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da sentença proferida por aquele Tribunal em 17 de maio de 2012, e que recusou a aplicação no n.º 7, da Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do preceituado na alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa.
2. A recorrida – A., S.A. -, inconformada com a deliberação do Conselho de Administração do ICP-Anacom, de 21 de setembro de 2006, que indeferiu a reclamação administrativa do ato de liquidação das taxas de utilização do espectro radioelétrico, relativa ao primeiro e segundo semestre do ano de 2005, impugnou judicialmente o referido ato. Entre os fundamentos mobilizados, destaca-se a ocorrência de “vício de violação de lei por aplicação de normas inconstitucionais, na medida e que é a própria Anacom que considera que as portarias relativas às taxas aplicáveis às telecomunicações que apesar de regularem os montantes devidos e a periodicidade da liquidação são omissas quanto ao procedimento de lançamento, não precisando a forma de recolha dos elementos necessários à identificação dos sujeitos passivos (lançamento subjetivo) e à determinação da matéria coletável (lançamento subjetivo) [lançamento objectivo], sendo que a entidade impugnada confunde “lançamento” com a incidência real do tributo, que tem necessariamente de estar prevista em lei material.”; e ainda de “vício de violação de lei no que diz respeito à base de incidência da taxa que nos termos conjugados da Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro, e da licença n.º ICP 006/TCM de que a impugnante é titular apenas deve abranger os telemóveis em que estejam integrados os cartões SIM, e não o n.º total de assinantes apurado para fins estatísticos, uma vez que neste último se excluem cartões emitidos a que não corresponde qualquer utilização, sendo que considerar estes últimos, implicando ainda a violação do princípio da capacidade contributiva, que deve ser determinada em função das estações móveis em funcionamento, uma vez que a taxa em causa corresponde à utilização do bem de domínio público constituído pelo espectro radioelétrico.”
Sobre a questão de constitucionalidade em causa, disse o tribunal recorrido o seguinte:
«(...)
Da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro (Lei das Comunicações Eletrónicas, adiante designada LCE) resulta que a utilização (e ainda que não abrangida por um direito individual de utilização, pois nos termos do disposto nos artigos 30.º, n.º 1 e 16.º, n.º 1, alínea b), da LCE nem todas as utilizações de frequências implicam a necessidade de atribuição de um direito individual de utilização) de frequências está sujeita a taxa (cf. art. 105, n.º 1, al. f), nos termos do Decreto-Lei n.º 151-A/2000 de 20 de julho, para o qual expressamente se remete a respetiva fixação.
Por outro lado, e nos termos do disposto no art. 105.º, n.º 6, da LCE, as taxas de utilização de frequências devem refletir a necessidade de garantir a utilização ótima das frequências e dos números e devem ser objetivamente justificadas, transparentes, não discriminatórias e proporcionadas relativamente ao fim a que se destinam, tendo ainda em conta objetivos de regulação fixados no art. 5.º.
Nos termos do disposto no n.º 2 do art. 19.º, do Decreto-Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho (diploma que estabelece o regime aplicável ao licenciamento de redes e estações de radiocomunicações e à fiscalização da instalação das referidas estações e da utilização do espectro radioelétrico, bem como a definição dos princípios aplicáveis às taxas radioelétricas, à proteção da exposição a radiações eletromagnéticas e à partilha de infraestruturas de radiocomunicações), para a fixação dos montantes das taxas de utilização do espectro radioelétrico são tidos em conta, em função do serviço, parâmetros espectrais, de cobertura e de utilização, designadamente, o número de estações utilizadas, as frequências ou canais consignados, a faixa de frequências, a largura de faixa, o grau de congestionamento da região de implementação, o desenvolvimento económico e social da região de implementação, área de cobertura, o tipo de utilização e utilizador, a exclusividade ou partilha de frequências ou canais consignados.
A definição dos montantes e periodicidade de liquidação das taxas previstas é remetida para portaria do membro do Governo responsável pela área das comunicações (cf. Art. 19.º, n.º 7 do DL 151-A/2000).
A portaria em vigor em 2005, e como tal aplicável às liquidações sub judice, era a Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro (que veio a ser revogada pela Portaria n.º 386/2006, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2006).
Do n.º 7 da Portaria 126-A/2005 resulta que as taxas de utilização do espectro radioelétrico “são liquidadas antecipadamente”, semestralmente, em janeiro e julho (com exceção das aplicáveis ao sistema FWA e às de montante igual ou inferior a EUR 250, que são liquidadas anualmente em janeiro).
No ponto 2.1.1 do anexo à Portaria resulta que a taxa em causa, com o código 22107 (taxa que na Portaria n.º 240/91, de 23 de março, e como resulta da licença ICP 006/TCM, era anteriormente identificada com o código 5115), é de EUR 2,64 “por cada estação móvel”.
Da LCE resulta assim a criação de um tributo devido pela utilização das frequências do espectro radioelétrico, que deve ter como objetivo extraeconómico a necessidade de garantir a respetiva utilização ótima, o que facilmente se compreende uma vez que em causa está um recurso limitado, sublinhando-se além do mais a necessidade de proporcionalidade ao respetivo fim (cf. Art. 105.º, n.º 1, alínea f) e n.º 6 da LCE).
No entanto, da lei não resulta qualquer definição da base de incidência objetiva do tributo, o que coloca dificuldades de interpretação, não sendo possível fazer qualquer afirmação conclusiva quando ao que na mesma se pretendeu relativamente à natureza do tributo em apreço. Efetivamente, embora o n.º 1 do art. 27.º LCE se distingam “contribuições financeiras” e “taxas” em conformidade com o artigo 105.º (cf. Respetivamente alíneas q) e r)) atendendo ao objetivo extraeconómico de garantia da utilização ótima do espectro radioelétrico o argumento literal não é aqui decisivo.
Com efeito, e atendendo a que os operadores, como é o caso da impugnante, dispõem de canais e frequências do espectro para seu uso exclusivo que lhes são atribuídas através de licença emitida para o efeito, não é possível concluir que uma utilização ótima do espectro se obtenha através de uma tributação que tenha em vista regular apenas a utilização efetiva, pois na verdade uma não utilização de radiofrequências relativamente às quais se dispõe da possibilidade de uso exclusivo também põe em causa uma utilização ótima do espectro.
Por outro lado., se para se alcançar o objetivo de utilização ótima do espectro radioelétrico se cria um título cuja base de incidência real leve a concluir que não se está a tributar apenas a utilização efetiva do espectro radioelétrico, que pertence ao domínio público, então o mesmo deixará de ter a natureza de taxa para passar a ter a natureza de contribuição.
Donde se conclui que uma vez que a lei não define a base de incidência real daquilo que designa por taxa de utilização de frequências, não é possível concluir se o legislador pretendeu criar uma verdadeira taxa ou antes uma contribuição financeira.
Por outro lado, da Portaria 126-A/2005 resulta que a taxa é de EUR 2,64 “por cada estação móvel”, devendo a mesma ser liquidada “antecipadamente” e semestralmente, em janeiro e julho.
Ora a definição do que se deve entender por estação móvel para efeitos da aplicação da taxa em questão não resulta da LCE, do DL 151-A/2000, nem da própria Portaria 126-A/2005.
Aqui chegados, importa esclarecer que a definição do conceito de “estação móvel” consubstancia não um problema de lançamento objetivo, no sentido de determinação em concreto da matéria tributável (tarefa que antecede imediatamente a liquidação, que por sua vez consiste na determinação da coleta por aplicação da taxa à matéria coletável, e que no caso em apreço é claramente uma liquidação administrativa), como pretende a entidade impugnada, mas de definição da própria base de incidência objetiva da taxa, ou seja, da definição em abstrato do universo ao qual a mesma se deve aplicar.
Ora, na prática o que sucede é que a base de incidência do tributo é definida através um entendimento administrativo divulgado através de circular da entidade impugnada, que para esse efeito faz coincidir o conceito de estação móvel com o de “assinante” para efeitos estatísticos.
Com efeito o que sucede no procedimento de liquidação de taxas em apreço é que a entidade impugnada define e divulga através de circular o seu entendimento do que se deve considerar estação móvel/assinante para efeitos de aplicação da taxa, com base nesse entendimento recolhe junto dos sujeitos passivos a informação relevante para efeitos de lançamento objetivo da taxa e por fim, procede à respetiva liquidação stricto sensu, aplicando a taxa à matéria coletável, que determina em função das informações que lhe são disponibilizadas pelos sujeitos passivos (cf. Pontos 5, 6 e 7 da fundamentação de facto).
A própria entidade impugnada admite que “é com base nas informações disponibilizadas pelos operadores, de acordo com os critérios definidos nas circulares do ICP – ANACOM relativas à prestação de informação para fins estatísticos e de acompanhamento de mercado, que têm vindo a ser lançadas as taxas devidas pela utilização do espectro radioelétrico, com o código 22 107 e emitidas as correspondentes notas de liquidação (faturas)” (cf. Art. 35.º da contestação, sublinhado nosso).
Resulta ainda provado nos autos que numa primeira fase a definição de “assinante” adotada refletia alguma preocupação em espelhar uma utilização efetiva das frequências radioelétricas, fazendo-se coincidir a mesma com o universo de utilizadores do serviço com contrato válido e em vigor, em condições de originar ou receber tráfego”, e como tal excluindo-se “os utilizadores que, por razões de gestão de cobrança do operador, nomeadamente, falta de pagamento das faturas e situações de fraude, estão impossibilitados, pelo operador, de originar ou receber tráfego”, ou aqueles que “tenham deixado expirar o prazo de recarregamento do cartão” (cf. Ponto 5 da fundamentação de facto), para se evoluir para uma definição de assinante em que é claramente valorada a mera suscetibilidade ou probabilidade de uso das frequências, passando a definir-se como assinantes todos os “utilizadores abrangidos por uma relação contratual estabelecida com um operador nacional do Serviço Móvel Terrestre, nomeadamente nas modalidades de assinatura ou de cartão pré-pago ativado (considera-se que o cartão é ativado após realizada ou recebida a primeira chamada), a quem tenha sido conferido o direito de originar ou receber tráfego, através da respetiva rede” (cf. ponto 7 da fundamentação de facto; sublinhado nosso).
Este entendimento é, de resto confirmado e reforçado no relatório referente à auditoria ao serviço móvel terrestre da ora impugnante, no qual se esclarece que o “ICP-ANACOM definiu que deveria ser privilegiado o critério da possibilidade de utilização do espectro” e no qual se afirma claramente que se devem incluir no universo de assinantes, para além do mais, “todos os serviços que não apresentaram qualquer atividade no mês de reporte, i.e, que não originaram/terminaram tráfego e que não têm carregamentos mesmo que possam utilizar o espectro” (cf. ponto 13, da fundamentação de facto; sublinhado nosso).
Ora, com o devido respeito, ao contrário do que afirma a entidade impugnada em sede de alegações, o que releva para a caracterização da natureza jurídica do tributo em causa é precisamente a questão de saber se o que se tributa são utilizações efetivas do espectro radioelétrico em sentido económico, ou a suscetibilidade dessa utilização.
Isto porque se o que se tributa é um uso efetivo do espectro radioelétrico o que temos é uma verdadeira taxa, mas se o que se tributa é a suscetibilidade desse uso, então estaremos perante uma contribuição financeira.
Recordando o que se deve entender por taxa, trata-se de uma “prestação pecuniária e coativa, exigida por uma entidade pública, em contrapartida de prestação administrativa provocada ou afetada pelo sujeito passivo” sendo que o que as caracteriza no plano objetivo é o facto de “incidirem sobre prestações administrativas de que o sujeito passivo é o efetivo causador ou beneficiário, sendo esta configuração do pressuposto que antes de mais as define como tributos rigorosamente comutativos e permite distingui-las das contribuições e impostos” (...), podendo a prestação administrativa que lhe serve de pressuposto ser a utilização de um bem do domínio público, como é o caso.
Por sua vez por contribuições devem entender-se as “prestações pecuniárias e coativas exigidas por uma entidade pública em contrapartida de uma prestação administrativa presumivelmente provocada ou aproveitada pelo sujeito passivo”, distinguindo-se das taxas por se tratarem de tributos “simplesmente paracomutativos” (...).
A diferença essencial entre impostos e as contribuições reside no facto de os primeiros “visarem financiar as despesas públicas em geral, não podendo em princípio ser consignados a certos serviços públicos ou a certas despesas, enquanto que as segundas, tal como as taxas em sentido estrito, visam financiar certos serviços públicos e certas despesas públicas” (...).
É assim possível concluir que através da definição administrativa da base de incidência real do tributo em causa, e porque considera suficiente para a inclusão de um assinante na mesma que este tenha a mera possibilidade de utilização e não uma utilização efetiva do espectro radioelétrico, o ICP-ANACOM configura o tributo em causa como uma contribuição e não como uma taxa.
Esta conclusão em nada é posta em causa pela argumentação da entidade impugnada quanto ao que se deve entender por “estação móvel”. Com efeito e ainda que das boas práticas ou normas técnicas resulte, como pretende a impugnante, que por estação móvel se deve entender o telemóvel associado a um cartão SIM suscetível de ser utilizado, mesmo que não ocorram “eventos cobráveis”, o problema permanece.
Com efeito, a ativação do cartão SIM e a mera suscetibilidade de com o mesmo se poderem fazer utilizações efetivas do espectro não significa que estas ocorram, e mesmo que como, como alega a impugnada, a mera existência de um cartão SIM ativo gere uma utilização, que de resto a própria entidade impugnada admite que será meramente pontual, essa utilização nunca terá a mesma intensidade que a de um “evento cobrável”, pelo que a tributação das situações do mesmo modo não reflete uma tributação da utilização efetiva do espectro.
Por outro lado, e insista-se, não resulta da LCE que se deva entender como base de incidência real da “taxa de utilização” as “estações móveis” no entendimento que das mesmas tem a impugnante.
Ora, ainda que, obviamente, nada impeça a criação de contribuições financeiras, a mesma deve obedecer aos ditames constitucionais.
Com efeito, até à revisão constitucional de 1997 as contribuições financeiras eram consideradas pela doutrina e jurisprudência como devendo ser sujeitas à reserva de lei parlamentar, sendo para esse efeito tratadas como verdadeiros impostos (...).
Por força da Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro o art. 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP foi alterado, passando ali a prever-se expressamente as “contribuições financeiras a favor das entidades públicas” (como referem expressivamente Canotilho/Moreira, ao mencionar as contribuições “a Constituição parece ter dado guarida ao controverso conceito de parafiscalidade” (...) e a fixar-se a reserva de lei parlamentar para a criação do respetivo regime geral.
Quanto a esta matéria subscreve-se a posição doutrinária que vai no sentido de considerar que não faz qualquer sentido que o legislador constituinte com esta alteração à Lei Fundamental tivesse pretendido “facultar de modo incondicional ao Governo a criação de tributos com estrutura híbrida e os contornos fugidios das modernas contribuições mas antes subordinar essa faculdade à edição prévia de um regime geral que lhes fixe os princípios estruturantes e elementos essenciais”, sendo a emissão desse regime geral “uma condição indispensável para assegurar a legitimação material destas contribuições”, pelo que não é de admitir que ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP se criem contribuições financeiras por decreto-lei simples, e muito menos por ato administrativo, como é o caso, sem que antes “seja estabelecido por lei parlamentar o regime geral que lhe dê o necessário enquadramento”, devendo assim entender-se que até à criação do regime geral das contribuições financeiras a favor das entidades públicas previsto no art. 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP, deve considerar-se que a criação e definição da disciplina das contribuições se encontra subordinada à reserva de lei integral (...) que abrange a definição da respetiva incidência real.
Recorde-se que não é só a própria entidade impugnada quem, define a base de incidência objetiva do tributo, através de um ato administrativo, como ao fazê-lo acaba por definir em concreto a natureza jurídica do mesmo, natureza jurídica relativamente à qual a LCE não toma partido, como já foi referido.
Daqui se conclui a impugnante tem razão quando alega que a liquidação sub judice é ilegal por violação de um comando constitucional, concretamente por do disposto no art. 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP, pois até à criação do regime geral das contribuições financeiras a favor das entidades públicas que ali é previsto deve considerar-se que a criação e definição da disciplina das contribuições se encontra subordinada à reserva de lei integral, pelo que a liquidação em causa, ao fundar-se numa definição da base de incidência da contribuição ilegal por organicamente inconstitucional, é também ela ilegal, devendo por esse motivo ser integralmente anulada.
(...)»
3. Instada a alegar, a entidade recorrente – o Ministério Público – apresentou as seguintes conclusões:
«(...)
1.ª) O “regime particular” “taxa de utilização do espectro radioelétrico”, no caso para o serviço móvel terrestre, aplicável às estações móveis, tem base legal constitucionalmente adequada, pois os seus “elementos essenciais” estão fixados em diretiva europeia e em lei parlamentar, que conjugadamente definem, além do mais, a respetiva incidência (objetiva e subjetiva) e taxa.
2.ª) O “regime particular” assim instituído não infringe a letra e o espírito da reserva relativa de lei estabelecida no artigo 165.º, n.º 1, al. i), da Constituição, pois que em matéria de “taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas”, ainda não editada pela Assembleia da República (ou pelo Governo, no uso da pertinente autorização legislativa) está circunscrita ao respetivo “regime geral”.
(...)»
4. A recorrida – A., S.A. – contra-alegou nos seguintes termos:
«(...)
l. O Tribunal a quo considerou que nem a Lei das Comunicações Eletrónicas, nem o Decreto- Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho definem a base de incidência real do tributo (independentemente de este ser qualificado como taxa ou como contribuição financeira).
2. Na verdade, e como o Tribunal a quo bem nota, (pág. 40), apesar de ser apenas a Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro (que não é um ato da função legislativa) a indicar que a taxa/contribuição é de 2,64€ “por cada estacão móvel”, o certo é que nem mesmo a Portaria define o que é que entende ser uma estação móvel, definição essa que é absolutamente determinante para a fixação da incidência real da taxa/contribuição.
3. Ora, como refere o Tribunal a quo, com razão, (pág. 40), a definição do conceito de “estação móvel” resulta na definição da própria base de incidência objetiva da taxa, ou seja, da definição em abstrato do universo ao qual a mesma se deve aplicar.
4. Assim, não pode deixar de se considerar que a norma que o Tribunal a quo recusou aplicar, por inconstitucionalidade, foi a que resulta da conjugação do ponto 1.º da Portaria, quando aprova as taxas previstas no anexo, com a norma constante do anexo à Portaria, na parte em que estipula que a taxa de 2,64 euros incide por cada estação móvel.
5. É certo que o Tribunal a quo (pág. 41) vai ainda mais longe e considera que, mesmo que a base de incidência objetiva da taxa/contribuição estivesse prevista num Decreto-Lei não autorizado parlamentarmente, como é o caso do Decreto-Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho, haveria igualmente inconstitucionalidade, na medida em que — no entender do tribunal a quo, com o qual se concorda - não é de admitir que ao abrigo do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP se criem contribuições financeiras por decreto-lei simples, e muito menos por ato administrativo, como é o caso.
6. Assim, em primeiro lugar, o Tribunal Constitucional terá de verificar se a definição de estação móvel, na medida em que consubstancia a definição da incidência real da taxa/contribuição, tal como prevista na Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro, é inconstitucional, por não estar prevista numa Lei parlamentar ou num Decreto-lei autorizado (violação do princípio de reserva de lei parlamentar).
7. Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional terá de verificar se a definição de estação móvel, na medida em que consubstancia a definição da incidência real da taxa/contribuição, tal como prevista na Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro, é inconstitucional, por não estar prevista sequer num ato da função legislativa (violação do princípio da reserva de função legislativa/princípio da legalidade).
8. Com efeito, uma coisa é a exigência de lei formal (Lei parlamentar e não Decreto-Lei simples) e outra é exigência de lei integral (Lei parlamentar ou Decreto-Lei e não regulamento).
9. É o próprio Representante do MP quem concorda que os elementos essenciais das taxas/contribuições financeiras devem estar previstos em ato da função legislativa e não em ato da função administrativa.
10. Importa ainda referir, no entanto, que o representante do MP depois de ter considerado que o Governo pode legislar sobre o regime particular de cada taxa, sem necessidade de autorização parlamentar (tese que, só por si, já levaria à inconstitucionalidade da norma da Portaria que fixou a incidência da taxa), acaba por concluir (ponto 15) que se deve garantir que o Parlamento teve intervenção na definição dos princípios e das regras elementares respeitantes aos “elementos essenciais” do tributo.
11. E, quanto a esses mesmos elementos essenciais, considera que, embora não se defina quais sejam tais “elementos essenciais”, deverão ser tomados como tal pelo menos a “incidência” (objetiva e subjetiva) e a “taxa” do tributo em causa (cfr., como lugar paralelo, CRP, art. 103.º, n.º 2).
12. Conclui-se, assim, que quer o MP concorde que a incidência da taxa/contribuição financeira deva constar de lei parlamentar (como parece) ou não concorde (como, por vezes, também parece), o certo é que não restam dúvidas de que concorda que a incidência da taxa/contribuição tem de estar prevista e definida em ato da função legislativa e não em ato da função administrativa.
13. Ora, in casu, o que se verifica é que a incidência real da taxa/contribuição financeira é apenas definida (e ainda assim de modo insuficiente) na Portaria, que faz referência a estação móvel, não se prevendo em ato da função legislativa que a taxa incidiria sobre as estações móveis e muito menos se dizendo o que significa o conceito de “estação móvel”.
14. O que se passa é que a Portaria estabelece (de modo insuficiente) a incidência da taxa/contribuição financeira, quando o mesmo devia ser estabelecido em ato de função legislativa, sendo que, ainda por cima, a definição em causa nada esclarece sobre o seu conteúdo, não permitindo retirar qualquer indicação interpretativa, o que, só por si, já viola o princípio da legalidade, constitucionalmente previsto, no seu subprincípio da reserva de densificação normativa, bem como o princípio da proteção da confiança.
15. Da nossa parte, e da parte da doutrina mais avalizada, como é o Professor Sérgio Vasques, entendemos que, enquanto não existir um regime geral das taxas, será necessária a intervenção parlamentar para cada uma das taxas que seja criada, mas, repete-se, in casu, a inconstitucionalidade mantém-se mesmo que não se entenda desta forma, já que, in casu, a incidência da taxa não foi sequer aprovada por Decreto-Lei simples, mas apenas por Portaria.
(...)»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
5. A questão que o Tribunal Constitucional é instado a dirimir prende-se com a eventual inconstitucionalidade orgânica do n.º 7, da Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro, conjugado com o respectivo anexo, por violação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da CRP, havendo, portanto, que determinar a natureza da figura nela prevista – a taxa de utilização do espectro radioelétrico – para apurar da respetiva validade à luz do princípio da reserva de lei (formal e material).
Ora, como é sabido, o campo das receitas coativas do Estado foi durante muito tempo doutrinal e jurisprudencialmente pautado por uma visão dicotómica, nos termos da qual haveria que reconduzir a receita em causa, para efeitos de apuramento do cumprimento das exigências associadas ao princípio da reserva de lei, à categoria das taxas ou à categoria dos impostos. Pois bem, é sobejamente reconhecido que a diferenciação entre imposto e taxa reside na unilateralidade ou bilateralidade dos tributos: o imposto tem uma estrutura unilateral, enquanto a taxa apresenta uma estrutura bilateral ou sinalagmática. Esta estrutura bilateral deriva funcionalmente da natureza do facto constitutivo das obrigações em que se traduz e que consiste ou na prestação de um serviço público, ou na utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à atividade dos particulares (as chamadas “taxas de licença”). Na verdade, a comutatividade das taxas radica no facto de estas serem exigidas por ocasião e em função de uma prestação pública, visando remunerar o aproveitamento individualizado que dela fez o sujeito passivo (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, p. 207).
É pois fundamentalmente o facto de as taxas não visarem a satisfação de necessidades financeiras gerais do Estado, em função da capacidade contributiva dos sujeitos passivos e no cumprimento de um dever de solidariedade, que explica que a concreta criação destes tributos não esteja subordinada ao princípio da reserva de lei formal e, logo, não tenha de ocorrer através de lei em sentido formal (cfr. artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP).
Em função da visão dicotómica tradicional, abundam os casos em que o Tribunal Constitucional, em face da não verificação desse caráter bilateral ou sinalagmático, concluiu que as receitas coativas em causa, apesar de formalmente designadas por “taxas” ou “tarifas”, deveriam na realidade reconduzir-se à categoria dos impostos, gerando a inconstitucionalidade orgânica das normas que as criaram (cfr., entre outros, os Acórdão n.ºs 369/99, 558/98, 437/03, 63/99, 127/04, 247/04, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Cumpre, no entanto, sublinhar que a jurisprudência constitucional tem reservado esta conclusão para aqueles casos em que exista uma “desproporção intolerável” entre o montante pago pelo sujeito passivo a título de taxa e o custo do bem ou serviço prestado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 369/99, 1140/96, 22/00, 227/01, 68/07 e 410/10, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A revisão constitucional de 1997 contribuiria decisivamente para o claudicar da visão dicotómica enunciada, lançando no quadro das receitas coativas o “tertium genus” que as demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas indiscutivelmente representam.
Alguma doutrina evidencia o caráter “híbrido” desta terceira espécie, que se aproxima dos impostos - em função da ausência de uma contrapartida individualizada – mas também das taxas – já que visa retribuir o serviço prestado por uma entidade pública a um conjunto homogéneo de entidades – reconduzindo-se, nessa medida, ao conceito de parafiscalidade [assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 2007, p. 1094; e também Cardoso da Costa, «Sobre o princípio da legalidade das “taxas” e (e das demais contribuições financeiras», Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento, Coimbra Editora, 2006, p. 805].
Trata-se, porém, de uma categoria dotada de grande heterogeneidade, onde, para alguns, cabem figuras tão díspares como as contribuições para a segurança social, as taxas de regulação económica, o tributos associativos devidos às ordens profissionais e até os modernos tributos ambientais e impostos especiais pelo consumo (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 223 e ss.). Para outros, as contribuições financeiras ligam-se a três tipos de tributos: as contribuições financeiras propriamente ditas, que valem como “instrumentos de financiamento de novos serviços de interesse geral”, as contribuições parafiscais, que se destacam como “instrumento de financiamento de novas entidades administrativas cuja atividade beneficia um grupo homogéneo de destinatários”, e ainda as contribuições extrafiscais, que servem como “instrumentos de orientação de comportamentos” (neste sentido, Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, 2.ª ed., no prelo, pp. 78 e ss.).
Teve o Tribunal Constitucional, aliás, oportunidade de alinhar com esta nova classificação tripartida, a propósito das taxas de regulação cobradas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que expressamente qualificou já não como imposto ou taxa, mas como contribuição financeira (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 365/08 e 613/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Nestes arestos, ficou, porém, patente que a superação da classificação dicotómica não logrou solucionar plenamente os problemas ligados ao princípio da reserva de lei formal. Com efeito, à semelhança do que vale para as taxas, o legislador constituinte não submeteu à reserva de lei em sentido formal a criação, em concreto, de cada contribuição financeira, mas apenas o respetivo “regime geral”. Em face da omissão legislativa que permanece neste domínio, a doutrina indaga se, até à elaboração daquele regime, a criação e disciplina das contribuições pode ser levada a cabo pelo Governo através de decreto-lei simples, ou se, pelo contrário, carece de intervenção parlamentar.
Ora, avultam quanto a esta matéria, fundamentalmente, duas posições: a daqueles que sustentam que, até à emanação do mencionado regime geral, as contribuições financeiras devem reconduzir-se ao regime jurídico dos impostos, requerendo a sua criação individualizada a intervenção do Parlamento (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 244; e Suzana Tavares da Silva, As Taxas e a Coerência do Sistema Tributário, cit., pp. 18-19); e a daqueles que consideram que, até à emanação do regime geral, deve manter-se a competência governamental para a criação das contribuições financeiras [Cardoso da Costa, «Sobre o princípio da legalidade das “taxas” e (e das demais “contribuições financeiras”)», cit., pp. 803-804]. A jurisprudência constitucional, nos arestos proferidos a propósito das taxas de regulação da ERC, tentou a conciliação entre estas duas teses, evidenciando que, tendo a mencionada taxa sido criada através de lei do Parlamento, deveria dar-se por preenchida a exigência de previsão parlamentar de um regime geral das contribuições financeiras, porque a definição parlamentar dos princípios gerais aplicáveis às taxas da ERC se apresenta “até mais pormenorizado do que seria exigível a um regime geral fixado pela lei parlamentar” (cfr., novamente, os Acórdãos n.ºs 365/08 e 613/08).
6. A liberalização progressiva do setor das telecomunicações iniciada a partir dos anos noventa do século passado, traduziu-se, entre nós, na opção pela criação de uma entidade reguladora sectorial dotada de autonomia funcional – o ICP-Anacom. Tal entidade é disciplinada pelo Decreto-Lei n.º 309/2001, de 7 de dezembro, e também pela Lei das Comunicações Eletrónicas (Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, alterada pela Lei n.º 51/2011, de 13 de setembro). O financiamento do ICP-Anacom reside substancialmente na cobrança de taxas, talqualmente previsto no artigo 105.º, da Lei das Comunicações Eletrónicas (doravante, LCE), na redação veiculada pela Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro:
«(...)
Artigo 105.º
Taxas
1 — Estão sujeitos a taxa:
a) As declarações comprovativas dos direitos emitidas pela ARN nos termos do n.º5 do artigo 21.º;
b) O exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas, com periodicidade anual;
c) A atribuição de direitos de utilização de frequências;
d) A atribuição de direitos de utilização de números e a sua reserva;
e) A utilização de números;
f) A utilização de frequências.
2 — Os montantes das taxas referidas nas alíneas a) a e) do número anterior são fixados por despacho do membro do Governo responsável pela área das comunicações eletrónicas, constituindo receita da ARN.
3 — A utilização de frequências, abrangida ou não por um direito de utilização, está sujeita às taxas fixadas nos termos do Decreto-Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho.
4 — Os montantes das taxas referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 são determinados em função dos custos administrativos decorrentes da gestão, controlo e aplicação do regime de autorização geral, bem como dos direitos de utilização e das condições específicas referidas no artigo 28.o, os quais podem incluir custos de cooperação internacional, harmonização e normalização, análise de mercados, vigilância do cumprimento e outros tipos de controlo do mercado, bem como trabalho de regulação que envolva a preparação e execução de legislação derivada e decisões administrativas, como decisões em matéria de acesso e interligação, devendo ser impostos às empresas de forma objetiva, transparente e proporcionada, que minimize os custos administrativos adicionais e os encargos conexos.
(...)
6 — As taxas referidas nas alíneas e) e f) do n.º 1 devem refletir a necessidade de garantir a utilização ótima das frequências e dos números e devem ser objetivamente justificadas, transparentes, não discriminatórias e proporcionadas relativamente ao fim a que se destinam, devendo ainda ter em conta os objetivos de regulação fixados no artigo 5.º.
(...)»
A análise do preceito alertava já para o facto de o ICP-Anacom ter legitimidade para cobrar dois tipos de taxas: as taxas definidas exclusivamente em função dos custos que lhe estão associados – e que são as previstas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 105.º - e as taxas definidas com o objetivo final de garantir uma utilização ótima dos recursos escassos, tais como frequências e números (administrative incentive pricing) – aquelas a que se referem as alínea e) e f), do n.º 1 daquele preceito (cfr. ICP-Anacom – Conselho Consultivo, Parecer sobre o novo modelo de taxas do espectro radioelétrico, junho de 2008, disponível em www.anacom.pt). É quanto ao segundo tipo mencionado que surge a questão de constitucionalidade que ora se aprecia.
Recorde-se que “o espectro radioelétrico está dividido em faixas de frequências, que se estendem dos 9 kHz aos 3000 GHz, sendo atribuídas a diferentes serviços de radiocomunicações (e.g., fixo, móvel, radiodifusão, radiolocalização, radionavegação, amador, radioastronomia, etc.). No âmbito do planeamento do espectro, e dada a sua escassez, procura-se que as frequências sejam, tanto quanto possível, partilhadas por diferentes serviços de radiocomunicações, salvaguardada que esteja a inexistência de interferências prejudiciais.” Uma das competências do ICP-Anacom, nos termos da LCE, passa precisamente por assegurar o planeamento, gestão e controlo do espectro radioelétrico (cfr. o artigo 15.º), tarefa na qual avultam diversos instrumentos, tais como o Quadro Nacional de Atribuição de Frequências (QNAF), as taxas pela utilização do espectro e, mais recentemente, os leilões para atribuição de direitos de utilização do espectro radioelétrico.
Depois, como decorre do exposto supra, as taxas pela atribuição de direitos de utilização de frequências não se confundem com as taxas pela utilização do espectro radioelétrico. Na verdade, o princípio geral em matéria de utilização de frequências é o da não dependência da atribuição de direitos de utilização. Vale por dizer que, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 16.º, da LCE, é o QNAF que especifica os casos em que são exigíveis direitos de utilização, bem como os respetivos procedimentos de atribuição. Esses procedimentos de atribuição – que devem ser transparentes, abertos e não discriminatórios - podem ser, por exemplo, leilões ou concursos, possibilidade aberta pelo artigo 19.º, n.º 13, do Decreto-lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 264/2009, de 28 de setembro e pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, e disciplinada pelo Regulamento n.º 560-A/2011, de 19 de outubro. Nos demais casos, leia-se, nos casos que o QNAF não sujeita a utilização do espectro à atribuição prévia de um direito, vale um regime de acessibilidade plena (v. o Quadro Nacional de Atribuição de Frequências, Edição 2010/2011, disponível em www.anacom.pt). Note-se ainda que, apesar de o montante auferido pelo ICP-Anacom através dos procedimentos de leilão ou concurso poder ser em muito superior aos encargos administrativos em que aquele incorre pela atribuição do direito – como, aliás, o próprio admite no Relatório de Consulta do Projeto de regulamento e anúncio do concurso público para atribuição de um direito de utilização de frequências, de âmbito nacional, na faixa de frequências dos 450 – 470 MHz para oferta do serviço móvel terrestre, pp. 27 e 28, de 4 de julho de 2008 (disponível em www.anacom.pt) - isso não exclui o pagamento, pela entidade vencedora, da taxa de utilização do espectro, talqualmente resulta do ponto iii), da alínea g), do n.º 3 do artigo 33.º, do Regulamento n.º 560-A/2011, de 19 de outubro.
A taxa pela utilização do espectro radioelétrico tem suporte no direito europeu (cfr. o artigo 11.º, n.º 2, da Diretiva 97/13/CE, do Parlamento e do Conselho, de 10 de abril de 1997, o considerando n.º 32 e o artigo 13.º, da Diretiva 2002/20/CE, do Parlamento e do Conselho, de 7 de março de 2002), onde se prevê a possibilidade de imposição de taxas pela utilização de radiofrequências e números, para “garantir a utilização ótima de tais recursos”. Ao tempo do ato de liquidação de onde emergiu a questão de constitucionalidade vertente, tais taxas eram disciplinadas pelo Decreto-Lei n.º 151-A/2000, de 20 de julho, e pela Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro. O primeiro especifica, no n.º 1 do artigo 19.º, os critérios que devem presidir à fixação do montante de tais taxas. São eles: a) o número de estações utilizadas, b) as frequências ou canais consignados, c) a faixa de frequências, d) a largura de faixa, e) o grau de congestionamento da largura da região de implementação, f) o desenvolvimento económico e social da região, g) a área de cobertura, h) o tipo de utilização e utilizador, i) a exclusividade ou a partilha de frequências ou canais consignados. Já a segunda dispõe, no seu n.º 7 – preceito cuja aplicação foi recusada pelo tribunal recorrido, com fundamento na sua inconstitucionalidade – o seguinte:
«(...)
7.º As taxas administrativas e as taxas de utilização do espectro radioelétrico são liquidadas antecipadamente e, no caso destas últimas, semestralmente, em janeiro e julho, com exceção das aplicáveis ao sistema FWA e às de montante igual ou inferior a € 250, as quais são liquidadas anualmente em janeiro.
(...)»
Conclui-se que, estando em causa, o Serviço Móvel Terrestre (STM), a base tributável é apurada a partir do número de estações móveis, isto é, de cartões SIM (Subscriber Identity Module) detidos por assinantes que tenham uma relação contratual em vigor com um operador nacional de STM. A Circular ANACOMS03900/2002, aprovada pelo ICP-Anacom, define assinantes como “todos os utilizadores abrangidos por uma relação contratual estabelecida com um operador nacional do Serviço Móvel Terrestre, nomeadamente nas modalidades de assinatura ou de cartão pré-pago ativado (considera-se que o cartão é ativado após realizada ou recebida a primeira chamada), a quem tenha sido conferido o direito de originar o direito de originar e receber tráfego através da respetiva rede.”
Curiosamente, este modelo de apuramento, que a decisão recorrida considera baseado na “possibilidade de utilização do espectro” e não na utilização efetiva deste, tampouco satisfazia a doutrina, que o considerava mesmo “incompatível com o propósito extrafiscal fixado pelos legisladores comunitário e nacional para as taxas de utilização de frequências e que consiste na utilização ótima destes recursos e, bem assim, com os limites que devem balizar a modelação destas taxas pelos legisladores nacionais.” Destarte, aquelas taxas “deveriam ser fixadas com base no custo ou valor da quantidade/unidade de espectro atribuído e não em função do número de cartões SIM” [Conceição Gamito/João Riscado Rapoula, “As taxas de regulação económica no setor das comunicações eletrónicas”, As taxas de regulação económica em Portugal (coord. Sérgio Vasques), Almedina, 2008, p. 212].
Cumpre, portanto, atento este quadro, qualificar o tributo em causa à luz da classificação tripartida já enunciada. Assim, a taxa pela utilização do espectro radioelétrico configura-se como um tributo devido a pretexto da utilização de um bem do domínio público (i) – o espectro radioelétrico (cfr. o artigo 84.º, n.º 1, alínea f), da CRP, conjugado com o artigo 14.º, da LCE) – mas cujo desiderato é a consecução de objetivos extrafiscais, maxime, a utilização ótima das frequências e dos números (ii), assumindo-se, destarte, como uma contribuição financeira.
Trata-se, portanto, de um tributo pelo qual se permite aos particulares o aproveitamento especial de um bem do domínio público (cfr. os Acórdãos n.ºs 20/2003 e 204/2003, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), algo que lhes confere uma vantagem ou um benefício individualizados. Ocorre, no entanto, que a prestação por aqueles devida é determinada não exclusivamente – como deveria, se se tratasse de uma verdadeira taxa – com base na utilidade derivada do uso desse bem, mas também em função de considerações de índole extrafiscal, talqualmente preconizado pela diretiva europeia mencionada supra (Suzana Tavares da Silva, As taxas e a coerência do sistema tributário, cit., p. 96 e ss.).
7. Assumindo o tributo em causa a natureza de uma contribuição financeira, cumpre tomar posição relativamente à questão da inconstitucionalidade orgânica do n.º 7 da Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro, por violação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da CRP. Ora, não restam dúvidas de que os elementos que se retiram quer da LCE, quer do direito europeu – e que vêm a ser a previsão do tributo propriamente dito, os princípios materiais a que deve obediência, e as finalidades que lhe estão subjacentes – não satisfazem plenamente as exigências que doutrina e jurisprudência (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 1091-1092; e Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2007, p. 116) geralmente associam ao princípio da reserva de lei formal e material em matéria de impostos (cfr. os artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 103.º, n.º 3, CRP). Com efeito, quer os critérios de incidência da “taxa”, quer os requisitos de isenção só se apuram a partir da leitura conjugada do Decreto-lei n.º 121-A/2000, de 20 de julho e da Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro.
Atentas estas considerações, é mister recuperar as soluções doutrinal e jurisprudencialmente avançadas para a questão vertente, que passa, recorde-se, por perceber se a criação e a disciplina das contribuições pode ser levada a cabo pelo Governo através de decreto-lei simples mesmo antes de aprovado o regime geral a que se refere o artigo 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP.
Verdadeiramente, não basta apurar se os elementos especificados na LCE são mais ou menos pormenorizados que os constantes de um eventual regime geral das “demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas” (cfr. a argumentação constante do Acórdão n.º 613/08, já referido), visto que tal maior “pormenor” não colmata a ausência de um regime harmonizador e dador de coerência, como se presume que seja um regime daquele tipo.
Certo é também, porém, que a solução – de criação doutrinal - que pugna pela recondução das contribuições financeiras ao regime jurídico dos impostos paralisaria e bloquearia “a autonomia da ação governamental num domínio que afinal lhe é próprio”. Este argumento adquire validade acrescida quando em causa estejam, como é o caso, tributos que assumem uma função reguladora - entendida esta enquanto tarefa dos poderes públicos que visa garantir o funcionamento eficiente e socialmente responsável dos setores ligados aos serviços de interesse económico geral – codeterminada pelo direito europeu [neste sentido, Cardoso da Costa, «Sobre o princípio da legalidade das “taxas” (e das “demais contribuições financeiras”)», cit., p. 803-804].
Está em causa um tributo que – mesmo de forma mitigada, como vimos - ainda se rege pelo princípio da equivalência, ou seja, ao qual não é aplicável o princípio da capacidade contributiva subjacente aos impostos (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, cit., p. 244). Assim sendo, a solução passa por ponderar o risco de paralisação da atividade do Governo, por um lado, com o risco de proliferação, não controlada pelo Parlamento, de tributos híbridos ou de sinalagmaticidade imperfeita, por outro. Dessa ponderação deflui que as contribuições financeiras devem ser criadas por lei do Parlamento, exigindo-se que a este nível estejam já suficientemente recortados alguns dos seus elementos essenciais - o que, in casu, efetivamente sucede.
Neste sentido, há que concluir que, tendo a taxa pela utilização do espectro radioelétrico sido criada mediante lei formal, a densificação, pelo Governo, através de Decreto-Lei simples e/ou de Portaria, de alguns dos seus elementos essenciais não consubstancia uma violação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da CRP.
III. Decisão
8. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar conjugado com o respectivo anexo inconstitucional o n.º 7, da Portaria n.º 126-A/2005, de 31 de janeiro, por violação da alínea i), do n.º 1, do artigo 165.º, da CRP;
b) Por conseguinte, conceder provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 20 de março de 2013.- José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Joaquim de Sousa Ribeiro.