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Proc. nº 182/99
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. C... interpôs recurso contencioso da deliberação aprovada pela Câmara Municipal do Seixal que determinou a cessação da actividade de reparação de automóveis que o recorrente exercia em Vale de Milhaços, Corroios, Seixal. O recorrente imputou ao acto recorrido vícios de incompetência, forma, violação de lei e desvio de poder. O recorrente invocou, no que mais directamente agora interessa considerar, a violação dos artigos 7º e 12º do Decreto-Lei nº 109/91, de 15 de Março
(respectivamente, normas sobre reclamações relativas à instalação, alteração e laboração de qualquer estabelecimento industrial a apresentar por terceiros e sobre a fiscalização do cumprimento das disposições legais relativas ao exercício da actividade industrial), e dos artigos 51º e 52º do Decreto-Lei nº
100/84, de 29 de Março (respectivamente, normas sobre competência das câmaras municipais e sobre delegação de competência das câmaras municipais).
O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa negou provimento ao recurso e, consequentemente, não decretou a anulação da deliberação recorrida.
2. Não se conformando com a decisão, C... interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, mas a este recurso jurisdicional foi também negado provimento. Decidiu o Supremo Tribunal Administrativo, em síntese:
'3.3. [...]
[...] o ora recorrente não chegou a obter o licenciamento indispensável para a laboração da sua oficina de reparação de automóveis, que oportunamente requerera
à referida Delegação Regional da Indústria e Energia de Lisboa e Vale do Tejo, entretanto, incompetente para o efeito. E não prevendo a lei a remessa dos processos em curso para a entidade competente, devia o ora recorrente ter requerido de novo o respectivo licenciamento à Câmara Municipal do Seixal, competente para o efeito, nos termos do art. 51º, nº 2, al. e) do D.L. nº 100/84, como se viu. Não o fez, tendo entretanto (e apenas) requerido em 16/6/92, a ampliação do edifício com vista a melhorar o funcionamento da referida oficina e criar uma cabine-estufa de pintura [...], pedido que foi indeferido [...]. Assim sendo, verificam-se os pressupostos legais da decisão tomada de ordenar a cessação da actividade desenvolvida pelo ora recorrente na referida oficina, isto é, 'proibir' o exercício de uma actividade industrial em estabelecimento incómodo e tóxico, sem alvará de licença, tal como se diz no parecer que integra o acto lesivo em causa. Licença que [...] só poderá ser concedida se conforme ao Regulamento do Plano de Urbanização aprovado para a localidade. Improcede, assim, a conclusão t) da alegação do recorrente, não tendo a decisão recorrida violado as disposições legais citadas, observadas de igual modo pelo acto impugnado contenciosamente, ao decidir a cessação da actividade do estabelecimento em causa.
3.4. Por fim alega o recorrente – conclusão z) – que a deliberação recorrida enferma de vício de desvio de poder.
É jurisprudência uniforme deste S.T.A. que o objecto do recurso jurisdicional é a decisão do Tribunal recorrido e não o acto administrativo de que foi interposto recurso contencioso. Deste modo, se nas conclusões da alegação do recurso jurisdicional nenhum reparo é feito à decisão 'sub judice' e o recorrente se limita a reeditar as arguições em que fundou a impugnação contenciosa – o que manifestamente ocorre no caso 'sub judice' – o recurso tem forçosamente de improceder, pois nada há que o Tribunal 'ad quem' possa conhecer
– cfr. entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal, do Pleno, de 4/6/97, rec. 31245, e de 26/11/97, rec. 29425. Improcede assim a alegação de desvio de poder.'
3. C... veio então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, através de requerimento assim redigido:
'Imputa a violação da Constituição ao Decreto-Lei nº 109/91, de 15/3, que, ao revogar o Decreto-Lei nº 46923 e o Decreto 46924, ambos de 28/3/66, sem que, nas suas disposições transitórias, designadamente no artigo 25º, tenha previsto o destino a dar aos processos pendentes na entidade licenciadora, isto é, não prever qual a entidade para onde deveriam ser remetidos os processos em curso, conduziu a que o licenciamento, requerido em 9/6/90, à Delegação Regional da Indústria e Energia de Lisboa e Vale do Tejo, não tivesse seguimento e nunca tivesse sido comunicado ao requerente o resultado da vistoria, sendo certo que, face à lei então vigente (art. 12º do Decreto 46924), a laboração dos estabelecimentos industriais de 3ª classe, como é o do recorrente, considerava-se autorizada, até que aquela entidade licenciadora comunicasse o resultado das vistorias. A questão só agora é suscitada, por só agora ser pertinente, porquanto no douto acórdão recorrido decide-se que «não prevendo a lei a remessa dos processos em curso para a entidade competente, devia o ora recorrente ter requerido de novo o respectivo licenciamento à Câmara Municipal do Seixal, competente para o efeito, nos termos do art. 51º, nº 2, al. e) do D.L. nº 100/84», o que não só faz recair sobre os cidadãos o ónus de suprir as lacunas da lei, como também vem dizer que entre o ano de 1984 e o ano de 1991 (durante 7 anos!) o Ministério da Indústria, ao licenciar oficinas de automóveis, usurpou às Câmaras Municipais competências que estas já dispunham desde a publicação do D.L. 100/84, de 29/3. O acórdão recorrido viola assim o princípio da igualdade e dos direitos adquiridos, bem como o direito à justiça e à protecção jurídica, previstos nos artigos 13º e 20º, ambos da Constituição.'
4. O Conselheiro Relator não admitiu o recurso, por considerar que o caso não se enquadra na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, nem nas restantes alíneas da mesma disposição, já que o recorrente pretende interpor um 'recurso por omissão de normas que o interessado considera seriam necessárias à defesa da sua posição jurídica'. C... reclamou para o Tribunal Constitucional do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do artigo 76º, nº 4, da Lei nº 28/82.
O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal Administrativo, manteve
'a decisão de rejeição do recurso, uma vez que o acórdão deste STA, bem ou mal, não aplicou o artº 25º do DL 109/91, de 15 de Março, pelo que não ocorrem os pressupostos do pretendido recurso para o T. C.'.
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação.
II
6. Tendo o recorrente indicado como fundamento do recurso que pretendia interpor a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, para que o Tribunal Constitucional dele pudesse conhecer seria necessário que o recorrente tivesse suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma ou normas que pretende ver apreciada por este Tribunal e que essas normas tivessem sido aplicadas na decisão recorrida, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Segundo jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade de uma norma só se suscita durante o processo quando tal se faz a tempo de o tribunal recorrido poder decidir essa questão. Além disso, a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada de modo claro e preciso, isto é, em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para decidir.
7. No caso dos autos, o recorrente não suscitou de modo processualmente adequado qualquer questão de constitucionalidade normativa a propósito de qualquer das normas legais em torno das quais se situava o litígio que o opunha
à Câmara Municipal do Seixal.
Só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional – que, de qualquer modo, não constituía já momento adequado para suscitar uma questão de inconstitucionalidade – o recorrente veio imputar a
'violação da Constituição ao Decreto-Lei nº 109/91, de 15/3', designadamente ao seu artigo 25º.
Todavia, como bem refere o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, não se vê como poderia a eventual inconstitucionalidade da norma do artigo 25º do Decreto-Lei nº 109/91, de 15 de Março, influenciar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo, que o recorrente pretendia impugnar através do recurso para o Tribunal Constitucional. Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo – para negar provimento ao recurso jurisdicional interposto da decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa que por sua vez negou provimento ao recurso contencioso da deliberação da Câmara Municipal do Seixal que determinara a cessação da actividade de reparação de automóveis exercida pelo recorrente – utilizou essencialmente dois fundamentos:
– por um lado, considerou que o estabelecimento industrial do recorrente não tinha sido licenciado;
– por outro lado, ao confirmar a decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, reconheceu que, independentemente do licenciamento, incumbia ao recorrente ter demonstrado que o exercício da actividade licenciada respeitava os condicionamentos exigidos pela entidade fiscalizadora em matéria ambiental e de respeito pelos direitos de terceiros.
Ora, o artigo 25º do Decreto-Lei nº 109/91, de 15 de Março, em nada interfere com esta decisão, já que se trata de uma disposição de carácter transitório, integrada no diploma que rege o exercício da actividade industrial, cujo teor é o seguinte: 'Nos processos em curso aplicar-se-á, com as necessárias adaptações, o estabelecido no presente diploma e respectiva regulamentação'. E ainda que a questão de constitucionalidade suscitada pelo ora reclamante merecesse eventual provimento, sempre subsistiria a decisão de que se pretende recorrer, na medida em que ela confirma a decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa.
Por outras palavras, a norma cuja inconstitucionalidade o recorrente pretendia que este Tribunal apreciasse no âmbito do recurso referido na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 não constituiu o fundamento decisivo do acórdão impugnado.
8. Conclui-se assim que não estão verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – o tipo de recurso que o ora reclamante pretendia interpor.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 15 de Junho de 1999 Maria Helena Brito Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida