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Proc. nº 685/98
1ª Secção Relatora: Cons.ª Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. No 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, M... foi pronunciado como autor do crime de homicídio negligente, previsto e punível nos termos do artigo 136º, nºs 1 e 2, do Código Penal de 1982. Como medida de coacção, foi-lhe determinado que prestasse termo de identidade e residência, com cumprimento, em virtude de residir fora da comarca, do disposto no nº 3 do artigo 196º do Código de Processo Penal ('indicação de pessoa que, residindo na comarca onde corre o processo, tome o encargo de receber as notificações que lhe devam ser feitas').
O arguido veio dizer que lhe era impossível indicar pessoa da sua confiança que residisse na área de competência da comarca de Braga para receber as notificações. Notificado do despacho que novamente determinou o cumprimento daquela medida no prazo de cinco dias, M... requereu a revogação da medida, suscitando a sua inconstitucionalidade, por considerar que constitui uma restrição infundada do direito fundamental a escolher defensor, violando assim os artigos 2º, 18º, 20º, nºs 1 e 2, e 32º, nºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (fls. 24 e 25).
O Juiz do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga proferiu despacho do seguinte teor:
'Tendo em conta o disposto no art. 203º do C.P.P., a gravidade do ilícito cometido e os indícios de perturbação da instrução do processo que resultam do facto de o arguido residir fora da comarca (cf. art. 204º, al. b), do C.P.P.), sem dar cumprimento ao disposto no art. 196º, nº 3, do C.P.P., impõe-se-lhe, cumulativamente, e até que satisfaça esse dever, a obrigação de se apresentar duas vezes por semana no posto policial mais próximo da sua residência, em hora a acordar com este último, nos termos previstos no art. 198º do C.P.P.'
2. Desta decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Alegou que, não tendo antecedentes criminais e tendo sempre comparecido a todas as diligências de inquérito, não existe justificação para a aplicação de tão gravosa medida coactiva. Afirmou ainda que, com a actual facilidade das comunicações, considera ser indiferente mandar uma notificação postal para Braga (comarca onde corre o processo), ou para Guimarães (comarca onde residem o arguido e o seu mandatário). Nas suas palavras:
'O que, tudo, logo evidencia a falta de fundamento e sentido prático de se pretender obrigar o arguido, «a qualquer preço», passe a expressão, a vir aos autos indicar pessoa que, residindo no concelho e Comarca de Braga, tome o encargo de receber as notificações que lhe devam ser feitas. Isto numa altura em que a nossa mais alta jurisprudência determinou que a figura da «dilação» por residência em concelho e Comarca diferente não é acolhida no nosso actual Código de Processo Penal. Sendo os prazos processuais iguais, quer residam os arguidos na área da Comarca onde corre o processo, quer residam noutra Comarca. Isto quando o próprio princípio da «celeridade processual» anunciadamente presente na nossa lei adjectiva penal, aconselha que sejam eliminados os
«intermediários» na realização das diligências processuais penais. Isto quando os princípios da «certeza e segurança jurídica» e da «economia processual» e sobretudo, os princípios constitucionais da «proporcionalidade» da lei num Estado de Direito Democrático e das mais «amplas garantias de defesa» do arguido, aconselham e determinam expressamente que todas as notificações reputadas importantes pela lei, sejam efectiva e certificadamente feitas na própria pessoa do arguido. Sendo as demais realizadas na pessoa do seu defensor nomeado ou Advogado constituído - «vide gratiae» nº 5 do art. 113 e ainda os arts 111º e 112º do C.P.Penal. Ou seja, a conjugação de todos os supra enunciados e bem conhecidos princípios constitucionais e dos aludidos princípios fundamentais à nossa lei penal, demonstram a desconformidade do disposto no nº 3 do art. 196º do C.P.Penal com esses mesmos princípios e regras fundamentais. E temos para nós que a interpretação «à letra» de tal preceito é manifestamente violadora dos supra invocados princípios constitucionais, tal como violadora dos fundamentais e prevalecentes direitos de defesa do arguido, conforme se acham regulados na aplicação conjugada, entre outras, das normas do arts. 61º, als. d) e e), 111º, 112º e 113º do nosso actual Código de Processo Penal.'
3. O Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, afirmando que:
'Entendeu o Mº Juiz a quo que, tendo em conta a gravidade do ilícito cometido e os indícios de perturbação da instrução do processo que resultam do facto de o arguido residir fora da comarca, sem dar cumprimento ao disposto no artigo 196º, nº 3, deveria aplicar àquele a medida de apresentação periódica, até que satisfaça esse dever (o dito cumprimento do nº 3 do artigo 196º). Ora, a circunstância de o arguido residir fora da comarca e não ter indicado pessoa capaz de receber as notificações que devem ser feitas corresponde efectivamente a perigo de perturbação de instrução do processo, entendendo-se
«instrução», não no sentido técnico-jurídico que lhe é fixado nos artºs 286º segs do C.P.Penal, mas sim de «andamento» normal do processo, que seria perturbado se o arguido, por inércia do Tribunal, ficasse logo potencialmente impossibilitado de receber tais notificações. Daí que, pautando-se pelos parâmetros estabelecidos nos artigos 196º, nº 3,
198º, 203º e 204º, alínea b) do aludido Código, a medida imposta não seja inadequada e muito menos ilegal ou inconstitucional, tanto mais que, como vimos,
é cumulável com o TIR (nº 4 do citado artigo 196º) e é consequência da violação do comando do seu nº 3.'
4. Em face desta decisão, M...,
'Não se podendo conformar com o douto Acórdão proferido a fls... dos autos, designadamente na parte em que julgou constitucional a interpretação dada pelo MMº Juiz do Tribunal de 1ª instância do disposto no art. 196º, nº 3 do C.P.Penal e a consequente cumulação de nova medida de coacção, por violação dos princípios constitucionais consagrados nos arts. 2º, 13º e 32º da Constituição, como foi invocado nas alegações de recurso interposto para este Tribunal, Vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional [...]', ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Notificado para produzir alegações no âmbito do recurso de inconstitucionalidade, o recorrente concluiu do seguinte modo:
'2. No caso do processo penal e, particularmente no caso dos autos, para além de sempre se dever ter presente aqueles enunciados princípios constitucionais, importa ainda atender ao princípio das mais amplas garantias de defesa, nestas se incluindo o direito de escolher defensor e de ser por ele representado e
«defendido», em todos os momentos processuais, o que aconselha e determina que as notificações reputadas de importantes pela lei sejam efectiva e certificadamente feitas na própria pessoa do arguido, ou, em alternativa, na pessoa do seu mandatário forense e defensor escolhido [art. 32º da Constituição].
3. Acresce que o citado art. 32º da Constituição consagra de forma expressa o princípio fundamental da plenitude das garantias de defesa, tem como corolário lógico o princípio da presunção de inocência, onde se integra, para além do mais, a «proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares» , bem como a proibição de, na pendência dos autos, serem aplicados ao arguido «castigos» - como o de cumulação de medidas de coacção e ameaça de novas e mais gravosas ... – em razão de o mesmo não conseguir satisfazer a
«exigência» de encontrar dentro do concelho de Braga pessoa que queira assumir o encargo de receber as suas notificações.
4. Isto quando o arguido tem já constituído mandatário forense que o mesmo escolheu como defensor (art. 32º nº 3 da Constituição).
5. E sendo certo que, nos termos do art. 44º da Constituição, o cidadão/arguido, que se presume inocente, tem o direito de fixar residência onde mais lhe convier e em qualquer parte do território nacional, não podendo ser perseguido ou
«castigado» por não residir no concelho da Comarca do Tribunal de Braga (art.
13º da Constituição).
6. O nº 3 do art. 196º do C.P.Penal na interpretação que dele fizeram as instâncias é, por isso, manifestamente inconstitucional, porque cerceia inútil, escusada e desproporcionalmente os direitos, liberdades e garantias a que todo o cidadão tem constitucionalmente direito, violando os supra citados e referenciados princípios constitucionais. Pelo que,
7. Salvo o devido respeito e mais douta opinião, as recorridas decisões do Tribunal de 1ª Instância e do Tribunal de 2ª Instância, violaram e, ou, interpretaram erradamente o conjugadamente disposto nos arts. 2º, 13º, 20º, 32º e 44º da Constituição da República Portuguesa.'
O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional concluiu assim as suas alegações:
1º É inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade e da máxima restrição das medidas de coacção aplicáveis cautelarmente ao arguido – decorrente do princípio da presunção de inocência – a interpretação da norma constante do nº 3 do artigo 196º do Código de Processo Penal, na medida em que considera que o dever aí previsto não pode ser substituído pela assunção pelo mandatário judicial do arguido – notificado sempre por carta registada, que se presume recebida no seu escritório – do ónus de transmitir prontamente ao arguido, residente noutra comarca, o teor de quaisquer notificações que, no decurso do processo, devam ser-lhe feitas (nomeadamente, no caso de se ter frustrado, quanto ao arguido, a via postal prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 113º do Código de Processo Penal).
2º Na verdade, perante tal compromisso do mandatário judicial, revela-se funcionalmente inadequada a exigência constante daquele nº 3 do artigo 196º, sendo desproporcionada, nestas circunstâncias, a imposição ao arguido de medida de coacção mais gravosa, com base no incumprimento daquele dever.
3º Termos em que, verificada que esteja a condição referida – assumir explicitamente o defensor do arguido o ónus de recebimento e pronta comunicação a este do teor de quaisquer notificações – deverá ser julgado procedente o presente recurso.'
II
5. Dispõe o artigo 196º, nº 3, do Código de Processo Penal (versão de
1987):
'Se o arguido residir ou for residir para fora da comarca onde o processo corre, deve indicar pessoa que, residindo nesta, tome o encargo de receber as notificações que lhe devam ser feitas.'
5.1. O artigo 196º do Código de Processo Penal disciplina a aplicação da medida de coacção de termo de identidade e residência, e integra-se no capítulo dedicado às medidas de coacção aplicáveis ao arguido em processo penal. Esta providência destina-se a garantir a possibilidade de localizar o arguido para efeito de realização de quaisquer diligências processuais. Visa portanto assegurar o bom andamento do processo.
5.2. O nº 3 do artigo 196º, é aplicável sempre que o arguido sujeito à medida prevista no nº 1 do mesmo artigo (termo de identidade e residência) resida ou pretenda residir fora da comarca onde o processo corre. Tal disposição tem portanto como objectivo resolver o problema da notificação do arguido quando este não resida dentro dos limites da comarca em que está instalado o tribunal. Não se trata só de garantir a notificação pessoal do arguido – situação a que alude o artigo 113º, nº 1, do Código de Processo Penal, e que ocorre na falta de constituição de mandatário pelo arguido –, mas sobretudo de prover para que alguém tome a responsabilidade de receber as notificações judiciais que lhe forem dirigidas. A concretização prática da exigência contida na norma do artigo 196º, nº 3, do Código de Processo Penal é, assim, dupla: não só o arguido estará sempre informado da marcha do processo – facto essencial para a realização do princípio da plenitude das suas garantias de defesa, nomeadamente da salvaguarda do contraditório (artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa) –, como a justiça penal ficará protegida contra eventuais atrasos derivados da dificuldade de localização daquele – dado importante para a promoção de uma célere administração da justiça no foro penal (artigo 32º, nº 2, in fine, da Lei Fundamental).
6. Sublinhe-se que apenas constitui objecto do presente recurso a norma do artigo 196º, nº 3, do Código de Processo Penal e a constitucionalidade da obrigação, para o arguido que resida em comarca diferente daquela em que correm os autos, de indicar pessoa que, residindo na comarca, tome o encargo de receber e transmitir as notificações que lhe sejam feitas. Diferentemente do que parece resultar das alegações do recorrente não está aqui em discussão o problema da constitucionalidade da cumulação de medidas de coacção, nem o problema da constitucionalidade da obrigação, que foi imposta ao recorrente, de se apresentar duas vezes por semana no posto policial mais próximo. Esta outra medida foi-lhe determinada, em consequência do incumprimento da obrigação resultante do artigo 196º, nº 3, do Código de Processo Penal, mas com fundamento em normas diversas daquela cuja constitucionalidade é contestada no presente recurso. Na verdade, a razão de decidir, invocada quer pelo Juiz da Comarca de Braga quer pelo Tribunal da Relação do Porto, encontra-se nas normas dos artigos 198º, 203º, 204º, alínea b), e 196º, nº 4, do Código de Processo Penal (fls. 26 e 50v.). A constitucionalidade de tais normas não foi todavia suscitada pelo recorrente, razão por que o Tribunal Constitucional não pode dela conhecer.
7. Assim, o argumento invocado pelo recorrente que se prende com o princípio da presunção de inocência – alegadamente violado pelo tribunal, na medida em que a interpretação realizada pelo tribunal permitiria um adiantamento de verdadeiras penas a título cautelar – está deslocado na motivação do presente recurso. Não se inclui no objecto do recurso o problema da proporcionalidade ou não da aplicação da nova medida de coacção, mas apenas – repete-se –, a questão da obrigação de indicar pessoa que receba as notificações do tribunal.
8. Ora esta obrigação não deve considerar-se uma restrição desproporcionada ao direito de escolher o defensor, consagrado nos artigos 20º, nº 2, e 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa. Isto porque ela visa acautelar valores de interesse público tais como o bom andamento do processo, como já se referiu. E simultaneamente protege os interesses do arguido, que tem assim a garantia de estar sempre a par da marcha do processo, facto essencial para a garantia do princípio do contraditório.
Com efeito, ela não é nem desadequada, nem excessiva (cfr. artigo
18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa). A indicação de uma pessoa que resida na área da comarca acautela o interesse público da facilidade de encontrar o arguido, e este não fica desproporcionadamente onerado com esta obrigação, ainda que a pessoa indicada seja um profissional do foro, pois as suas funções resumem-se, no caso, a esta tarefa, o que não implicará em geral grandes despesas.
Não existe, por isso, violação do princípio da proporcionalidade
ínsito no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, em conjugação com os artigos 20º, nº 2, e 32º, nº1, da Constituição da República Portuguesa.
9. Tão pouco procede a invocação da violação da liberdade de fixação de residência. De facto, nada na lei – nem na interpretação realizada no acórdão recorrido – indica a obrigatoriedade de alteração da residência do arguido em função da comarca onde se desenrola o processo. Não há, por isso, qualquer condicionamento desta liberdade, afastando-se, em consequência, a violação do artigo 44º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
10. Finalmente, no que toca ao princípio da igualdade, não se vê como possa fazer vencimento a argumentação do recorrente. Na verdade, pretender-se-ia provar que a desigualdade, alegadamente imposta pelo legislador e confirmada pelo acórdão recorrido, entre arguidos residentes na comarca em que corre o processo e arguidos que residem fora dela, traduzida na obrigação, por parte destes últimos, de constituição de novo mandatário para efeito de recebimento e transmissão de notificações judiciais, careceria de fundamento. Estaria, assim, posto em causa o imperativo decorrente do artigo 13º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
No entanto, os valores que atrás se referiram – nomeadamente o bom andamento do processo, que pressupõe uma possibilidade de contacto constante com o arguido –, são justificativos desta desigualdade de situações. O fundamento é, portanto, objectivo e tem um interesse público constitucionalmente reconhecido, o que afasta a alegação de violação do princípio da igualdade.
Acresce que a norma não impõe necessariamente a constituição de novo advogado para o efeito pretendido, bastando-se com a indicação de pessoa que resida na comarca.
11. Não resulta portanto da exigência contida no artigo 196º, nº 3, do Código de Processo Penal, qualquer violação das ideias de igualdade, justiça e confiança subjacentes ao princípio do Estado de direito democrático. III
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional a norma do artigo 196º, nº 3, do Código de Processo Penal, por considerar que ela não implica violação dos artigos 2º, 13º,
20º, nº 2, 32º, nº 1, e 44º, nº1, em conjugação com o artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa; b. Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, no tocante
à matéria de constitucionalidade. Lisboa, 15 de Junho de 1999- Maria Helena Brito Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei vencido, por entender que a norma questionada impõe uma obrigação excessiva, violadora do princípio da proporcionalidade.
Com efeito, uma norma que obriga o arguido a indicar pessoa que resida na comarca para receber e transmitir notificações só se compreende por mero anacronismo, uma vez que se apresenta como manifestamente obsoleta em face dos novos meios de comunicação e informação.
Sublinhe-se que a norma em causa não assegura a notificação pessoal do arguido nem, tão-pouco, a efectiva transmissão das notificações efectuadas – apenas o responsabiliza se tal não vier a acontecer. Ora, esse desiderato seria igualmente alcançado no caso de se permitir que o arguido indicasse outra forma adequada de recebimento das notificações, com assunção da respectiva responsabilidade: por via postal, com registo; por telecópia; ou, mesmo, por correio electrónico.