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Proc. nº 268/97
2ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Os ora recorrentes P. (e outros) foram, em 2 de Março de 1996, presentes ao Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães para que se procedesse ao respectivo interrogatório judicial, uma vez que haviam sido detidos pela autoridade judicial em flagrante delito. O referido interrogatório judicial foi presidido pela Dr.ª Maria Amélia Pereira Teixeira, juíza daquele Tribunal, que proferiu o despacho de fls. 13/14, validando a detenção dos arguidos e determinando a prisão preventiva dos mesmos.
2. Posteriormente, e já após a elaboração do relatório final do inquérito, vieram os arguidos requerer a substituição da prisão preventiva por uma medida de coacção menos grave - fundando-se para tanto na alegação de matéria de facto nova e sugerindo a realização de outras diligências probatórias -, o que veio efectivamente a acontecer, tendo outro magistrado judicial revogado a prisão preventiva inicialmente aplicada aos arguidos.
3. Deduzida acusação contra os mesmos foi proferido por aquela Senhora Juíza o despacho de fls. 127 e 128, em que, em suma, a mesma se declara impedida para o julgamento dos presentes autos, fundando-se para tanto na recusa de aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, da norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, “na parte em que permite a intervenção no julgamento do Juiz que, na fase de inquérito, decretou a prisão preventiva de dois dos arguidos, prisão essa substituída por outra Juiz, na sequência de pedido formulado pelos arguidos nesse sentido”.
4. É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público, ao abrigo dos artigos 280º, nºs 1, al. a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1, al. a), 71º e 78º, nº 4 da Lei do Tribunal Constitucional, o presente recurso obrigatório.
5. Já neste Tribunal foi o Ministério Publico (recorrente) notificado para alegar, o que fez, tendo concluído nos seguintes termos:
“1º - Não afecta as garantias objectivas de imparcialidade e isenção do juiz, na fase de julgamento, a circunstância de este ter, na fase liminar do processo, apreciado a legalidade da detenção dos arguidos e determinado – perante a situação de facto existente à data do primeiro interrogatório judicial – a aplicação aos mesmos da medida de coacção de prisão preventiva, sem que tenham ocorrido outras e posteriores intervenções desse mesmo julgador no decurso do inquérito, que implicassem uma apreciação substancial dos indícios entretanto recolhidos.
2º- tais garantias não são afectadas pelo facto de outro juiz, no termo do inquérito e a requerimento dos arguidos, perante a invocação de factos novos e a realização das diligências probatórias por eles sugeridas, ter considerado que era viável substituir a prisão preventiva por outras medidas de liberdade provisória menos gravosas.
3º - Não padece de inconstitucionalidade a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, quando interpretada e aplicada em termos de não estender o impedimento que nela se prescreve aos casos em que o juiz, competente para o julgamento, se limitou a proceder ao primeiro interrogatório do arguido, a validar a captura e a ajuizar liminarmente dos pressupostos da respectiva prisão preventiva, sem ulteriormente ter lugar qualquer outra intervenção do mesmo magistrado no decurso do inquérito.
4º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida”.
6. Por parte dos recorridos não foi apresentada, dentro do prazo legal, qualquer alegação.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
7. O artigo 40º do Código de Processo Penal foi já declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 186/98 (Diário da República, I Série A, nº 67, de 20 de Março de 1998), por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido.
Importa, por isso, começar por averiguar se a dimensão normativa do artigo 40º do Código de Processo Penal que a decisão recorrida se recusou a aplicar coincide com a já declarada inconstitucional pelo citado Acórdão nº 186/98, uma vez que, em caso afirmativo, apenas haverá agora que fazer aplicação daquela declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
7. Cremos, porém, que tal identidade não se verifica. Isto é, a dimensão normativa do artigo 40º do Código de Processo Penal que a decisão recorrida se recusou a aplicar não coincide com a já declarada inconstitucional pelo Acórdão nº 186/98.
No acórdão nº 186/98 - como nos acórdãos em que este se fundamentou; os acórdãos nºs 935/96, de 10 de Julho (publicado no Diário da República, II série, nº 286, de 11 de Dezembro de 1996, p.17135 a 17139), 284/97, de 9 de Abril, e 481/97, de
2 de Julho (estes ainda inéditos) - estava em causa o artigo 40º do Código de Processo Penal quando interpretado em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, durante a fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido. Não é, contudo, essa a situação factual que encontramos retratada nos presentes autos.
Nos presentes autos está em causa o artigo 40º do Código de Processo Penal quando interpretado em termos de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, presidindo ao primeiro interrogatório judicial dos arguidos, lhes decretou a prisão preventiva, medida de coacção essa que depois veio a ser substituída por outro juiz, na sequência de pedido formulado pelos arguidos nesse sentido.
Em suma: ali estava em causa uma dupla intervenção sucessiva do juiz na fase de inquérito (decretar e posteriormente manter a prisão preventiva) aqui está em causa uma intervenção isolada (decretar, findo o primeiro interrogatório judicial, a prisão preventiva).
Esta diferença ao nível da matéria de facto que esteve na base do citado Acórdão nº 186/98 e a que agora está na base do presente processo, torna inaplicável, à situação que agora constitui objecto dos autos, a declaração de inconstitucionalidade ali formulada.
O próprio Acórdão nº 186/98 – bem como aqueles em que este se fundou, e a que supra já fizemos referência – expressamente alerta para a relevância da circunstância, entendida como decisiva na sua própria lógica argumentativa, de a intervenção do juiz na fase de inquérito não ser uma intervenção esporádica ou isolada, mas ser, pelo contrário, uma intervenção reiterada ou repetida. Aliás, o citado acórdão vai mesmo mais longe ao expressamente rejeitar – na sequência do que já havia sido feito pelo acórdão nº 935/96 - que a participação no julgamento do juiz que se limitou a, findo o primeiro interrogatório judicial, decretar a prisão preventiva, consubstancie uma violação da Constituição. Afasta assim expressamente este Acórdão a analogia entre a situação de facto que esteve na base do juízo de inconstitucionalidade que nele se formula e a que agora está na base do presente processo.
Nesse sentido refere-se no Acórdão nº 186/98:
“Depois da referida caracterização do princípio do acusatório, o Acórdão nº
935/96 deteve-se sobre a razão de ser do artigo 40º do Código de Processo Penal, indicando que o impedimento aí previsto tinha como objecto obstar a que o juiz de instrução pudesse «eventualmente vir a ser influenciado pelo conhecimento dos factos do processo no decurso da fase instrutória, com vista a garantir a imparcialidade e a independência do tribunal» e fazendo notar que aquele artigo só reconhecia o impedimento ao juiz que houvesse presidido ao debate instrutório. No mesmo aresto transcrevia-se o entendimento de Jorge Figueiredo Dias, o qual, ao comentar este artigo 40º, sustenta que «a solução do impedimento expresso por participação em processo anterior já não se justifica se atentarmos em actos isolados (v. g. aplicação de uma medida de coacção) que o juiz de julgamento tiver praticado na qualidade de juiz de instrução» (Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, Secção de Textos da Faculdade de Direito de Coimbra, 1988-1989, pp. 101-102), embora admitisse que os sujeitos processuais pudessem apresentar um requerimento de impedimento ao juiz que se limitasse a praticar um acto isolado de instrução - ou mesmo que o próprio juiz pudesse formular um pedido de dispensa, «sempre que a intervenção anterior no processo [comportasse] circunstâncias que impliquem desconfianças quanto à imparcialidade do juiz» (...). Na fundamentação do Acórdão nº 935/96 referem-se as duas visões contrapostas de natureza geral sobre a eventual violação do princípio do acusatório pelo artigo
40º, na medida em que o impedimento deste artigo não abrange o juiz que decretou a prisão preventiva, elencando-se a argumentação utilizada por cada uma delas
(pontos 12 e 13), e passa-se, depois, a analisar o caso dos autos, em que tinha havido não uma mera intervenção esporádica do juiz do julgamento na prática de um acto isolado de instrução (sobre uma situação desse tipo veja-se o Acórdão nº
114/95 da 1ª Secção, in Diário da República, II série, nº 95, de 22 de Abril de
1995), nomeadamente no decretamento da prisão preventiva após o primeiro interrogatório do arguido detido, mas uma intervenção repetida, já que o juiz que participara no julgamento havia não só decretado a prisão preventiva, como mantido posteriormente essa medida de coacção, quando apreciara um requerimento do arguido em que ele solicitava a revogação da medida em causa. Pode ler-se no Acórdão nº 935/96:
«Quer isto dizer que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, se pronunciou sobre a prisão preventiva do arguido, foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva. Ora, aplicada nesta dupla dimensão, a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz,
ínsito no princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º da Constituição. Na verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o inquérito está a chegar ao seu termo e em que já existem no processo quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes aspectos do processo que, objectivamente - e sem prejuízo da independência interior que ele for capaz de preservar -, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento. Conclui-se, assim, que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição. (...). Também na presente situação se poderá dizer, tal como o fez o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Hauschildt acabado de referir, que se verifica uma circunstância particular que justifica uma solução de inconstitucionalidade: a circunstância de ter o juiz que participou no julgamento não apenas ter decretado, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, a prisão preventiva deste, mas ainda confirmado, em data posterior e já bem próxima da data da acusação, a prisão preventiva do mesmo arguido - tudo em termos de poder criar no arguido e nos cidadãos a suspeita de que aquele juiz, ao decidir, possa não o fazer com imparcialidade.»
Como, bem, sublinha o Ministério Público nas sua alegações, a ratio decidendi do Acórdão nº 186/98 assentou na circunstância, tida por decisivamente relevante, de o juiz não se ter limitado a, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, decretar a respectiva prisão preventiva, mas na circunstância de ter, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmado essa mesma prisão preventiva “– fazendo-o, portanto, «num momento em que o inquérito está a chegar ao seu termo e em que já existem no processo quase todos os elementos que
é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade»”.
Em suma: do exposto resulta pois, inequivocamente, que não é possível estender à situação que agora constitui objecto dos autos a declaração de inconstitucionalidade formulada no Acórdão nº 186/98, por, na perspectiva do próprio acórdão, não haver uma identidade substancial entre as duas situações em termos de permitir essa hipotética extensão.
8. E a fundamentação utilizada no Acórdão nº 186/98 - bem como a utilizada por aqueles acórdãos em que este se fundamentou - permite ainda justificar porque é que a dimensão normativa do artigo 40º do Código de Processo Penal que a decisão ora recorrida se recusou a aplicar - e que permite a intervenção no julgamento do juíz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, decretou a prisão preventiva do mesmo, posteriormente revogada por outro juiz - não é, também ela, e quando considerada isoladamente, inconstitucional, designadamente por violação do artigo 32º, nº 5 da Constituição.
Como se disse naquele Acórdão – em parte que, aliás, já transcrevemos antes:
«Quer isto dizer que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, se pronunciou sobre a prisão preventiva do arguido, foi aplicada, in casu, numa dupla dimensão: naquela em que o juiz decretou, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, a prisão preventiva e naquela em que, em data posterior, já bem próxima da data da acusação, confirmou a prisão preventiva. Ora, aplicada nesta dupla dimensão, a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal infringe claramente o princípio da imparcialidade objectiva do juiz,
ínsito no princípio do acusatório, constante do nº 5 do artigo 32º da Constituição. Na verdade, quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que antes decretou, num momento em que o inquérito está a chegar ao seu termo e em que já existem no processo quase todos os elementos que é possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada quanto a estes aspectos do processo que, objectivamente - e sem prejuízo da independência interior que ele for capaz de preservar -, fica inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na fase do julgamento. Conclui-se, assim, que a norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, é inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição. (...). Também na presente situação se poderá dizer, tal como o fez o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Hauschildt acabado de referir, que se verifica uma circunstância particular que justifica uma solução de inconstitucionalidade: a circunstância de ter o juiz que participou no julgamento não apenas ter decretado, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido, a prisão preventiva deste, mas ainda confirmado, em data posterior e já bem próxima da data da acusação, a prisão preventiva do mesmo arguido - tudo em termos de poder criar no arguido e nos cidadãos a suspeita de que aquele juiz, ao decidir, possa não o fazer com imparcialidade”.
Na lógica argumentativa utilizada pelo Tribunal, que mantém inteira validade, não é qualquer intervenção na fase de inquérito por parte do juiz que depois há-de participar no julgamento que é apta a justificadamente pôr em causa a sua independência e imparcialidade - ou a confiança do arguido e do público nessa mesma independência e imparcialidade - em termos de dever considerar-se que a norma que a permita é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32º, nº 5 da Constituição.
Designadamente não é idónea a, justificadamente, pôr em causa a independência e imparcialidade do juiz que há-de participar no julgamento, uma sua participação pontual, isolada, na fase de inquérito, traduzida em, por exemplo, ordenar uma busca domiciliária (nesse sentido se decidiu no acórdão nº 114/95, Diário da República, II Série, de 22 de Abril de 1995), proferir despacho de manutenção da prisão preventiva anteriormente aplicada ao arguido, ao abrigo do disposto no artigo 213º do mesmo Código (nesse sentido se decidiu, recentemente, no acórdão nº 29/99, Diário da República, II Série, de 12 de Março de 1999) ou, como é o caso dos autos, decretar a prisão preventiva findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido.
Como se deixou expresso naqueles acórdãos um juízo de inconstitucionalidade da norma que permita a intervenção no julgamento do juiz que participou na fase de inquérito, por violação do artigo 32º, nº 5, da Constituição, pressupõe que as intervenções do juiz - pela sua frequência, intensidade ou relevância - sejam aptas a razoavelmente permitir que se formule uma dúvida séria sobre as condições de isenção e imparcialidade desse mesmo juiz ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma imparcialidade e independência.
Não é, porém, como se demonstrou logo no acórdão nº 935/96, e depois se reafirmou no acórdão nº 186/98, a situação do juiz que se limita a, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, decretar a prisão preventiva do mesmo, não tendo ulteriormente qualquer outra intervenção no decurso do inquérito.
III - Decisão
Por tudo o exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, quando interpretado no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, decretou a prisão preventiva, não tendo ulteriormente qualquer outra intervenção no decurso do inquérito;
b) Conceder provimento ao presente recurso de constitucionalidade;
c) Ordenar que a decisão recorrida seja reformulada em conformidade com o juízo aqui feito sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 9 de Junho de 1999- José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com dispensa de visto) José Manuel Cardoso da Costa