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Processo n.º 681/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional,
I - Relatório
1. A. foi detido em flagrante, pela autoridade policial, pela prática de um crime de usurpação e de aproveitamento de obra usurpada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 195.º e 199.º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.
Foi, na altura, constituído arguido e também prestou termo de identidade e residência.
2. Não tendo comparecido na data designada para o seu julgamento em processo sumário, veio o Ministério Público determinar que se procedesse a inquérito, tendo concluído pela sua acusação. O arguido foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de dois crimes previstos e punidos pelos artigos 195.º e 199.º do Código do Direito de Autor e Direitos Conexos.
3. No dia designado para o julgamento, o arguido não compareceu, tendo a audiência sido adiada sine die. Posteriormente, veio o Ministério Público promover que se designassem novas datas para o julgamento e que se notificasse o arguido pela via postal simples, para a morada indicada no termo de identidade e residência. O 1.º Juízo dos Juízos Criminais do Porto indeferiu aquela promoção, uma vez que a notificação em causa teria de ser forçosamente pessoal por se entender que a morada constante do termo de identidade e residência não podia produzir os seus efeitos, pois o arguido comprovadamente aí não residia.
Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação do Porto, que veio a proferir acórdão, a 4 de julho de 2012, no seguinte sentido:
“(…)No caso em apreço podemos constatar, a partir do Termo de Identidade e Residência prestado pelo arguido em 2009/Jun./14, a fls. l deste apenso recursivo (fls. l 1 do original), que o mesmo é um cidadão marroquino, que se encontra no nosso país mediante uma autorização de residência, encontrando-se esse mesmo TIR redigido em língua portuguesa, sendo através do mesmo que lhe foram dados a conhecer as respetivas obrigações, designadamente de “não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias, sem comunicar a nova residência” e que o seu incumprimento poderia conduzir ao seu julgamento na sua ausência. Mas não consta desse TIR que o seu conteúdo tenha sido traduzido para a sua língua nativa ou então que o arguido conhecia ou dominava a língua portuguesa.
Assim, numa perspetiva meramente formal e uma vez que o arguido, ainda que seja de nacionalidade marroquina, assinou esse mesmo TIR, estando presente no ato e não tendo suscitado a sua nulidade, podíamos certamente dizer que essa desconformidade estava sanada e o mesmo passava a estar obrigado às obrigações que aí lhe foram impostas.
Mas numa leitura jusfundamental dos seus direitos não podemos ter a certeza que o mesmo tenha compreendido o significado dessas obrigações e muito menos que estivesse em condições de suscitar a correspondente nulidade da falta de nomeação de um intérprete, mormente por se encontrar desacompanhado de advogado.
Isto significa que o referido TIR prestado pelo arguido não pode ter qualquer relevância processual, atentos os seus direitos fundamentais de defesa e do direito a um processo equitativo, tanto mais que no futuro poderia até conduzir a uma nulidade insanável, como seria a realização da audiência de julgamento na sua ausência, pois esta seria uma ausência forçada que não seria motivada pela vontade do arguido, mas por inabilidade na comunicação dos seus deveres processuais.
Daí que no caso presente, o bloco legal decorrente da conjugação do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, al. c), n.º 3, al. a) e 121.º, n.º l, este por interpretação extensiva, 196.º. n.º 3 e 333.º, n.º l do Código de Processo Penal, ao considerar como nulidade sanável, que deve ser suscitada no próprio ato, sob pena de se considerar válida a falta de nomeação de intérprete ao arguido, que é desconhecedor ou não domina a língua portuguesa e está desacompanhado de advogado, vindo a possibilitar no futuro o seu julgamento na sua ausência, viola de modo flagrante e ostensivo os seus mais elementares direitos de defesa e o seu direito a processo equitativo, respetivamente consagrados nos artigos 32.º, n.º 1, n.º 6 e 20.º, n.º 4 da Constituição, 14.º, n.º 3, al d) do PIDCP, bem como o artigo 6.º, n.º 3, al. b), c), d) e e) da CEDH.
Assim e muito embora por outras razões será de manter o despacho recorrido.”
4. O Ministério Público recorreu, então, desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas a) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante LTC), no seguinte sentido:
“O magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, notificado do douto acórdão de fls. 83 a 87, vem, nos termos do disposto nos arts. 70.º, n.º 1, als. a) e i), 71.º, 72.º, n.º 1, al. a) e 74.º, n.º 1 da Lei n.º 28/82, de 15-11, interpor o presente recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, relativamente ao segmento do acórdão indicado, em que se recusa aplicação ao «(…) bloco legal decorrente da conjugação do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, al. c), n.º 3, al. a) e 121.º, n.º 1 este por interpretação extensiva, 196.º, n.º 3 e 333.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ao considerar como nulidade sanável, que deve ser suscitada no próprio ato, sob pena de se considerar válida a falta de nomeação de intérprete ao arguido, que é desconhecedor ou não domina a lingual portuguesa e está desacompanhado de advogado, vindo a possibilitar no futuro o seu julgamento na sua ausência, viola de modo flagrante e ostensivo os seus mais elementares direitos de defesa e o seu direito a processo equitativo, respetivamente consagrados nos artigos 32.º, n.º 1, n.º 6 e 20.º, n.º 4 da Constituição (negrito nosso), 14.º, n.º 3, al. d) do PIDCP, bem como o artigo 6.º, n.º 3, al. b), c), d) e e) da CEDH»
Este juízo – por entender que a interpretação jurídica de certo acervo normativo é violadora das normas acima referidas [dos artigos 120.º, n.º 2, al. c), n.º 3, al. a) e 121.º, n.º 1 este por interpretação extensiva, 196.º, n.º 3 e 333.º, n.º 1 do Código de Processo Penal] e do direito de defesa e a um processo equitativo –, encerra uma decisão de não aplicação, por desconformidade constitucional, daquelas normas face ao disposto nos artigos 32.º, n.º 1, n.º 6 e 20.º, n.º 4 da Constituição, 14.º, n.º 3, al. d) do PIDCP, bem como o artigo 6.º, n.º 3, al. b), c), d) e e) da CEDH.
O presente recurso é interposto, face à decisão recorrida, ainda que do processo, em concreto, não resulte que o arguido, apesar de ser cidadão estrangeiro, seja desconhecedor da lingual portuguesa, hipótese em que, mesmo assim, a obrigatoriedade de assistência de defensor é excecionada (art. 64.º, n.º 1, al. c) do CPPen).”
Veio, posteriormente, a apresentar as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:
“Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1. Com a prestação do termo de identidade e residência (artigo 196.º do CPP) é dado a conhecer ao arguido um conjunto de obrigações e de procedimentos futuros.
2. Entre elas consta a de que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no termo de identidade e residência, devendo o arguido comunicar a alteração de residência.
3. O arguido terá, pois, de ter absoluta consciência das suas obrigações, para poder ser responsabilizado pelo seu não cumprimento.
4. Ao arguido estrangeiro que desconheça ou não domine a língua portuguesa e que presta termo de identidade e residência, deve ser nomeado intérprete (artigo 92.º, n.º 2, do CPP), constituindo tal omissão uma nulidade sanável (artigo 120.º, n.º 2, alínea c), do CPP).
5. Considerar sanada essa nulidade, quando ela não é suscitada no próprio ato e o arguido não está acompanhado de defensor, viola as suas garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) e o direito a um processo equitativo (artigo 20,º, n.º 4 da Constituição).
6. Assim, é inconstitucional, por violação daqueles preceitos constitucionais, o bloco normativo decorrente da conjugação do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, al. c) n.º 3, al. a) e 121.º, n.º 1, este por interpretação extensiva, 196.º, n.º 3 e 333.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, ao considerar como nulidade sanável, que deve ser suscitada no próprio ato, sob pena de se considerar válida a falta de nomeação de intérprete ao arguido, que é desconhecedor ou não domina a língua portuguesa e está desacompanhado de advogado, vindo a possibilitar no futuro o seu julgamento na sua ausência.
7. Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.”
O arguido, apesar de para tal notificado, não veio a apresentar alegações.
5. Na sequência das alegações produzidas, foi emitido despacho pela Relatora, com o seguinte conteúdo:
“O conhecimento de recursos de constitucionalidade interpostos para este Tribunal pressupõe que se encontrem devidamente observados e cumpridos os pressupostos enunciados na Constituição da República Portuguesa e na Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
O presente recurso foi interposto ao abrigo das alíneas a) e i) do artigo 70.º da LTC.
Constitui pressuposto específico do conhecimento deste tipo de recursos a recusa efetiva da aplicação de certa(s) norma(s), sendo de rejeitar, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, o conhecimento de recursos interpostos de decisões que configuram “falsas recusas” de aplicação de normas.
Produzidas as alegações (apenas pelo Recorrente), verifica-se que o conhecimento do presente recurso pressupõe a tomada de posição sobre uma questão prévia: saber se a decisão recorrida desaplicou efetivamente uma norma (integrada pelo bloco legal decorrente da conjugação dos preceitos do Código de Processo Penal identificados no recurso), por desconforme à Constituição, ou se a referida decisão se limitou a proceder a uma interpretação e aplicação dos referidos preceitos legais em conformidade com a Constituição, situação esta inidónea para suportar o recurso interposto.
Notifique, por conseguinte, Recorrente e Recorrido, ao abrigo do disposto no artigo 704.º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 69.º da LTC, para, no prazo de 10 (dez) dias se pronunciarem sobre a eventualidade de o recurso não ser objeto de conhecimento pelo facto de não configurar efetiva desaplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade.”
Face a este despacho, veio o Ministério Público a responder, da seguinte forma:
“Nas alegações dissemos:
“2.3. Com interesse para a questão de constitucionalidade resulta dos autos e das decisões proferidas, o seguinte:
- o arguido é cidadão marroquino;
- detido, foi constituído arguido e prestou termo de identidade e residência;
- não conhecia a língua portuguesa;
- não estava acompanhado de defensor;
- não foi nomeado intérprete;
- não compareceu ao julgamento na data designada;
-foi tentada, sem sucesso, a notificação pessoal da acusação e do dia designado para o julgamento;
- as autoridades policiais certificaram que o arguido tinha mudado de residência, não morando na indicada no termo de identidade e residência;
- não comunicou a alteração da nova residência.”
2º
Efetivamente, face a estas circunstâncias, uma interpretação das pertinentes disposições do Código de Processo Penal era suficiente para chegar à conclusão de que a nulidade consistente na não nomeação de intérprete não se encontrava sanada ou que, colocando a questão fora do âmbito das nulidades, desconhecendo o arguido os deveres imposto pelo TIR, não podia ser processualmente prejudicado pelo facto de não comunicar a alteração de residência.
3º
No entanto, o certo é que no Acórdão recorrido foi-se por outra via: fez-se (ficcionou-se?) uma certa interpretação do direito ordinário e entendeu-se que ela era inconstitucional, recusando-se a sua aplicação.
4º
Assim, embora com algumas dúvidas, parece-nos, pois, que houve efetiva recusa da aplicação de uma norma, numa determinada interpretação, com fundamento em inconstitucionalidade, verificando-se esse pressuposto de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. Inicia-se a análise do presente recurso por uma questão prévia. O recurso foi inicialmente interposto ao abrigo das alíneas a) e i) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. No entanto, as alegações produzidas pelo Ministério Público junto do Tribunal Constitucional no âmbito do presente recurso concentram-se apenas no recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (cfr. as conclusões das alegações, fls. 108-109 dos autos) – ou seja, no recurso da decisão de um tribunal que recusa a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Assim sendo, entende-se que o objeto de recurso incide apenas sobre esta questão.
7. Ora, é certo que a decisão de que interpôs recurso o Ministério Público, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, aparece formalmente enunciada por este como sendo uma decisão de recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, da qual cabe recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional de acordo com o prescrito pela Constituição e pela lei.
Sucede, porém, que no enunciado formal do acórdão recorrido em que o Ministério Público sustenta a dita “recusa de aplicação” não se encontra a afirmação expressa de tal recusa. O acórdão vem afirmar que «bloco legal decorrente da conjugação do disposto nos artigos 120.º, n.º 2, al. c), n.º 3, al. a) e 121.º, n.º l, este por interpretação extensiva, 196.º. n.º 3 e 333.º, n.º l do Código de Processo Penal, ao considerar como nulidade sanável, que deve ser suscitada no próprio ato, sob pena de se considerar válida a falta de nomeação de intérprete ao arguido, que é desconhecedor ou não domina a língua portuguesa e está desacompanhado de advogado, vindo a possibilitar no futuro o seu julgamento na sua ausência, viola de modo flagrante e ostensivo os seus mais elementares direitos de defesa e o seu direito a processo equitativo, respetivamente consagrados nos artigos 32.º, n.º 1, n.º 6 e 20.º, n.º 4 da Constituição, 14.º, n.º 3, al d) do PIDCP, bem como o artigo 6.º, n.º 3, al. b), c), d) e e) da CEDH. (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, fls. 87 dos autos).
O Tribunal da Relação do Porto limita-se, desta forma, a afirmar que um determinado resultado interpretativo, obtido após um percurso argumentativo, seria inconstitucional, pelo que não o aplica. O Tribunal começa por discorrer sobre o enquadramento constitucional e de Direito Internacional da situação em presença, para depois se debruçar sobre os preceitos aplicáveis de direito ordinário. No termo do raciocínio interpretativo, o Tribunal conclui que existem duas interpretações possíveis do complexo normativo em causa: uma primeira, que considera «formal» e uma alternativa, decorrente de «uma leitura jusfundamental dos seus direitos» (cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, fl. 86, verso, dos autos). Face a esta dicotomia, o Tribunal opta por aplicar a segunda interpretação possível. Trata-se de um raciocínio típico de interpretação da lei conforme à Constituição e não de desaplicação de norma desconforme com a Constituição. Os preceitos em causa não são desaplicados – o que é afastada, por inconstitucional, é uma leitura possível desses preceitos.
8. Refira-se, aliás, que o Ministério Público concorda com a desnecessidade de desaplicação da “norma” em causa para obter o resultado normativo aplicado pelo acórdão recorrido («Naturalmente que à Relação do Porto poderia eventualmente bastar interpretar o direito ordinário – no caso, os preceitos do CPP –, à luz dos princípios constitucionais para concluir pela não sanação de nulidade», cfr. alegações de recurso, fls. 107 dos autos; cfr. também fls. 117 dos autos, 2.º) e que a argumentação expendida em defesa do caráter de desaplicação do acórdão recorrido (cfr. fls. 116-117 dos autos) não foi de molde a afastar a convicção de que se trata de uma mera interpretação conforme à Constituição e a demonstrar a existência de desaplicação.
9. No contexto de semelhante decisão não pode considerar-se que esteja aberta a via de recurso para o Tribunal Constitucional que a alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC preveem.
Com efeito, uma decisão com estas características não é uma recusa de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade; é, antes, uma decisão de aplicação de um complexo normativo em sentido conforme com a Constituição, da qual, como é evidente, não cabe qualquer recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da Constituição e da LTC.
Tanto basta para que, no caso, se não possa conhecer do objeto de recurso.
III - Decisão
10. Termos em que se decide não conhecer do objeto do recurso.
Lisboa, 20 de março de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, pois entendo que – abstraindo das vias possíveis da boa solução do caso, quer no plano infraconstitucional, quer na interpretação conforme à Constituição – o que o acórdão recorrido efectivamente fez foi uma recusa da aplicação do “bloco legal” constituído pelos aplicados artigos do Código de Processo Penal.)