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Processo n.º 266/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Na sequência de um requerimento de A., em que a requerente
solicitava a devolução da quantia de um preparo que efectivara (fls. 7),
proferiu o juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa o seguinte
despacho (fls. 10):
“Fls. 7: Porque a importância relativa à Taxa de Justiça (preparo) inicial foi
arrecadada pelo Cofre Geral dos Tribunais, nos termos legais, isto é, nos termos
do disposto no art. 31º, n.º 3 do CCJ, atendendo ao valor da mesma Taxa de
Justiça, a impugnante não tem direito ao seu reembolso e, por isso, não pode ser
ordenada a devolução.
[…].”.
2. Notificada deste despacho, A. requereu a reforma da correspondente
decisão, sustentando, entre o mais, o seguinte (fls. 14 e seguinte):
“[…]
O Artigo 31° do C.C.J., salvo melhor entendimento, não é aplicável ao caso dos
autos.
E não o é porque não há responsabilidade por custos (requisito do seu n.º 1),
não há vencedor (requisito do seu n.º 2), mas apenas, e tão só, a inutilidade de
uma lide por culpa de quem se não pode beneficiar dessa inutilidade – o Estado.
E se assim não fosse, o n.º 3 do Art° 31°, na aplicação concreta do caso
subjacente, redundaria numa espoliação ao direito de propriedade, com infracção
do Art° 62º da Constituição traduzindo limitação ao princípio inserto no Art°
20° do mesmo Diploma.
[…].”.
O pedido de reforma foi, porém, indeferido, nos seguintes
termos (fls. 26):
“Fls. 14 a 15: A impugnante vem pedir a reforma da decisão de fls. 10, no
sentido de lhe ser devolvida a taxa de justiça que pagou, no montante de ½ UC.
O M.P. teve vista nos autos.
Apreciando: O Juiz não pode deixar de cumprir a lei vigente pelo que, salvo
melhor opinião, a decisão quanto ao pedido da impugnante – de devolução da TJ
paga inicialmente, no montante de ½ (44,50 €), não podia ser outra atendendo ao
valor da mesma e ao disposto no artigo 31°, n.º 3 do CCJ, que dispõe que «não é
devolvida taxa de justiça de valor igual ou inferior a metade de 1 UC» (89€),
como a impugnante muito bem deve saber.
Por isso, mantém-se a decisão de fls. 10 nos seus precisos termos.
[…].”.
3. A. interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional,
declarando o seguinte (fls. 34 e seguinte):
“[…]
3º- Que o recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Artº 70º da
mesma referida Lei.
4° - Que se alega a inconstitucionalidade da interpretação que a decisão faz do
n.º 3 do Art° 31° do Código de Custas Judiciais, enquanto que permite ao Estado
a retenção (e propriedade) de uma Taxa de Justiça que a recorrente tem de pagar
para se defender do erro praticado pelo mesmo Estado, erro esse que se traduz na
exigência de contribuição (a Autárquica) e que se reconhece não lhe ser devida.
O Artigo 31° não é aplicável ao caso dos autos, mas se o fosse (ou na
interpretação que se fez na decisão recorrida) contraria os Art°s 62° e ss. da
Constituição.
5° - A invocação de inconstitucionalidade consta da reclamação da conta […].”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 91.
4. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls.
108 e seguintes), concluiu assim a recorrente:
“1. A Recorrente impugnou a liquidação de uma Contribuição Autárquica.
2. O Estado revogou a liquidação, do que resultou a inutilidade superveniente da
lide.
3. A Recorrente viu recusada a devolução da taxa de Justiça que foi compelida a
pagar para que fosse admitida aquela impugnação.
4. O indeferimento foi decidido ao abrigo do n.°1 do Art° 31° do C.C.J.
5. O n.º 1 do Art° 31° do C.C.J. não se aplica aos casos em que não há
condenação, designadamente àqueles que, como o dos autos, concluíram por
inutilidade superveniente da lide.
6. Mas, ainda que essa inexplicabilidade [assim, no original] não ocorresse,
sempre se teria de concluir que a apropriação pelo Estado de uma taxa de justiça
paga em processo, de que o próprio Estado é responsável, constituiria
apropriação ilegítima, por força do disposto no Art° 62° da Constituição.
7. E, ainda, uma limitação ao acesso ao direito e justiça contrária aos
princípios enunciados no Art° 20° da Constituição.
Termos em que, e nos que doutamente serão supridos, espera ver decretada a
inconstitucionalidade da interpretação que o despacho recorrido fez do Art° 31°,
n.º 3 do C.C.J., porque contrário aos princípios enunciados nos Artigos 62° e
20° da Constituição, decretando-se a sua anulação e substituição pelo
deferimento do pedido, com as consequências legais, como é de justiça!”.
O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional contra-alegou (fls. 115 e seguintes), formulando as conclusões
que seguem:
“1º - É inconstitucional, por violação do princípio do processo equitativo, a
norma constante do n.º 3 do artigo 31° do CCJ, interpretada em termos de
dispensar o Estado – Administração da devolução ao impugnante da taxa de justiça
por ele paga como condição de admissibilidade da impugnação, independentemente
do seu valor, num caso em que a actuação do particular se consubstanciou na
reacção contra um acto ilegal da Administração fiscal que – ao anular
oficiosamente a liquidação efectuada – determinou a extinção da instância, por
facto que lhe é inteiramente imputável.
2° – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
5. Constitui objecto do presente recurso – conforme a delimitação a
que procedeu a recorrente (supra, 3.) – a norma do n.º 3 do artigo 31º do Código
das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro,
na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, na
interpretação segundo a qual tal norma é aplicável aos casos em que, em
consequência de a Administração fiscal ter oficiosamente anulado uma liquidação
tributária, a instância da correspondente impugnação judicial se extinguiu por
inutilidade superveniente da lide.
O artigo 31º do Código das Custas Judiciais dispõe como segue:
“Artigo 31º
(Reembolso e devolução de taxa de justiça)
1 – Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, as taxas de justiça pagas
por cada parte integram as custas de parte, nos termos do artigo 33.º
2 – Nos casos de pluralidade subjectiva, activa ou passiva, o montante das taxas
de justiça pagas em excesso é devolvido aos respectivos sujeitos processuais,
nos termos dos artigos 69.º e seguintes, aplicando-se, se necessário, a regra da
proporcionalidade.
3 – Não é devolvida taxa de justiça de valor igual ou inferior a metade de 1
UC.”.
É a conformidade constitucional da norma constante do n.º 3
deste preceito, na interpretação que ficou assinalada, que a recorrente
questiona, por entender que essa interpretação ofende o disposto no artigo 62º
da Constituição (que consagra o direito de propriedade privada) e os princípios
enunciados no artigo 20º da Constituição (que garante o acesso ao direito e a
tutela jurisdicional efectiva); também o Ministério Público sustenta que tal
interpretação viola o princípio do processo equitativo, a que alude o artigo
20º, n.º 4, da Constituição (supra, 4.).
6. Interessa assim começar por dar conta da abordagem que tem sido
feita na jurisprudência do Tribunal Constitucional relativamente à questão da
fixação do montante da taxa de justiça face à garantia emergente do artigo 20º
da Constituição.
No Acórdão n.º 352/91 (Diário da República, II Série, n.º 290,
de 17 de Dezembro de 1991, p. 12938 ss), a propósito de uma suscitada
onerosidade excessiva de custas, referiu-se:
“[…]
O direito de acesso aos tribunais não compreende [...] um direito a litigar
gratuitamente, pois [...] não existe um princípio constitucional de gratuitidade
no acesso à justiça (cfr., neste sentido, também o Acórdão n.º 307/90, Diário da
República, 2ª Série, de 4 de Março de 1991).
O legislador pode, assim, exigir o pagamento de custas judiciais, sem que, com
isso, esteja a restringir o direito de acesso aos tribunais. E, na fixação do
montante das custas, goza ele de grande liberdade, pois é a si que cabe optar
por uma justiça mais cara ou mais barata.
Essa liberdade constitutiva do legislador tem, no entanto, um limite – limite
que é o de a justiça ser realmente acessível à generalidade dos cidadãos sem
terem que recorrer ao sistema de apoio judiciário.
É que o nosso ordenamento jurídico concebe o sistema de apoio judiciário como
algo que apenas visa garantir o acesso aos tribunais aos economicamente
carenciados, e não como um instrumento ao serviço também das pessoas de médios
rendimentos (salvo, naturalmente, se estas houverem de intervir em acções de
muito elevado valor).
Na fixação das custas judiciais, há-de, pois, o legislador ter sempre na devida
conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos de modo a não tornar
incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial, pois
se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar insuportável ou
especialmente gravoso, violar-se-á o direito em causa.
[…].”.
E acrescentou-se, mais adiante, no mesmo aresto:
“[…]
Como todas as decisões legislativas, as decisões que o legislador toma em
matéria de custas no que concerne ao quantum delas, são, obviamente, sindicáveis
sub specie constitucionis. Mas, ao menos em geral, (...) tais decisões só
haverão de ser taxadas de constitucionalmente ilegítimas quando inviabilizem ou
tornem particularmente oneroso o acesso aos tribunais para o cidadão médio.”.
Esta mesma ideia foi também sublinhada no Acórdão n.º 467/91
(Diário da República, II Série, n.º 78, de 2 de Abril de 1992, p. 3112(48) ss),
onde se afirmou:
“[…] esse espaço de conformação [o espaço de conformação do legislador em
matéria de custas] tem os limites que são dados pela irredutível dimensão de
defesa da tutela jurisdicional dos direitos, postulando soluções legislativas
que assegurem um acesso igual e efectivo aos tribunais. Então, o princípio da
proporcionalidade vem aqui «alicerçar um controlo jurídico-constitucional da
liberdade de conformação do legislador e situar constitucionalmente o espaço de
prognose legislativa» (J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e
Vinculação do Legislador, Coimbra 1982, p. 274).
O asseguramento da garantia do acesso aos tribunais subentende uma programação
racional e constitucionalmente adequada dos custos da justiça: o legislador não
pode adoptar soluções de tal modo onerosas que impeçam o cidadão médio de aceder
à justiça.
[…].”.
7. Neste contexto, há pois que apurar se a solução normativa em
apreço se situa dentro de limites razoáveis, como impõe a observância do
princípio da proporcionalidade, implícito no artigo 18º, n.º 2, segunda parte,
da Constituição.
De acordo com o que se entendeu no Acórdão n.º 608/99 (Diário
da República, II Série, n.º 64, de 16 de Março de 2000, p. 5097 ss), “na área em
questão” [matéria de custas judiciais], o princípio da proporcionalidade
reveste, “pelo menos, três sentidos: o de «equilíbrio entre a consagração do
direito de acesso ao direito e aos tribunais e os custos inerentes a tal
exercício»; o da responsabilização de cada parte pelas custas «de acordo com a
regra da causalidade, da sucumbência ou do proveito retirado da intervenção
jurisdicional»; e o do ajustamento dos «quantitativos globais das custas a
determinados critérios relacionados com o valor do processo, com a respectiva
tramitação, com a maior ou menor complexidade da causa e até com os
comportamentos das partes»”.
Ora, como refere o Ministério Público nas contra-alegações
(supra, 4.), o regime legal que cabe apreciar “estabelece um limite tabelar à
restituição de valores não superiores a metade de uma UC, com base num princípio
de economia processual e de custos, de modo a simplificar a actividade da
tesouraria judicial, nos casos em que o montante a restituir é, na óptica do
legislador, de valor pouco relevante”.
São, portanto, “considerações de natureza estritamente
«economicista» e meramente pragmática” que estão na base da consagração desse
regime.
O que se deve perguntar é se considerações dessa natureza, que,
em última análise, visam simplificar a actividade do Estado, devem ou podem
prevalecer sobre considerações de justiça, que naturalmente impõem o
ressarcimento dos prejuízos sofridos pela parte que não deu causa à acção nem do
processo tirou qualquer proveito, ou a quem não seja imputável a impossibilidade
ou inutilidade da lide (e que estão, por exemplo, na base do estatuído nos
artigos 446º e 447º do Código de Processo Civil).
A ponderação de meios e fins a que o Tribunal assim é conduzido
não pode deixar de ter presente o quantitativo concreto da importância da taxa
de justiça paga e não devolvida e a circunstância de a impugnante, ora
recorrente, em nada ter contribuído para a situação que está na origem do
“reembolso e devolução da taxa de justiça”. Recorde-se, a este propósito, a
situação da ora recorrente: notificada de uma liquidação tributária respeitante
a imposto por si oportunamente pago, teve de impugnar judicialmente essa
liquidação; depois de a Administração fiscal ter oficiosamente anulado a
liquidação e de a instância da correspondente impugnação judicial ter sido
extinta por inutilidade superveniente da lide, a impugnante, ora recorrente,
viu-se confrontada com a recusa de devolução do preparo que efectuara tendo em
vista aquela impugnação judicial.
Não se vê assim como poderiam os custos inerentes à devolução
da taxa de justiça em causa prevalecer sobre o interesse da parte impugnante no
ressarcimento dos prejuízos sofridos, tendo em conta os critérios anteriormente
referidos, quer os subjacentes às regras da causalidade, da sucumbência ou do
proveito retirado da intervenção jurisdicional, quer os relacionados com o valor
do processo, a respectiva tramitação, a maior ou menor complexidade da causa e
até com os comportamentos das partes.
Nestas circunstâncias, há que concluir que o valor em causa,
correspondente à taxa de justiça paga e não devolvida, se revela manifestamente
excessivo e desproporcionado, tomando como paradigma “a capacidade contributiva
do cidadão médio” (Acórdão n.º 248/94, Diário da República, II Série, n.º 171,
de 26 de Julho de 1994, p. 7503 ss). Por outro lado, não é de excluir que o
valor em causa pudesse mesmo ter como efeito impedir o contribuinte de recorrer
ao tribunal a fim de, em situações como a dos autos, impugnar uma liquidação
tributária de baixo valor.
Da ponderação de todos estes dados, não pode pois deixar de
emergir um juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa questionada
no presente recurso, por ofensa do direito de acesso aos tribunais, subjacente
ao artigo 20º, n.º 1, da Constituição, conjugado com o princípio da
proporcionalidade.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do direito
de acesso aos tribunais, decorrente do artigo 20º, n.º 1, da Constituição,
conjugado com o princípio da proporcionalidade, a norma do n.º 3 do artigo 31º
do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de
Novembro, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro,
na interpretação segundo a qual tal norma é aplicável aos casos em que, em
consequência de a Administração fiscal ter oficiosamente anulado uma liquidação
tributária, a instância da correspondente impugnação judicial se extinguiu por
inutilidade superveniente da lide;
b) Consequentemente, conceder provimento ao presente
recurso, determinando a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente
juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira, com declaração
DECLARAÇÃO DE VOTO
Embora admita que por razões atinentes ao bom funcionamento dos serviços,
impostas por uma lógica de ponderação custo-benefício, o Estado não devolva
integralmente verbas recebidas a título de taxa de justiça, voto a presente
decisão, acompanhando o juízo de inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do
artigo 31º do Código das Custas Judiciais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96
de 26 de Novembro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 324/2003 de
27 de Dezembro, por violação do princípio da proporcionalidade.
Para alcançar tal conclusão, é indiferente que a Administração fiscal (ou o
próprio Estado devedor, em suma) seja 'parte' no processo, uma vez que, a meu
ver, a norma não viola o direito de acesso aos tribunais decorrente do n.º 1 do
artigo 20º da Constituição.
(Cons. Pamplona de Oliveira)
Artur Maurício