Imprimir acórdão
Processo n.º 600/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do
Tribunal Constitucional,
1. A. e outros vêm reclamar para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), contra o despacho de 21 de Abril de
2006 do Juiz do 2.º Juízo do Tribunal do Trabalho de Lisboa, que, com fundamento
em falta de esgotamento dos recursos ordinários, não admitiu recurso por eles
interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, contra
despacho que indeferiu arguição de nulidade de despacho que ordenara a repetição
de todos os actos de julgamento.
Segundo o despacho ora reclamado, o preceituado
no n.º 2 do artigo 654.º do Código de Processo Civil (CPC) – do seguinte teor:
“Se durante a discussão e julgamento falecer ou se impossibilitar
permanentemente algum dos juízes, repetir‑se‑ão os actos já praticados; sendo
temporária a impossibilidade, interromper‑se‑á a audiência pelo tempo
indispensável, a não ser que as circunstâncias aconselhem, de preferência, a
repetição dos actos já praticados, o que será decidido sem recurso, mas em
despacho fundamentado, pelo juiz que deva presidir à continuação da audiência ou
à nova audiência” – apenas declara irrecorrível o despacho que ordena a
repetição de actos do julgamento, mas já não o despacho que decida arguição de
nulidade desse despacho, sendo este segundo despacho recorrível nos termos
gerais (artigos 678.º e 679.º do CPC). Assim, é inadmissível recurso directo
para o Tribunal Constitucional do despacho de indeferimento de arguição de
nulidade, por dele caber recurso ordinário, cujo prazo de interposição ainda não
havia decorrido.
A reclamação apresentada tem o seguinte teor:
“I – ANTECEDENTES DO DESPACHO DE NÃO ADMISSÃO DO RECURSO.
1. Os presentes autos constituem uma acção cujo objecto nuclear
é a impugnação de despedimento colectivo dos ex‑trabalhadores da B.. e pedido de
integração na sua casa mãe, a C., SA, com base na transferência de
estabelecimento.
2. A acção é um processo urgente – nos termos dos dispositivos
legais processuais aplicáveis do Código de Processo do Trabalho – embora não
pareça, decorridos que são 13 anos e 2 meses desde a sua distribuição no
Tribunal de Trabalho, iniciada em 1993.
3. Na acção, iniciou‑se a audiência de julgamento em 21 de
Junho de 1999, tendo sido ouvidos, em variadíssimas sessões:
(i) Depoimento de parte da C.;
(ii) Depoimento de parte dos legais representantes da Comissão
Liquidatária da B.;
(iii) 27 testemunhas – algumas comuns aos diversos autores na
acção.
4. As diversas sessões de julgamento em que foi produzida esta
prova, foram integralmente gravadas, encontrando‑se as respectivas cassetes
juntas aos autos.
5. Ao longo destes anos todos em que o processo urgente tem
decorrido, passaram pelo Juízo do Tribunal de Trabalho diversos Juízes.
6. Por despacho de fls. 3374 verso – produzido em 13 de
Fevereiro de 2006 –, a Senhora Juiz actualmente titular do 2.º Juízo, 1.ª
Secção, do Tribunal por onde correm os autos, [decidiu], com invocação expressa
do artigo 654.º, n.ºs 2 e 3, do CPC, aplicável em processo de trabalho
subsidiariamente, que as sessões de audiência de julgamento em que foi ouvida
toda a prova acima apontada são anuladas e que todos os actos de julgamento já
realizados devem ser repetidos.
7. Este despacho foi notificado às partes em 15 de Fevereiro de
2006 – data do registo postal – portanto, considerando‑se estas notificadas no
dia 20 de Fevereiro de 2006 – pois o terceiro dia após o do registo foi a um
sábado.
8. Nesse despacho, a Senhora Juiz invoca, basicamente – e não
obstante a circunstância de que o julgamento está integralmente gravado – como
razões para tal decisão o tempo decorrido, o facto de a Senhora Juiz que iniciou
o julgamento já não se lembrar de prova tão longínqua e de a mesma ter sido
transferida.
9. Deste despacho, os ora reclamantes arguíram a nulidade da
repetição do julgamento, com os fundamentos que constam do requerimento de fls.
3828.
10. Com efeito, o artigo 654.º, n.º 2, determina expressamente
que do despacho que decida a repetição dos actos já praticados em julgamento,
não cabe recurso.
11. Tal circunstância não obsta, no entanto, a que as partes
façam valer os seus direitos e posição processual pela via de arguição de
nulidade, se acaso – como acontece – tal decisão puder configurar uma nulidade
processual.
12. No essencial, as razões porque os ora reclamantes entendem
ter havido aí uma nulidade processual tem a ver com o sentido e alcance do
artigo 654.º do CPC e da aplicação que do mesmo foi feita, em que sobressai o
seguinte:
(i) A fattispecie da norma que admite a repetição do julgamento
não comporta situações em que a prova produzida tenha a extensão que mostra a
dos presentes autos – depoimentos de parte e 27 testemunhas inquiridas;
(ii) A prova encontra‑se toda gravada;
(iii) O preceito impõe que uma decisão de repetição de todos os
actos de julgamento assente numa ponderação em que o bom senso jurídico e
interesses processuais das partes devam ser garantidos e salvaguardados no
quadro dos princípios que regem a lei de processo, maxime o direito à prova, o
direito à justiça e à celeridade processual, em obediência à tutela
jurisdicional efectiva – tudo, direitos com actual consagração constitucional e
vertidos na lei de processo – artigos 20.º da CRP e 2.º do CPC.
(iv) Daí que, de acordo com a jurisprudência e a doutrina que
ao assunto já dedicaram algumas palavras sábias, apenas se tem admitido a
repetição de actos de julgamento que, pela sua pequena importância, v. g. ter
sido ouvida apenas uma ou duas testemunhas, não justifiquem a chamada do Juiz
que iniciou o julgamento, para assegurar o princípio da plenitude da
assistência dos juízes.
13. A juntar a estes argumentos de índole jurídico‑processual,
um outro sobreleva e que torna incompreensível a enormidade jurídica pretendida
pela Senhora Juiz actual titular do presente processo, a saber: após ter esta
decidido que, pelo número elevado de intervenientes no processo, seria
necessário reservar‑se uma sala de audiência com capacidade para o efeito,
inicialmente escolheu a do Tribunal de Sintra.
14. Imagine-se que os ora reclamantes vieram a constatar que a
actual titular do Tribunal de Trabalho de Sintra é, precisamente, a Senhora Juiz
que iniciou o julgamento deste processo e que procedeu, portanto, à audição de
toda a prova acima descrita.
15. Isto foi invocado na arguição de nulidade, em reforço do
argumento que nem seria necessário a Senhora Juiz a quem incumbe, por todas as
razões e mais uma, assegurar o respeito pelo princípio da plenitude da
assistência dos juízes deslocar‑se: já lá estava no Tribunal de Sintra
inicialmente escolhido.
16. Outras circunstâncias sobrelevam no caso, que impõem a
conclusão no sentido da nulidade arguida e que aí foi expressamente suscitada:
– Por força do facto de ter sido suscitado no processo um
incidente de intervenção de todos os ex‑trabalhadores da B.– aliás, determinada
a final pelo Supremo Tribunal de Justiça em recurso jurisdicional – a grande
maioria das testemunhas dos autores deixaram de o ser, por terem passado a ter o
estatuto processual de parte.
17. A verdade é que, de acordo com a jurisprudência corrente,
em situações em que tenha havido depoimento testemunhal de pessoa que mais
tarde vem a ser interveniente no processo, o respectivo depoimento mantém‑se
como válido e deve ser levado em conta da ponderação da prova pelo tribunal.
18. Para além de o despacho da Senhora Juiz traduzir em si a
apontada nulidade processual, pelas razões sumariamente acima descritas e melhor
desenvolvidas no local próprio – no requerimento de fls. 3828 –, o mesmo tem um
efeito que nos deixa a todos perplexos e que apresenta alguns contornos de
negação de justiça injustificável no plano do direito constitucional e
processual, que só pode ter na sua base uma inconstitucionalidade do artigo
654.º do CPC, onde se entenda poder ser alargado a repetições de julgamento
gravado e com extensa prova fundamental que dificilmente, pelo decurso do tempo
entretanto decorrido, poderá ser repetida, e que lese gravemente os direitos
processuais das partes.
19. Isso mesmo foi expressamente invocado no requerimento de
arguição de nulidades, em que foi suscitada a inconstitucionalidade, por
violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva e da celeridade
processual – artigo 20.º, n.º 5, da CRP.
20. De acordo com a lei processual aplicável a este Alto
Tribunal, os ora reclamantes asseguraram o seu direito de recurso em toda a
linha – inclusive na sua tempestividade.
21. E isto mesmo se passa a mostrar, por relação com o absurdo
dos argumentos invocados pela Senhora Juiz para não permitir a subida do
recurso interposto.
Com efeito, Excelentíssimos Senhores Conselheiros
II – O OBJECTO DA PRESENTE RECLAMAÇÃO.
22. O despacho que determinou a repetição do julgamento foi
notificado, como se disse, em 20 de Fevereiro de 2006.
23. A arguição de nulidade foi tempestivamente apresentada em 2
de Março de 2006.
24. Contra o despacho que determinou a repetição do julgamento,
alguns autores na acção – que não os ora reclamantes, mas que para o caso é
indiferente – pediram aclaração e reforma do mesmo.
25. O despacho que decidiu a arguição de nulidade e outras
coisas, nomeadamente o pedido de reforma e aclaração, foi notificado às partes
por ofício com data de registo de 5 de Abril de 2006, sendo a notificação,
portanto, eficaz, a partir de 11 de Abril, já que o terceiro dia contado do
registo foi, também aqui, a um sábado.
26. O recurso foi interposto para este Alto Tribunal no dia 20
de Abril de 2006, portanto, tempestivamente.
27. Pretende a Senhora Juiz que desse despacho caberia recurso
jurisdicional ordinário – o que é mais um dos absurdos em que se incorre.
28. Com efeito, o artigo 654.º, n.º 2, do CPC expressamente
determina que o despacho a ordenar a repetição dos actos de julgamento é
irrecorrível.
29. Se o acto primário é irrecorrível, também o será o acto
secundário – no caso, o despacho sobre arguição de nulidade – pois caso
contrário ser‑se‑ia forçado a concluir que o legislador – de forma destituída de
qualquer lógica jurídica – estaria a dizer que no primeiro caso não haveria
recurso, mas poderiam sempre utilizar uma rábula processual para interporem
recurso por uma via indirecta – o recurso do acto secundário.
30. O objecto da arguição de nulidade neste caso é sempre e
apenas o despacho relativamente ao qual a lei de processo diz que é
irrecorrível.
31. Daí – e quanto mais não seja num quadro de princípio pro
actione – o argumento de que da decisão sobre a arguição de nulidade, cujo único
objecto imediato é a decisão irrecorrível, seria recorrível e não foi impugnado,
é absolutamente destituído de sentido.
32. Por isso mesmo, os ora reclamantes seguiram o caminho sério
– desde logo na arguição de nulidade – de questionarem a inconstitucionalidade
de uma norma de processo, cujo alcance é o de pôr em causa o direito à justiça,
à tutela jurisdicional efectiva e à celeridade processual.
33. Se o sentido desse artigo 654.º do CPC é o de permitir que
alguém neste País possa ver anulado – num processo, para mais, urgente – um
julgamento com audição de 27 testemunhas e depoimentos de parte gravados e que
possa deixar de ter testemunhas pelas razões acima apontadas, então é um direito
seu, à luz do princípio do Estado de Direito Democrático, ver discutido na
instância competente qual o (des)valor constitucional de tamanha enormidade da
segunda normação.
34. O argumento da Senhora Juiz no sentido de que caberia
recurso – contra o que dispõe o artigo 654.º, n.º 2, do CPC – do despacho que
indeferiu a arguição de nulidade, ainda que pudesse ter algum suporte teórico –
que não tem, pois é destituído de um mínimo de sentido – jamais poderia levar a
que, por força de uma disciplina que o legislador pretendeu ao excluir o direito
de recurso ordinário, os cidadãos não pudessem exercer os seus direitos, numa
quadro de princípio pro actione, em sede de constitucionalidade.
35. É que se esse entendimento tivesse algum suporte, os
direitos das partes seriam clara e seriamente lesados por força da uma
imperfeição normativa que levaria a que seria excluído o direito de recurso da
decisão primária, mas não o da decisão secundária – entenda‑se, da que tenha
como objecto aqueloutra, o que o mesmo é dizer, afinal aquela não é
irrecorrível, só não o é agora, mas mais tarde poderá ser.
36. Bom, nada do despacho que nega o direito de recurso para
este Alto Tribunal faz sentido, e a verdade é que os ora reclamantes têm direito
a ver o seu recurso ponderado e decidido e a Senhora Juiz não tem o direito de o
negar.
37. Tendo o recurso para este Alto Tribunal efeito suspensivo,
com regime de subida nos próprios autos nos termos conjugados dos artigos 70.º,
n.ºs 2 e 5 – aqui a contrario sensu – e 78.º da Lei n.º 28/82, à presente
reclamação deverá ser atribuído o mesmo efeito, embora com subida imediata em
separado.
38. Aliás, se assim não for, os direitos e interesses das
partes nesta acção saem, mais uma vez, gravemente lesados, pois apenas teria
como efeito útil o prolongamento no tempo de um processo que, sendo urgente,
corre há mais de 13 anos.
Nestes termos, e com o douto suprimento de Vossas Excelências
que desde já se invoca, requer-se seja determinada a subida do recurso e remessa
urgente dos autos que o devem acompanhar e ao mesmo seja atribuído o regime de
subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo.”
O representante do Ministério Público neste
Tribunal emitiu o seguinte parecer:
“Os recorrentes identificam expressamente, como decisão
recorrida, a proferida a fls. 3887, que indeferiu a arguição de nulidade por
eles deduzida quanto ao despacho que determinou a repetição dos actos de
instrução, já praticados no decurso da audiência de julgamento, há muito
suspensa.
Sucede, porém, que em tal decisão o juiz a quo não aplicou a
norma cuja inconstitucionalidade se pretende controverter: a constante do n.º 2
do artigo 654.º do CPC; na verdade, em tal decisão limitou‑se o Tribunal a
considerar que a matéria controvertida extravasava manifestamente o plano das
nulidades processuais, rejeitando‑a consequentemente nos termos do preceituado
no artigo 201.º do CPC, ao entender que a invocação de «nulidade» não é
instrumento processual adequado para controverter o mérito de um precedente
despacho irrecorrível.
Mesmo que se considerasse que os recorrentes pretendiam antes
impugnar o despacho que determinou a renovação da prova, não se verificam
identicamente os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto, já que
se não mostra suscitada, no momento próprio (o da apresentação do requerimento
que consta de fls. 65 destes autos) qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa: cumpria, na verdade, aos recorrentes, no momento em que peticionaram
o prosseguimento do julgamento com o juiz que o havia iniciado (e bem sabendo
que a decisão que viesse a ser proferida sobre tal requerimento era
irrecorrível), confrontar o Tribunal com a questão de constitucionalidade que só
tardiamente equacionaram.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Recorde‑se que os ora reclamantes haviam
requerido a continuação do julgamento com a mesma Juíza que o havia iniciado e
que entretanto fora transferida para outra comarca, sem que, no respectivo
requerimento, houvessem suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa (cf. fls. 65 a 67 destes autos).
Tal pretensão foi indeferida por despacho de
fls. 3775 verso do processo principal (fls. 69 destes autos), que, verificando
que “o julgamento se iniciou com produção de prova e foi interrompido por
despacho de 17 de Setembro de 1999, assim se mantendo até agora”, considerou que
“apesar de se ter já procedido a inquirição de número significativo de
testemunhas, além do depoimento de parte, atento o tempo decorrido – mais de
seis anos – e o facto de a magistrada que iniciou o julgamento ter sido
transferida, sendo evidente que a mesma não se lembrará de prova tão longínqua”,
entendeu ser “preferível a repetição dos actos já praticados, ao abrigo do
disposto no artigo 654.º, n.ºs 2 e 3, do CPC”.
A arguição de nulidade deste despacho deduzida
pelos ora reclamantes tem o seguinte teor:
“1. Como consta dos autos, neste processo iniciou‑se a audiência de julgamento –
em 21 de Junho de 1999, com várias sessões – tendo‑se procedido aos seguintes
actos probatórios:
– Depoimentos de parte dos legais representantes da C. e da Comissão
Liquidatária da B.;
– Inquirição de 27 testemunhas, algumas comuns aos diversos autores na acção.
2. As testemunhas ouvidas são absolutamente fundamentais à verdade material
discutida na acção, presentemente virada para o problema da transferência do
estabelecimento e cômputo dos danos sofridos pelos autores, na medida que a
ilicitude do despedimento foi já decidida no douto saneador‑sentença de fls. …,
aliás, já transitado nessa parte.
3. A maioria das testemunhas arroladas pelos autores são ex‑trabalhadores da B.,
que, por força da intervenção principal, passaram a deter a qualidade de
intervenientes principais no processo.
4. Uma vez que no momento em que prestaram o seu depoimento ainda não detinham
essa qualidade, o seu depoimento é válido [Vd. Acórdãos do Tribunal da Relação
do Porto, de 28 de Maio de 2001, proc. 0150515, e de 10 de Fevereiro de 2003,
proc. 0252781, in Base de dados do MJ, www.dgsi.pt]]. Porém, a serem repetidos
todos os actos de julgamento já praticados, ficarão inibidos de depor como
testemunhas.
5. O início da audiência e a consequente audição dos depoentes teve lugar há
praticamente sete anos, porém, toda a prova foi gravada.
6. De acordo com o princípio da plenitude da assistência dos Juízes – consagrado
no artigo 654.º do CPC, aplicável por força do artigo 1.º do CPT – a audiência
de julgamento já iniciada deverá ter continuidade sob a condução da Meritíssima
Juiz que a iniciou.
7. Por outro lado, à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva e da
celeridade processual, consagrado no artigo 20.º, n.º 5, da CRP e no artigo 2.º
do CPC, aplicável subsidiariamente, nada justifica que o julgamento neste
processo possa reiniciar‑se.
8. Aliás, por força do n.º 3 do citado artigo 654.º do CPC, mesmo tendo a
Meritíssima Juiz que iniciou o julgamento sido transferida, deve a sua
continuidade ser por ela assegurada.
9. Isto, para mais tendo a Meritíssima Juiz sido transferida para o Tribunal de
Trabalho de Sintra, de acordo com as informações de que os autores dispõem –
precisamente na Comarca onde V. Ex.a pretende, por razões de espaço, que o
julgamento tenha lugar.
10. Em qualquer caso, o número elevado e a importância das testemunhas que já
depuseram na audiência de julgamento impõem que neste caso o mesmo não deva ser
reiniciado – como tem entendido a nossa doutrina processualista mais
autorizada, como pode ver‑se em Lebre de Freitas [In Código de Processo Civil
Anotado, vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 634] e como, igualmente, tem
seguido a jurisprudência do STJ, como pode ver‑se no Acórdão de 21 de Abril de
1999, lavrado no processo n.º 304/99 [Publicado na Colectânea de Jurisprudência
– Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VII, tomo II, pp. 184‑185. Embora
esta espécie jurisprudencial verse questão de natureza criminal, não
descaracteriza o princípio e a sua aplicação ao processo cível ou laboral].
11. Ou seja, por estas razões, está‑se fora, precisamente, daquelas situações
que o Conselheiro Rodrigues Bastos refere, nas suas Notas ao Código de Processo
Civil [Vol. III, Lisboa, 1972, p. 220], como se tratando de actos de pequena
importância que não justificam a exigência de intervenção do Juiz deslocado.
12. Por outro lado, nem há aqui quaisquer obstáculos relacionados com a
intervenção principal ocorrida nos autos, na medida em que – como é sabido – os
intervenientes assumem essa posição no processo, aceitando‑o no estado em que o
mesmo se encontrava à data das respectivas intervenções, por força do artigo
322.º, n.º 2, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo de trabalho.
13. A repetição de todos os actos de julgamento implicaria que os autores
veriam vedado o direito à prova já produzida, na medida em que praticamente
todas as testemunhas são agora partes – o que em si configura omissão de
pronúncia na vertente do direito à prova.
14. Por outro lado, o argumento de que a Meritíssima Juiz que iniciou o
julgamento não se lembraria da prova é absolutamente inadmissível e infundado,
tanto mais quanto a prova está gravada.
15. Em face do acima invocado, o douto despacho de fls. … é nulo, nos termos do
artigo 201.º do CPC, uma vez que se trata da prática de um acto que a lei não
admite e o douto despacho ao determinar o reinicio do julgamento constitui uma
clara ofensa directa aos acima apontados princípios constitucionais e legais
processuais, que impõem o mecanismo da tutela jurisdicional efectiva e da
celeridade processual, isto, sem qualquer justificação plausível – nos quadros
do que se prevê no artigo 654.º, n.º 2, do CPC – tanto mais quanto a Meritíssima
Juiz que o iniciou se encontra actualmente em Sintra.
TERMOS EM QUE:
Requer a V. Exa. se digne decidir a nulidade processual acima suscitada, sendo
declarada a nulidade do douto despacho de fls. …, nos termos do artigo 201.º do
CPC, aplicáveis ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do CPT, além de que o douto
despacho impugnado é inconstitucional por violação do princípio da tutela
jurisdicional efectiva e da celeridade processual, consagrado no artigo 20.º,
n.º 5, da CRP.”
Tal arguição foi indeferida pelo despacho de 4
de Abril de 2006, porquanto: (i) só existindo nulidade processual quando se
pratique algum acto que a lei proíbe ou se deixe de praticar algum
acto/formalidade que a lei prescreva (artigo 201.º do CPC), não se vê que o
despacho em causa não seja permitido por lei, antes estando expressamente nela
previsto (artigo 654.º, n.º 2, do CPC); (ii) a repetição dos actos de julgamento
foi devidamente fundamentada, não se resumindo ao “argumento redutor de
dificuldade amnésica”, antes se baseando na inexistência de concentração e
continuidade na apreciação da prova, interrompida há mais de seis anos, não
sendo a existência de gravação da prova (que tem sobretudo por finalidade
assegurar à parte o direito de recorrer da decisão da matéria de facto) capaz de
assegurar satisfatoriamente os benefícios trazidos pela oralidade e
concentração; e (iii) o que os reclamantes pretendem é manifestar a sua
discordância quanto ao mérito do despacho, o que é diferente da arguição de
nulidade processual e lhes está vedado pela via por eles utilizada.
Foi deste despacho de 4 de Abril de 2006 que os
ora reclamantes intentaram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pretendendo ver apreciada a
“inconstitucionalidade suscitada na arguição de nulidade deduzida pelos
recorrentes, relativa ao artigo 654.º do CPC, na parte em que daí resulta, tal
como aplicado pelo douto despacho de fls. 3887 e verso, ofensa directa dos
princípios e normas constitucionais relativos à tutela jurisdicional efectiva e
celeridade processual, consagrados no artigo 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, da
Constituição da República Portuguesa”.
O recurso assim interposto é inadmissível a
vários títulos, independentemente da correcção do fundamento do despacho ora
reclamado.
Na verdade, como é sabido, da norma da segunda
parte do n.º 4 do artigo 77.º da LTC – que dispõe que a decisão do Tribunal
Constitucional que revogue o despacho de não admissão de recurso de
constitucionalidade faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso –
resulta que este Tribunal, no julgamento deste tipo de reclamações, não está
limitado à apreciação do concreto fundamento invocado no despacho reclamado
para não conhecer do recurso.
Ora, no presente caso, a inadmissibilidade do
recurso de constitucionalidade resulta desde logo, claramente, da circunstância
de os reclamantes não terem suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, em termos de este ficar obrigado a dela conhecer.
Como é patente, na peça processual identificada
pelos requerentes como sendo aquela onde a questão de inconstitucionalidade
teria sido suscitada (a arguição de nulidade, acima transcrita), eles não
suscitam nenhuma questão de inconstitucionalidade normativa (isto é: não imputam
a nenhuma norma de direito ordinário ou a uma interpretação normativa desse
direito assumida como critério de decisão pelo tribunal qualquer violação de
princípios ou normas constitucionais), antes se limitam a assacar à própria
decisão judicial em causa, em si mesma considerada, inseparável das
especificidades do caso concreto, a sua nulidade por desrespeito das normas de
direito ordinário e do princípio da tutela jurisdicional efectiva e da
celeridade processual consagrado no artigo 20.º, n.º 5, da Constituição da
República Portuguesa, o que, manifestamente, não constitui modo adequado de
suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa.
Consequentemente, a decisão de que se pretendeu
interpor recurso de constitucionalidade não apreciou – nem tinha de apreciar –
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Aliás, como se demonstra
no parecer do Ministério Público, o despacho que indeferiu a arguição de
nulidade não se fundou, como ratio decidendi, na norma do artigo 654.º, n.º 2,
do CPC ou em qualquer interpretação desse preceito, mas antes no entendimento,
estribado no artigo 201.º do mesmo Código, de que nenhuma nulidade processual
havia sido cometida, utilizando os recorrentes esse incidente para manifestar a
sua discordância quanto ao mérito da decisão de repetição de actos de
julgamento, o que era processualmente inadmissível.
A isto acresce que nem sequer no requerimento
de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, os ora reclamantes
lograram identificar, com o mínimo de precisão, a interpretação normativa,
dotada de generalidade e abstracção, cuja conformidade constitucional
pretendiam ver apreciada. Ora, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como “na interpretação dada pela decisão recorrida” ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) “ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.”
Não tendo os reclamantes suscitado, perante o
tribunal recorrido, de forma adequada, uma questão de inconstitucionalidade
normativa, o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da LTC surge como inadmissível.
3. Em face do exposto, decide‑se, embora por
fundamento diverso do do despacho reclamado, indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Julho de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos