Imprimir acórdão
Processo nº 309/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Tribunal da Relação de Évora, em que figura como recorrente A., Lda., e como
recorrido o Ministério Público, o tribunal a quo proferiu o seguinte acórdão:
1. Relatório:
“A., L.da”, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o
n.° 12.659, titular do cartão de identificação de pessoa colectiva n.°
503.297.321, com sede na Rua Joaquim Bonifácio, n.° 21, 1.°, em Lisboa, impugnou
judicialmente a decisão administrativa da Secretaria Geral do Ministério da
Administração Interna, proferida em 24 de Março de 2004, que lhe impôs a coima
de € 4.987,98, por cada uma das quatro contra-ordenações praticadas pela
referida sociedade, previstas e punidas pelas disposições conjugadas dos arts.
9.º, n.° 1 e 31.º. n.° 1, al. g) e n.° 2, al. c), ambos do Decreto-Lei n.° 23
1/98, de 22-07, e a coima única de € 5.237,38 (cinco mil duzentos e trinta e
sete euros e trinta e oito cêntimos).
Por sentença proferida em 20-12-2004 (cfr. fls. 185 a 191 dos autos), foi a
impugnação julgada totalmente improcedente e mantida, nos seus precisos termos,
a decisão administrativa recorrida.
Inconformado com a decisão, dela recorreu a arguida, extraindo da respectiva
motivação as seguintes conclusões:
«A) Do ponto de vista jurídico, o presente processo carece de fundamento;
B) Na altura da prática dos factos, a actividade de vigilância privada estava
regulada pelo Decreto-Lei 231/98, de 22 de Julho, com as alterações do
Decreto-Lei 94/2002, de 12 de Abril;
C) De acordo com o artigo 9.° do diploma mencionado na alínea anterior, os
vigilantes teriam que ser titulares de cartão profissional, com autenticação
condicionada à comprovação pela Secretaria Geral do Ministério da Administração
Interna, dos requisitos enunciados no art. 7.º do Decreto-Lei 231/98, de
preenchimento cumulativo;
D) O objectivo do cartão profissional é garantir que o seu portador deu
cumprimento a todos os requisitos legais previstos no artigo 7.° do referido
diploma;
E) A disposição do artigo 9.°, n.° 2, integra uma condição suspensiva: o cartão
profissional só seria emitido desde que fossem comprovados os requisitos
referidos no artigo 7.°;
F) Entre ambas as normas há uma relação de dependência material e funcional, uma
evidente relação de instrumentalidade, pois a norma que enumera os requisitos
(declarada inconstitucional) toma exequível o artigo 9.°;
G) O Acórdão 255/2002 do Tribunal Constitucional declarou a
inconstitucionalidade orgânica com força obrigatória geral do normativo do
artigo 7.°, n.° 1, alíneas a) a h) e n.° 2, alíneas a) e b) do Decreto-Lei 23
1/98, de 22 de Julho;
H) O efeito jurídico da declaração de inconstitucionalidade da norma, quer seja
orgânica ou material, é a sua nulidade;
1) Se a emissão do cartão está condicionada à comprovação dos requisitos
enunciados no artigo 7.°, declarada a inconstitucionalidade desta norma, existe
uma impossibilidade legal de verificação do facto condicionante;
J) Em conformidade, se a emissão do cartão profissional não pode ficar
subordinada a uma condição legalmente impossível, o artigo 9.° não se mantém
plenamente em vigor na nossa ordem jurídica (abrangendo o período de tempo a que
se reportam os factos no caso sub iudice);
K) O Tribunal a quo ao considerar que o artigo 9.° não está ferido de qualquer
irregularidade, considerando manter-se em vigor, violou normas gerais do Direito
(com referência ao artigo 271.° do Código Civil);
L) O Tribunal a quo condenou a Arguida/Recorrente, considerando que se mantém em
vigor a norma do artigo 9.°, n.° 1, “só não sendo exigível para a concessão do
cartão profissional a verificação dos requisitos do artigo 7.° (declarado
inconstitucional);
M) A punição da contra-ordenação é determinada pelo conjunto normativo definidor
do regime da infracção: art. 7.°, artigo 9.° e artigo 31.°, n.° 1, alínea g),
todos do Decreto-Lei 231/98;
N) Não existe negação do bem jurídico que a contra-ordenação visava proteger -
exercício da actividade de segurança privada por indivíduos que cumprissem os
requisitos legais previstos no artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 231/98 -, já que a
respectiva previsão normativa é inconstitucional;
O) Não estando verificados todos os elementos referentes ao tipo legal da
infracção, não existe adequação do caso concreto à situação abstracta prevista
na lei (que é, como se viu, vaga e imprecisa);
P) Aliás, com a declaração de inconstitucionalidade do artigo 7.° do Decreto-Lei
231/98, e até à entrada em vigor do Decreto-Lei 3 5/2004, subsistiu um vazio
legal, não sendo obrigatório a titularidade de cartão profissional para o
exercício da segurança privada;
Q) Considerando o conjunto normativo referido em M), o Tribunal a quo deveria
ponderar qual o regime mais favorável à Arguida/Recorrente, considerando também
as Leis feridas de inconstitucionalidade e as respectivas normas instrumentais;
R) Ao não realizar todo o processo lógico e dedução supramencionado, confirmando
a decisão da entidade administrativa recorrida e assim baseando a sua decisão, o
Tribunal a quo violou as normas referentes à determinação do tipo legal da
contra-ordenação e do artigo 29.° da Constituição da República Portuguesa;
S) Em conformidade, conclui-se que nenhuma infracção praticou a Arguida por
desrespeito das normas invocadas, pelo que deve a mesma decisão ser revogada,
com a correspondente absolvição».
O Digno Procurador Adjunto do Tribunal de 1.ª Instância apresentou resposta à
motivação do recurso, concluindo no sentido de dever ser negado provimento ao
recurso.
Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto, louvando-se na resposta do M.°
Público em 1.ª Instância, emitiu douto parecer no sentido da total improcedência
do recurso.
Cumprido o disposto no n.° 2 do art. 417.° do Código de Processo Penal, o
arguido-recorrente respondeu nos termos que constam de fls. 251 a 254, onde, a
par dos novos fundamentos de direito que expôs, reafirmou os fundamentos do
recurso interposto.
Efectuado o exame preliminar, colhidos os vistos legais e realizada a audiência
de julgamento, cumpre agora apreciar e decidir.
II. Fundamentação:
II.1. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:
«1. No dia 23/1/2002, pelas 14 horas e 45 minutos, no âmbito de uma acção de
fiscalização à actividade da arguida “A., Lda.”, no hipermercado “B.”, em
Santarém, foi levantado o auto n.° 212/02, que se encontra a folhas 1, cujo teor
se dá por reproduzido, por o autuante ter verificado que era exercida a
actividade de segurança privada, em nome e por conta da arguida, por quatro
vigilantes, C., D. e E., melhor identificados no referido auto, sem que fossem
titulares dos necessários cartões profissionais devidamente autenticados pela
Secretaria‑Geral do Ministério da Administração Interna.
2. No dia 13/9/2002, pelas 11 horas e 30 minutos, no âmbito de uma acção de
fiscalização à actividade da arguida “A., Lda.”, no interior da obra em
construção “F.”, sita no Largo …, em Santarém, foi levantado o auto n.°
EIC/553/02, que se encontra a folhas 20, cujo teor se dá por reproduzido, por o
autuante ter verificado que era exercida a actividade de segurança privada, em
nome e por conta da arguida, pelo vigilante Eduardo José Mira Peixinho, melhor
identificado no referido auto, sem que fosse titular do necessário cartão
profissional devidamente autenticado pela Secretaria-Geral pela do Ministério da
Administração Interna.
3. Os legais representantes e responsáveis pelos referidos seguranças da Arguida
não tiveram o cuidado de que eram capazes e a que estavam obrigados para evitar
que os mesmos exercessem a actividade de segurança privada, em nome e por conta
da arguida, sem obterem previamente os necessários cartões profissionais
devidamente autenticados pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração
Interna, tendo actuado sem representarem sequer como possível que tal ocorresse.
4. A Arguida tem como objecto social a actividade de segurança privada,
elaboração de estudos de segurança, instalação e manutenção de material e
equipamentos de segurança, protecção de bens móveis e imóveis, transporte,
guarda e tratamento de fundos e valores, fabrico e comercialização de material
de equipamentos de segurança, bem como a elaboração dos regulamentos técnicos,
instalação e gestão de centrais de alarme, vigilância e controlo de pessoas em
instalações, edifícios ou recintos fechados nos termos da lei ao público em
geral e formação de pessoal de vigilância.
5. A Arguida tem 780 vigilantes como empregados seus, atravessando dificuldades
económicas.
6. A Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna aplicou à Arguida,
pela pratica dos factos referidos em 11.1.1 a 11.1.3, por decisão proferida em
24/3/2004, a coima única de 5.237,38 euros».
Relativamente aos factos não provados, consignou-se:
«Não se provaram os seguintes factos, de entre os factos constantes da decisão
administrativa recorrida e da petição do recurso, acima não descritos e
contrários aos factos dados como provados supra enunciados;
- Que os legais representantes e responsáveis pelos referidos seguranças da
Arguida soubessem que os mesmos exerciam a actividade de segurança privada, em
nome e por, conta da arguida, sem obterem previamente os necessários cartões
profissionais devidamente autenticados pela Secretaria-Geral do Ministério da
Administração Interna, tendo actuado querendo que tal acontecesse».
«O tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos provados nas declarações
que a legal representante da Arguida prestou em audiência de julgamento, a qual
designadamente prestou declarações sobre a composição e situação económica da
Arguida no sentido dos factos provados, declarando que a Arguida tem 780
vigilantes como empregados seus, e que no exercício de 2003 a Arguida teve
prejuízo, e declarando quanto ao mais que entrou para a empresa Arguida em
31/12/2001 e não tinha responsabilidades na área da empresa Arguida responsável
pelos factos em questão nestes autos quando estes ocorreram.
O tribunal fundou-se nos depoimentos das testemunhas G., agente da P.S.P., que
confirmou os factos constantes dos autos de noticia de folhas 1 e 20, que
constatou ao deslocar-se nos dias referidos em tais autos aos locais aí
referidos, tendo deposto em conformidade com os factos provados, com isenção.
O tribunal fundou-se também no depoimento da testemunha H., gestora de recursos
humanos da empresa Arguida, que confirmou os factos provados, esclarecendo o
tribunal que os vigilantes da Arguida em questão não eram detentores de cartões
profissionais devidamente autenticados pela Secretaria-Geral do Ministério da
Administração Interna.
O tribunal fundou-se ainda na análise dos documentos juntos a fls. 4, 20, 76 a
81, 129 a 141 dos autos, examinados em audiência de julgamento.
O tribunal deu como provado que os legais representantes da Arguida agiram com
negligência inconsciente, porquanto não se provou que tenham agido dolosamente e
os mesmos deveriam ter-se certificado que os vigilantes que trabalham para a
Arguida não exerciam estas funções sem previamente possuírem cartões
profissionais devidamente autenticados pela Secretaria-Geral do Ministério da
Administração Interna, o que não fizeram.
Sobre os factos não provados não foi produzida qualquer prova».
III.2. A interposição e regime de recurso, para o Tribunal de Relação, de
decisões proferidas em 1ª Instância, em processo de contra-ordenação, deve
observar as regras específicas referidas nos arts. 73.° a 75.° do DL 433/82, de
27-10, com as alterações introduzidas pelo DL n.° 244/95, de 14-09 e pela Lei
n.° 109/2001, de 24-12 (Regime Jurídico das Contra-Ordenações), seguindo, em
tudo o mais, a tramitação do recurso em processo penal (art. 74.º, n.° 4), em
função do princípio da subsidiariedade genericamente enunciada no art. 41.º, n.°
1 do citado diploma.
Em recursos interpostos de decisões do Tribunal de 1.ª Instância, no âmbito de
processos de contra-ordenação, o Tribunal da Relação apenas conhece, em regra,
da matéria de direito, sem prejuízo de poder “alterar a decisão do tribunal
recorrido sem qualquer vinculação temática aos termos e ao sentido da decisão
recorrida”, “anulá-la e devolver o processo ao tribunal recorrido” (cfr. art.
75.º, n.°s 1 e 2, ainda do mesmo corpo normativo).
Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado
pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.°, n.° 1 do CPP).
Na realidade, os recursos são legalmente definidos como juízos de censura
crítica - sobre concretos pontos de facto e matéria de direito de que conheceu
ou deveria ter conhecido a decisão impugnada -, e não como «novos julgamentos».
A questão que a recorrente verdadeiramente submete à apreciação deste Tribunal
ad quem consiste em saber se, com a declaração de inconstitucionalidade, com
força obrigatória geral, do art. 7.º, n.°s 1, als. a), b) e c), d) e), f) g) e
h) e 2, als. a) e b) do Decreto-Lei n.° 231/98 (que veio regular o exercício da
actividade da segurança privada)
- Ac. do Tribunal Constitucional n.° 255/2002, de 12 de Junho de 2002, proferido
no proc. n.° 646/96 e proc. n.° 624/99 (incorporado) -, e até à entrada em vigor
do Decreto- Lei n.° 3 5/2004, substitui um vazio legal que, implicando a não
obrigatoriedade, nesse hiato temporal, da titularidade de cartão profissional
para o exercício da segurança privada, é obstativo da prática das
contra-ordenações pelas quais a arguida foi condenada, previstas pelo al. g) do
n.° do art. 31.° do citado DL 231/98 e puníveis nos termos da al. c) do n.° 2 do
mesmo artigo.
Não estando invocados quaisquer dos vícios elencados no n.° 2 do art. 410.° do
CPP, nem eles se divisando numa apreciação oficiosa, cumpre, desde já, apreciar
e decidir a referida questão.
III.3. Por decisão administrativa da Secretaria-Geral do Ministério da
Administração Interna, a arguida/recorrente “Visa Segurança, L.da” foi
condenada, em 24-03-2004, por quatro violações do n.° 1 do art. 9.° do art.° do
DL 231/98, de 22-07, em quatro coimas no valor de € 4.987,98 cada uma, nos
termos das als. g) do n.° 1 e e) do n.° 2 do art. 31.º do mesmo diploma, e na
coima única de € 5.237,38, por ter permitido que quatro trabalhadores, por sua
conta e ordem, exercessem funções sem serem titulares de cartão profissional.
Na sequência de impugnação daquela decisão administrativa, foi proferida pelo
2.° Juízo Criminal de Santarém, em 20-12-2004, a sentença exarada a fls. 185 a
191, que julgou improcedente o recurso.
Confrontada com a questão que nos cabe agora dilucidar, consignou-se na referida
decisão judicial:
«O Ac. n.° 255/2002, do Tribunal Constitucional, publicado na I.ª Série do DR de
08-07-2002, declarou a inconstitucionalidade orgânica, com força obrigatória
geral, por violação do art. 165.º, n.° 1, da CRP, da norma do art. 7. n.° 1,
als. a) a h) e n.° 2, als. a) e b) do DL 231/98, de 22-07.
(..)
A questão que importa resolver é saber se existe entre o referido art. 7º do
mencionado DL 231/98 e o art. 9º do mesmo diploma, uma relação de dependência
material e funcional tal que não faz sentido proceder à aplicação deste último,
(art. 9.°), sem que o anterior, (art. 7.º - requisitos de que depende o
exercício das diversas profissões ligadas à actividade de segurança privada),
tenha sido prévia e validamente aplicado à situação em causa, tal como pretende
a arguida recorrente.
(..)
É indubitável que o n.° 2 do referido art. 9.° perdeu na totalidade o seu
conteúdo útil, pois não é legalmente exigível, devido à declaração de
inconstitucionalidade do art. 7.° do DL 23 1/98, a comprovação dos requisitos
enunciados no art. 7.º.
Porém, a exigência legal de existência de um cartão profissional para o pessoal
de vigilância, autenticado pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração
Interna, prevista no n.° 1 do art. 9.º do DL 23 1/98, mantém‑se plenamente em
vigor, só não sendo exigível para a sua concessão a verificação dos requisitos
do art. 7.° do mesmo diploma legal declarado inconstitucional.
Efectivamente a razão de ser da existência de um cartão profissional para o
pessoal de vigilância extravasa a nosso ver as exigências estabelecidas na lei
para a sua concessão, as quais podem variar, ou mesmo deixar de estar previstas
na lei, como sucede presentemente, sem que a exigência da existência do referido
cartão seja em abstracto afectada, a qual radica no controle das pessoas que
exercem actividades de segurança por parte do Estado, podendo este conceder
renovar ou não tal cartão, sendo tais decisões obviamente impugnáveis».
É contra esta base de ideias que o recorrente se insurge, invocando, a
contrario, uma relação de dependência material e funcional entre a norma do art.
7.° do DL 231/98 (declarada inconstitucional) e aquela outra do art. 9.° do
mesmo corpo normativo, de tal modo que se a emissão do cartão profissional está
condicionada à comprovação dos requisitos enunciados no art. 7.°, declarada a
inconstitucionalidade desta norma a condição do art. 9.º, n.° 2 é legalmente
impossível, logo nula. Estando vedado à Secretaria Geral do Ministério da
Administração Interna a emissão de cartões profissionais, por força do vazio
legal que se verifica, o comportamento da recorrente não é apto a preencher
todos os pressupostos do tipo legal de contra-ordenação.
III.4. O Decreto-Lei n.° 231/98, de 22 de Julho, revogando o DL 138/94, que
alterou o DL 276/93, de 10 de Agosto, o qual, por sua vez, revogara o DL n.°
282/86, de 5 de Setembro, veio regulamentar ex novo o exercício da actividade de
segurança privada em Portugal.
Dispunham os arts. 7.º, 9.º e 31.º do diploma em causa:
- Art. 7º (Requisitos):
«1 - Os administradores e gerentes de entidades que desenvolvem a actividade de
segurança privada, os responsáveis pelos serviços de autoprotecção e o pessoal
de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas devem preencher
cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Ser cidadão português, de um Estado membro da União Europeia ou do espaço
económico europeu, ou, em condições de reciprocidade, de país de língua oficial
portuguesa;
b) Possuir a escolaridade mínima obrigatória;
e) Possuir plena capacidade civil,
d) Não ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de
crime doloso,
e) Não exercer, a qualquer título, cargo ou função na administração central,
regional ou local, bem como nos órgãos de soberania;
f) Não exercer a actividade de fabricante ou comerciante de armas e munições,
engenhos ou substâncias explosivas;
g) Não ter sido membro dos serviços que integravam o sistema de informações da
República nos cinco anos precedentes;
h) Não se encontrar na situação de efectividade de serviço, pré-aposentação ou
reserva de qualquer força militar ou força ou serviço de segurança.
2 - São requisitos específicos de admissão do pessoal de vigilância e de
acompanhamento, defesa e protecção de pessoas:
a) Possuir, no momento da admissão, a robustez física e o perfil psicológico
necessários para o exercício das suas funções, comprovados por ficha de aptidão,
acompanhada de exame psicológico obrigatório, emitida por médico do trabalho, o
qual deverá ser identificado pelo nome clínico e cédula profissional, nos termos
do Decreto-Lei n.° 26/94, de 1 de Fevereiro, e da Lei n.° 7/95, de 29 de Março;
b) Ser aprovado em provas de conhecimento e de capacidade física de conteúdo
programático e duração a fixar por portaria do Ministro da Administração
Interna, após curso deformação inicial reconhecido nos termos do n.° 2 do artigo
8.º.
- Art.° 9.º (Cartão profissional):
«1 - O pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas
deve ser titular de cartão profissional autenticada pela Secretaria-Geral do
Ministério da Administração Interna, válido pelo prazo de dois anos, susceptível
de renovação por iguais períodos de tempo.
2 - A autenticação do cartão profissional está condicionada à comprovação do
cumprimento dos requisitos enunciados no artigo 7.° junto da Secretaria-Geral do
Ministério da Administração Interna.
3 - O modelo dos cartões profissionais do pessoal referido no n.° 1 é aprovado
por portaria do Ministro da Administração Interna».
- Art. 31.º (Disposições sancionatórias - Contra-Ordenações e coimas):
«1. De acordo com o disposto no presente diploma, constituem contra-ordenações:
(…)
g) O exercício de funções de vigilância de acompanhamento, defesa e protecção de
pessoas por indivíduos que não sejam titulares de cartão profissional;
(…)
2 - Quando cometidas por pessoas colectivas, as contra-ordena ções previstas no
número anterior são punidas com as seguintes coimas:
(...)
c) De (euro) 4987,98 a (euro) 19951,92, no caso das alíneas e) a g)».
Com as disposições contidas nos supra citados arts. 7.° e 9.°, foi desiderato do
legislador «dignificar a profissão de vigilante pela criação de um cartão
profissional individual, certificado pela Secretaria-Geral do Ministério da
Administração Interna, de uso obrigatório, que garante que o seu portador deu
cumprimento a todos os requisitos legais, entre os quais o de aprovação em
provas de conhecimentos e de capacidade física, de conteúdo e duração legalmente
fixados» - cfr. o 9.° parágrafo da parte preambular do DL 231/98.
Vê-se, assim, que a teleologia dos referidos preceitos assenta em pressupostos
de ordem material e não só formal, pretendendo a lei dar conhecimento público,
pelo uso do respectivo cartão profissional, que o segurança que o exibe cumpriu
todos os requisitos de que a lei faz depender o exercício dessa profissão.
Como bem refere o recorrente na sua motivação de recurso, entre as duas normas
existe um relação de dependência material e funcional, onde a norma do art. 9.°,
n.° 2, assume uma dimensão meramente secundária ou adjectiva.
Sucede que o supra aludido art. 7.º, n.°s 1 e n.°2, foi declarado
inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do art. 165.°, n.°
1, al. b), da Constituição, pelo Ac. n.° 255/2002, de 12 de Junho de 2002,
declaração essa que produz efeitos desde a entrada em vigor da referida norma
(cfr. art. 282.°, n.° 1 da CRP), ou seja, desde 22 de Outubro de 1998.
Explicitando: a declaração de inconstitucionalidade do art. 7.°, n.°s 1 e 2
produz efeitos retroactivamente, ex tunc, e não efeitos a partir da data da
própria declaração ou ex nunc. Por outras palavras: a declaração da
inconstitucionalidade da norma implica a nulidade ipso jure da mesma,
invalidação que faz remontar os seus efeitos à data da sua entrada em vigor.
A declaração de inconstitucionalidade a que nos vimos referindo criou um vazio
legal no âmbito da titularidade de cartões de profissionais pelos vigilantes,
como preconiza o recorrente?
A resposta só pode ser negativa.
Considerando os efeitos ex tunc atribuídos à declaração de
inconstitucionalidade, e para evitar o “vazio jurídico de normas”
regulamentadoras de determinada “parcela de vida”, criou o legislador
constitucional a repristinação, ou seja, a “reentrada” em vigor da norma ou
normas revogadas pela norma declarada inconstitucional (cfr. o art. 282.°, n.°
1, parte final, da CRP), a qual decorre automaticamente da declaração de
inconstitucionalidade, não tendo o Tribunal Constitucional de decidir expressis
verbis efeitos repristinatórios nem de especificar quais as normas
repristinadas, embora possa delimitar os efeitos no exercício da competência
prevista no art. 282.°, 4.
«A justiça constitucional não pode ser cega; tem de atender aos resultados das
suas decisões, como o demonstra a possibilidade de restrição de efeitos prevista
no art. 284.°, n.º 4. Ora, se esse preceito admite que não se verifique
repristinação, isso significa que o Tribunal Constitucional há-de indagar das
normas repristinadas para as afastar ou não (…)».
No caso sub specie, o Acórdão do TC n.° 255/2002, de 12-06-2002, não fixou
qualquer restrição aos efeitos repristinatórios da norma que revogou (art. 7.º,
n.°s 1 e 2 do DL 231/98, de 22-97) e, por via disso, no confronto entre nenhuma
norma e a norma represtinada, a solução mais razoável, na racionalidade do
sistema, cai para o lado da existência desses efeitos.
Nestes termos, desde 22-10-1998, tem-se por repristinado o art. 8.º do DL
276/93, de 10-08, também ele regulamentador dos requisitos legais exigíveis para
a actividade da segurança privada, sendo com esta norma que haverá de
conjugar-se a aplicação do art. 9..º, n.º 2 do DL 231/98.
Em síntese conclusiva: na data dos factos que determinaram a condenação da
arguida (23-01-2002 e 13-09-2002), a condição do art. 9.º, n.° 2 do DL 231/98
dependia da comprovação dos requisitos enunciados no citado art. 8.° do DL
276/93, não havendo, deste modo, qualquer “vazio legal” inibidor da consumação
das contraordenações em causa e não ocorrendo, consequentemente, a invocada,
pelo recorrente, violação do princípio da legalidade (cfr. arts. 2.° do DL
433/82, de 27-10 e 29.° da CRP).
IV. Assim, por todo o exposto, acordam os Juízes, na Secção Criminal do Tribunal
da Relação de Évora, em negar, embora com diferentes fundamentos, provimento ao
recurso, confirmando, na íntegra, a sentença recorrida.
Arguida a nulidade do acórdão transcrito, arguição indeferida por acórdão de 21
de Fevereiro de 2006, foi interposto recurso de constitucionalidade nos
seguintes termos:
A., Sociedade Comercial com sede na Rua Joaquim Bonifácio, número 12, 10, em
Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o número
12.659, titular do cartão de identificação de pessoa colectiva número
503.297.321, Recorrente nos autos acima indicados, tendo sido notificada do
Douto Despacho que versou sobre a arguição de nulidades do Acórdão a fls.
261/274, vem interpor recurso do referido Acórdão para o Tribunal
Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 70°, n.° 1, alínea b), 72°,
n.° 1, alínea b), e n.° 2, 75° e 75° A, n.°s 1 e 2 da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de
Novembro e respectivas alterações), nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. O presente recurso é interposto ao abrigo do disposto no Artigo 70°, n.° 1,
alínea b) da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (Lei 28/82, de 15 de Novembro e respectivas alterações).
2. A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie é a do
artigo 8° do Decreto Lei 276/93, de 10 de Agosto.
3. De acordo com o teor do Acórdão proferido nos presentes autos — fls. 261/274
—, entre as normas dos artigos 7° e 9 ambos do Decreto Lei 231/98, de 22 de
Julho, existe uma relação de dependência material e funcional, onde a norma do
artigo 9°, n.° 2, assume uma dimensão meramente secundária ou adjectiva.
4. Ainda de acordo com o teor do Acórdão proferido, a declaração de
inconstitucionalidade do artigo 7°, nºs 1 e 2, do Decreto Lei 231/98, de 22 de
Julho, — Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 255/2002 — não criou um vazio
legal no âmbito da titularidade de cartões profissionais, pois desde 22 de
Outubro de 1998, tem-se por repristinado o artigo 8° do Decreto Lei 276/93, de
10 de Agosto, sendo com esta norma que haverá de conjugar-se a aplicação do
artigo 9°, n.° 2, do Decreto Lei 231/98.
5. A Relação decidiu pela conjugação de normas de dois diplomas (visando obter
um regime legal que não vigora na sua totalidade ao mesmo tempo), aplicando o
artigo 8° do Decreto Lei 276/93, constituindo o fundamento normativo da decisão.
6. O Tribunal Constitucional — no acórdão 255/2002 — só não apreciou a
inconstitucionalidade da norma do artigo 8° por considerar que não se justifica
a utilização do mecanismo da fiscalização abstracta sucessiva, relativamente a
normas já revogadas, sempre que não ocorra um interesse jurídico relevante — um
interesse prático apreciável.
7. No entanto, e ainda de acordo com o referido acórdão do Tribunal
Constitucional, sempre que existam situações referentes à aplicação de normas
revogadas — como é o caso — tal poderá ser resolvido por via da fiscalização
concreta da constitucionalidade.
8. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora acompanhou
integralmente a posição do Digno Magistrado do Ministério Público na 1ª
Instância, opinando no sentido da improcedência do recurso interposto pela
Requerente, pois, e de acordo com a referida posição, a declaração de
inconstitucionalidade da norma do artigo 7° do Decreto Lei 231/98, de 22 de
Julho, implicou que o artigo 8° do Decreto Lei 276/93, de 10 de Agosto, tem-se
por repristinado, estando em vigor desde 22 de Outubro de 1998 até à entrada em
vigor do Decreto Lei 35/2004, de 21 de Fevereiro.
9. Após esta tomada de posição — nova no processo (pois a decisão do Tribunal
Criminal de Santarém seguiu outra fundamentação) —, e no âmbito da resposta
prevista no artigo 417°, n.° 2, do Código do Processo Penal, a Requerente
invocou que a norma do artigo 8° do Decreto Lei 276/93, de 10 de Agosto, é
inconstitucional, acompanhando o parecer do Procurador Geral da República citado
no acórdão número 255/02: a norma do número 4 do artigo 8° do Decreto Lei 276/93
(introduzido pelo Decreto Lei 138/94) é materialmente inconstitucional por
constituir uma restrição desproporcionada e sem fundamento razoável à liberdade
de escolha de profissão, garantida no número 1 do artigo 47° da Constituição da
República Portuguesa.
10. Aliás e a propósito, de acordo com o teor do acórdão número 255/2002, e com
o parecer do Ministério Público em tal aresto, a utilização, por parte da
decisão, da norma do artigo 8° do Decreto Lei 276/93, era imprevisível e
insólita, mas ainda assim a Requerente invocou a questão da
inconstitucionalidade da referida norma.
11. Considerando a repristinação do artigo 8° do Decreto Lei 276/93, a Relação
de Évora deveria ter tomado posição sobre a inconstitucionalidade material da
referida norma por constituir uma restrição desproporcionada e sem fundamento
razoável à liberdade de escolha de profissão, garantida no número 1 do artigo
47° da Constituição da República Portuguesa (acórdão 255/2002).
12. Ora, a questão da constitucionalidade do artigo 8° do Decreto Lei 276/93 foi
submetida a conhecimento pela Relação de Évora nos presentes autos em tempo,
dispondo este Tribunal de poder jurisdicional para decidir sobre tal questão,
sendo certo que a inconstitucionalidade da norma é do conhecimento oficioso.
Em conformidade com o ora exposto, e nos termos do disposto nos artigos 70°, n.°
1, alínea b), 72°, n.° 1, alínea b), e n.° 2, 75° e 75°-A, n.°s 1 e 2 da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de
15 de Novembro e respectivas alterações), requer-se a V.Exa admissão do recurso
para o Tribunal Constitucional.
Junto do Tribunal Constitucional, a recorrente alegou concluindo o seguinte:
a) A actividade de segurança privada tem carácter subsidiário e complementar em
relação à acção do Estado (Serviço Público de Polícia);
b) O artigo 8° do Decreto Lei 273/96 prevê as condições indispensáveis e
necessárias para exercer a profissão de vigilante (no âmbito da segurança
privada). O não preenchimento das condições previstas na norma referida, impede
o candidato de exercer a mencionada profissão;
c) As matérias constantes nos números 1 a 4 do artigo 8°, por fixarem requisitos
de que depende o exercício da profissão no âmbito da actividade de vigilância
privada, inscrevem-se no âmbito de competência legislativa parlamentar [nos
termos dos artigos 47º, n.° 1 da Constituição e artigo 165°, n.° 1, alínea b) da
Constituição].
d) A definição dos requisitos para o exercício das actividades no âmbito da
segurança privada é matéria de direitos, liberdades e garantias, sujeita a
reserva de autorização legislativa, nos termos dos artigos 47°, n.° 1, e 165°,
n.° 1, alínea b) da nossa Constituição;
e) A norma do artigo 8°, número 1, alínea a), do Decreto Lei 276/93,
consubstancia uma excepção ao princípio da equiparação (artigo 15°, n.° 2, da
Constituição), ou uma restrição não especificada (artigo 18°, n.° 2, da Lei
Fundamental), pelo que teria que ser legislada através de Lei da Assembleia da
República ou de Decreto Lei autorizado;
f) O que não se verifica no caso concreto, pelo que foram violados os artigos
18°, n.° 3, e 165°, n.° 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa,
padecendo a norma do artigo 8°, número 1, alínea a), do Decreto Lei 276/93, do
vício de inconstitucionalidade orgânica;
g) As normas do artigo 8°, número 1, alíneas e), f), g) e h), do Decreto Lei
276/93, prevêem incompatibilidades para aqueles que prestam serviço de segurança
privada, o que constitui uma verdadeira restrição a um direito
constitucionalmente garantido (artigos 47° e 269° da Constituição da República
Portuguesa);
h) A restrição estabelecida na norma do artigo 8°, número 1, alíneas e) e f), do
Decreto Lei 276/93, teria que ser proporcionada, e, considerando que esta
matéria [incluindo as alíneas g) e h)] versa sobre restrições a direitos
liberdades e garantias, cabe na reserva relativa da competência da Assembleia da
República, ou estabelecida por um Decreto Lei do Governo devidamente autorizado
pela Assembleia da República;
i) O Governo emanou as normas do artigo 8°, número 1, alíneas e), f), g) e h),
do Decreto Lei 276/93, sem a competente Lei de autorização administrativa, pelo
que tais dispositivos estão afectados por inconstitucionalidade orgânica;
j) As alíneas a) e b) do número 2 do artigo 8° contêm requisitos específicos de
admissão do pessoal de vigilância, consubstanciando limites ao direito de
escolha de profissão (artigo 47°, n.° 1, da Constituição da República
Portuguesa);
k) Esta matéria é igualmente da reserva de competência legislativa da Assembleia
da República [artigo 165°, n.° 1, alínea b), da Lei Fundamental], pelo que tendo
o Governo emanado as normas sem autorização do Parlamento, as alíneas a) e b) do
número 2 do artigo 8°, do Decreto Lei 276/93, padecem do vício de
inconstitucionalidade orgânica;
l) A norma do artigo 8°, número 4 exige que o pessoal de apoio técnico e de
vigilância terá que possuir a cidadania portuguesa;
m) As excepções ao princípio da equiparação dos estrangeiros aos cidadãos
nacionais terão que ser justificadas e limitadas, e só podem ser determinadas
através de Lei formal da Assembleia da República [com respeito ao artigo 165°,
n.° 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa], e desde que
heteronomamente vinculada aos princípios consagrados na Lei fundamental (artigo
15°);
n) A norma do número 4°, aditada ao artigo 8° do Decreto Lei 276/93, pelo
Decreto Lei n.° 138/94, é organicamente inconstitucional por ter sido emitida
pelo Governo sem autorização legislativa da Assembleia da República;
o) As normas das convenções internacionais recebidas no direito português com
respeito pelo artigo 8°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, valem
na ordem jurídica portuguesa, pelo que a lei ordinária — Decreto Lei 276/93 —
deve respeitar as normas de direito internacional vigente (com estrito respeito
pela Lei Fundamental);
p) A norma do número 1, alínea d), do artigo 8° do Decreto Lei 276/93, viola o
artigo 30°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa, por estabelecer
automaticamente uma pena acessória à pena resultante da condenação por decisão
judicial, pelo que padece de inconstitucionalidade material;
q) A norma do número 4° do artigo 8°, inserido no Decreto Lei 276/93 por força
do Decreto Lei 138/94, por restringir o acesso à actividade de segurança privada
em razão da nacionalidade, padece do vício de inconstitucionalidade material,
por violação, sem fundamento razoável, do direito fundamental de livre escolha e
exercício de profissão ou género de trabalho (princípio consagrado no artigo
47°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa);
r) O artigo 8°, n.° 4, do Decreto Lei 276/93 (aditado pelo Decreto Lei 138/94)
infringe o princípio constitucional do primado do direito internacional sobre o
direito ordinário interno (artigo 277°, n.° 1, da Constituição da República
Portuguesa), ao estabelecer que cidadãos de outros Estados (nomeadamente os
cidadãos brasileiros) não gozem do estatuto de igualdade ao abrigo da Convenção
de Brasília, não podendo ter acesso — por não terem cidadania portuguesa — às
actividades de vigilância privada;
Nestes termos, requer-se ao Tribunal Constitucional que declare a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das alíneas a), d), e), f),
g), h), do número 1, alíneas a) e b), do número 2, e número 4 (aditado pelo
138/94, de 23 de Maio) do artigo 8° do Decreto Lei 276/93, de 10 de Agosto.
Concedendo provimento ao presente recurso, deverá consequentemente ser
reformulado o acórdão recorrido, em conformidade com o decidido sobre a questão
de constitucionalidade. Porque só assim se fará a costumada
Por seu turno, o Ministério Público contra alegou, concluindo o seguinte.
1 — A declaração de inconstitucionalidade formulada pelo acórdão n° 255/02
conduz a um juízo de inconstitucionalidade consequencial da norma procedimental
ou adjectiva constante do artigo 9° do Decreto‑Lei n° 231/98: na verdade,
visando o cartão profissional aí previsto para o pessoal de segurança privada, a
emitir pelo Ministério da Administração Interna, a comprovação dos requisitos
enunciados no artigo 7º, é evidente que a eliminação desta norma do ordenamento
jurídico esvazia e preclude irremediavelmente o segundo preceito.
2 — Pelas razões constantes do acórdão n° 255/02, são organicamente
inconstitucionais as normas “repristinadas”, constantes do artigo 8° do
Decreto-Lei n° 276/93, de 10 de Agosto, atinentes à definição dos “requisitos” a
preencher pelo pessoal ao serviço das empresas de segurança privada (em termos
análogos aos previstos na norma declarada inconstitucional) por se tratar de
matéria atinente ao regime de “direitos, liberdades e garantias”, mostrando-se
regulada em simples decreto-lei, emitido e descoberto de autorização
parlamentar.
3 — Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Cumpre apreciar.
2. O presente recurso de constitucionalidade foi interposto do acórdão do
Tribunal da Relação de Lisboa (transcrito supra) que confirmou a condenação do
recorrente pela prática de quatro contra‑ordenações previstas nos artigos 9º, nº
1, e 31º, nº 1, alínea g), e nº 2, alínea c), do Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de
Julho.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 255/2002
(www.tribunalconstitucional.pt), declarou com força obrigatória geral a
inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho, que
prescreviam os requisitos que deveriam ser preenchidos pelo pessoal de
vigilância e acompanhamento ao serviço de empresas do sector da actividade de
segurança privada, requisitos que constavam dos nºs 1 e 2 do artigo 7º do
referido diploma.
A contra‑ordenação em causa traduz‑se na falta da carta profissional relativa à
actividade mencionada. A autenticação dessa carta profissional é condicionada à
comprovação dos requisitos enunciados no artigo 7º do Decreto-Lei nº 231/98, de
22 de Julho, junto da Secretaria‑Geral do Ministério da Administração Interna
(cf. o mencionado artigo 9º, nº 2). Ora, tendo sido declarada a
inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que prevê esses
requisitos (a norma do artigo 7º), tal declaração esvazia de conteúdo a norma
que exige a titulação do cartão profissional para o qual é necessária a
comprovação dos requisitos que já não são exigíveis, por força da declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Por outro lado, a declaração
de inconstitucionalidade, se não impedir o funcionamento da norma que exige
titulação do cartão profissional – o que era justificado pela comprovação dos
referidos requisitos – mantém válida uma prescrição sem conteúdo e uma sanção
sem conexão com a prescrição a que o legislador a tinha associado. Ferindo a
declaração de inconstitucionalidade o âmago de um sistema de creditação, a
manutenção de um “esqueleto sancionatório” frustraria o efeito essencial daquela
declaração de inconstitucionalidade.
O acórdão recorrido, porém, procura estabelecer uma conexão entre a emissão do
cartão profissional e os requisitos do artigo 8º do Decreto-Lei nº 276/93, de 10
de Agosto, norma alegadamente repristinada na sequência da declaração com força
obrigatória geral do artigo 7º do Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho.
No entanto, tal entendimento não procede.
Em primeiro lugar, porque o processo de emissão do cartão profissional previsto
no Decreto-Lei nº 276/93 é diferente do processo previsto no Decreto-Lei nº
231/98. Com efeito, de acordo com os artigos 11º e 10º, nº 4, do Decreto-Lei nº
276/93, o cartão em causa seria emitido, não pelo Ministério da Administração
Interna, mas sim pelo Conselho de Segurança Privada (“entidade credenciada nos
termos do nº 1”, estando então em causa uma infracção de natureza diferente da
que originou os presentes autos).
Por outro lado, e decisivamente, os requisitos em causa num e noutro diploma são
substancialmente idênticos, pelo que os fundamentos da declaração de
inconstitucionalidade orgânica constante do Acórdão nº 255/2002 são igualmente
aplicáveis a propósito do Decreto-Lei nº 276/93, já que este diploma foi, assim
como o Decreto-Lei nº 231/98, emitido nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo
201º da Constituição, o que significa que não foi precedido da inerente
autorização legislativa.
3. Conclui‑se assim, pelos fundamentos do Acórdão nº 255/2002 (para os quais se
remete), no sentido da inconstitucionalidade das normas dos artigos 9º do
Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho, e 8º do Decreto-Lei nº 276/93, de 10 de
Agosto.
4. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao
recurso, revogando a decisão recorrida que deverá ser reformulada de acordo com
o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 12 de Julho de 2006
Maria Fernanda Palma
Benjamin Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto (vencido nos termos da
declaração de voto que junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido porque entendi que a declaração de inconstitucionalidade com força
obrigatória geral, constante do Acórdão n.º 255/2002 (que subscrevi), das normas
do artigo 7.º, n.ºs 1, alíneas a) a h), e 2, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º
231/98, de 22 de Julho, nem “esvazia de conteúdo a norma que exige a titulação
do cartão profissional” (que é o artigo 9.º, n.º 1, do referido diploma), como
se diz no Acórdão, nem conduz, diversamente do que defendeu o Ministério
Público, “a um juízo de inconstitucionalidade consequencial” desta norma. Para
concluir que assim é, basta verificar: que nem todos os requisitos para o
pessoal de vigilância foram afastados com a declaração de inconstitucionalidade
constante do citado aresto – antes subsistiu. no n.º 3 do artigo 7.º do
Decreto-Lei n.º 231/98, a exigência de que se trate de “trabalhadores de
sociedades de segurança privada, a elas vinculados por contrato individual de
trabalho”, ou “trabalhadores afectos a serviços de autoprotecção que exerçam as
suas funções no âmbito da actividade de segurança privada” (e v., para a sua
violação, o artigo 31.º, n.º 1, alínea f)); e que, por outro lado, a exigência
de que o pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de
pessoas fosse titular de cartão profissional, autenticado pela Secretaria-Geral
do Ministério da Administração Interna, não visa apenas a comprovação dos
requisitos cuja exigência foi declarada inconstitucional, mas também outros
fins, como, por exemplo, a identificação do pessoal em causa.
Com efeito, o citado Acórdão n.º 255/2002 declarou inconstitucionais os
requisitos do artigo 7.º, n.º 1, alíneas a) a h), e n.º 2, alíneas a) e b), do
Decreto-Lei n.º 231/98 Mas a recorrente foi sancionada por ter a trabalhar como
“vigilantes” pessoal que não era titular do cartão profissional, como exigido no
n.º 1 do artigo 9.º do mesmo diploma (infracção, esta, prevista no artigo 31.º,
n.º 1, alínea g)). É certo que a emissão deste cartão estava sujeita, nos termos
do artigo 9.º, n.º 2, à comprovação dos requisitos exigidos no artigo 7.º.
Assim, depois da declaração da inconstitucionalidade dos n.ºs 1 e 2 desse artigo
7.º, essa comprovação deixou de ser exigível, e no caso não se sabe, aliás, se
os trabalhadores em causa cumpriam efectivamente (ou não), os requisitos em
causa (ou se tinham tentado obtê-lo e ele lhes fora recusado). Mas tal não é
decisivo, pois não só não foram afastados outros requisitos (cf. o citado artigo
7.º, n.º 3) para a emissão do cartão, nem pelo facto de a comprovação ter
deixado de ser exigível nos mesmos termos deixou de ser necessária a existência
de cartão profissional, prevista no artigo 9.º, n.º 1, que continuava em vigor.
O Tribunal Constitucional não declarou a inconstitucionalidade deste artigo 9.º,
n.º 1, e a inconstitucionalidade da norma que exigia certos requisitos para o
exercício da actividade apenas podia, quando muito, afectar o alcance do artigo
9.º, n.º 2, que condicionava a emissão do cartão profissional à prova de certos
requisitos, e não do n.º 1, do Decreto-Lei n.º 231/98. Na verdade, pelo facto de
a emissão de um cartão profissional estar condicionada à comprovação do
cumprimento de certos requisitos não pode concluir-se que a exigência daquele
visasse exclusivamente tal comprovação, e não igualmente outras finalidades
(como, por exemplo, a identificação como pessoal de segurança dos trabalhadores
em causa). Note-se, aliás, que eram infracções diversas, punidas respectivamente
nas alíneas e), f), e g) do n.º 1 do artigo 31.º do Decreto-Lei n.º 231/98, a
“falta de requisitos comuns para a prestação de serviços de segurança,
constantes do n.º 1 do artigo 7.º”, ou a “manutenção ao serviço de pessoal que
não obedeça aos requisitos específicos constantes dos n.ºs 2 e 3 do artigo 7.º”,
por um lado, e o “exercício de funções de vigilância de acompanhamento, defesa e
protecção de pessoas por indivíduos que não sejam titulares de cartão
profissional”, por outro, e que foi ao abrigo desta última alínea que a
recorrente foi sancionada.
Discordei, pois, da afirmação de que a exigência de cartão profissional, e a
infracção pela qual a recorrente foi sancionada, tivessem ficado “esvaziadas de
conteúdo” com a declaração de inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º
255/2002 – afirmação a que o Acórdão só pôde chegar por não considerar
relevantes quaisquer outros requisitos ou finalidades do cartão. A meu ver, a
exigência de cartão profissional é uma exigência autónoma (prevista e
sancionada autonomamente, e com uma função que se não esgotava nos requisitos
eliminados) e que, como tal, subsistiu.
Posto isto, haveria, é certo, que apurar se os mesmos fundamentos do referido
Acórdão n.º 255/2002 – a inconstitucionalidade orgânica por o Governo ter
disciplinado matéria de direitos, liberdades e garantias (liberdade de
profissão) sem autorização parlamentar – eram, ou não, aplicáveis também à
exigência de cartão profissional, prevista no citado artigo 9.º, n.º 1. Entendo
que só assim se poderia – caso se concluísse pela resposta afirmativa – remeter
para os fundamentos do Acórdão n.º 255/2002. E, justamente, apenas poderia ter
chegado a pronunciar-me no sentido de uma inconstitucionalidade orgânica
idêntica à declarada no Acórdão n.º 255/2002 se tivesse concluído pela
qualificação da exigência do cartão profissional como matéria de liberdade de
profissão – questão que deixo em aberto e que o Acórdão entendeu ser
desnecessário abordar.
Paulo Mota Pinto