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Processo nº 300/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam, em conferência na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., S.A., recorrente no presente recurso de constitucionalidade, notificada
da decisão sumária de fls. 1414/1425, veio reclamar para a conferência, nos
termos do artigo 78º-A, nº 3 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC),
apresentando a fundamentação que, nos seus traços essenciais, aqui se
transcreve:
“[…]
1. Entende a ora reclamante que, ao procurar determinar os termos em que a
inconstitucionalidade normativa foi suscitada pela mesma nas conclusões
apresentadas nas suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto,
o […] Conselheiro Relator adoptou […] um entendimento de tal forma estreito, que
acabou por considerar que, nas conclusões dessas alegações, a Reclamante não
suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa pondo apenas em
causa a violação pela decisão tomada em 1ª instância de normas e princípios
constitucionais […].
3. Porém, entende a ora Reclamante que este modo de ver não corresponde, nem
ao texto, nem ao contexto, da alegação produzida junto do Tribunal da Relação do
Porto, e muito menos atende à forma como em concreto esse mesmo Tribunal a quo
enfrentou os problemas de desconformidade constitucional suscitados na alegação
da ora Reclamante.
4. Ainda assim, das passagens transcritas […] e também das que resultam de
todo o acórdão, resulta claro que o Tribunal a quo entendeu e considerou a
questão da desconformidade constitucional da norma constante do artigo 109º, nº
1 do [Código Penal] suscitada.
[…] [F]oi suscitada pela recorrente uma questão de inconstitucionalidade, não de
uma sentença, mas da interpretação de uma norma que essa sentença veio a acolher
[…]
9. Mesmo que se entenda, sem conceder, que a […] Reclamante não se exprimiu,
nesse contexto, do modo considerado mais adequado, a verdade é que resulta claro
das alegações de recurso, da decisão do Tribunal a quo e do requerimento de
interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, que foi suscitada a
questão da desconformidade constitucional da norma constante dos nºs 1 e 2 do
artigo 109º do [Código Penal], do nº 1 do artigo 666º do Código de Processo
Civil e dos artigos 8º, alínea a) e 9º do DL nº 28/84, de 20 de Janeiro, quando
interpretada e aplicada nos termos em que o foi pelo Tribunal de Sabrosa e pelo
Tribunal a quo. Ao ser considerado aceitável e válido, face a esses normativos,
diligências judiciais posteriores ao trânsito em julgado de uma sentença
judicial, que envolvem recolha de prova e diminuição de direitos e garantias
dos cidadãos, fora de um processo judicial em tribunal, permitindo dar por
provado aquilo que numa audiência de julgamento não o tinha sido, não pode
oferecer dúvidas que a interpretação das normas em causa, sufragada pelo
Tribunal a quo, importa a violação do disposto nos artigos 29º, nº 5, 30º, nº 4,
32º, nº 5 e 62º da Constituição […].
10. […] [A] ratio decidendi do Tribunal a quo é verdadeiramente a
interpretação das normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo 109º do [Código
Penal], do nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil e dos artigos 8º,
alínea a) e 9º do DL nº 28/84 […], segundo as quais, mesmo após o trânsito em
julgado de uma sentença judicial, é possível, fora de um processo judicial e
longe das garantias específicas que enformam o processo criminal (verdadeira
Constituição aplicada), ao juiz ordenar diligências de prova e dar por provado
aquilo que anteriormente dera por não provado, e que já transitara em julgado,
mesmo que isso implique a perda de direitos fundamentais. E na perspectiva do
Tribunal, a própria limitação legal prevista no artigo 666º do CPC seria
ultrapassada desde que o juiz fizesse constar da sua sentença que continuaria a
ter poderes mesmo após o seu transito em julgado – o que, salvo o devido
respeito, […] viola todo o raciocínio jurídico de quem faz parte e deseja um
verdadeiro Estado de direito democrático.
12. […] [A]legando [refere-se a Reclamante à fundamentação da decisão
sumária] que não se aceita a forma como as conclusões de uma alegação estão
redigidas é, salvo o devido respeito, denegação de justiça! De facto, suscitar a
inconstitucionalidade de uma norma durante o processo – no «entendimento
funcional» que o Tribunal há muito consolidou a propósito – significa invocar
essa desconformidade na Constituição reportada a normas concretas, «antes de
proferida a decisão de que se recorre e, em termos de o tribunal recorrido ficar
a saber que tem que a decidir»; ora tal foi observado criteriosamente.
13. Entende, por isso, a [...] Reclamante, que a douta decisão do [...]
Conselheiro Relator deverá ser revista em conformidade, e substituída por outra
que – admitindo o recurso para o Tribunal Constitucional e decidindo tomar
conhecimento do objecto do mesmo – circunscreva a questão de constitucionalidade
a apreciar [...] à conformidade das normas constantes dos nºs 1 e 2 do artigo
109º do [Código Penal], do nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil e dos
artigos 8º, alínea a) e 9º do DL nº 28/84, de 20 de Janeiro quando interpretada
e aplicada nos termos em que o foi pelo Tribunal de Sabrosa e pelo Tribunal a
quo, de forma a permitir considerar que, mesmo após o trânsito em julgado de uma
sentença judicial, é possível, fora de um processo judicial e longe das
garantias específicas que enformam o processo criminal (verdadeira constituição
aplicada), ao juiz ordenar diligências de prova e dar por provado aquilo que
anteriormente dera por não provado, e que já transitara em julgado, mesmo que
isso implique a perda de direitos fundamentais.
[...]”
[transcrição de trechos constantes de fls. 1429, 1430, 1432, 1433, 1435 e 1436]
A esta reclamação respondeu, a fls. 1439/1440, o Ministério Público, aqui
recorrido, pugnando pela confirmação da decisão sumária.
É a seguinte a fundamentação constante da decisão objecto da presente
reclamação:
“[…]
1. A., S.A., recorrente no presente recurso de constitucionalidade
(empresa que adiante será referida como Cálem), foi sujeita a julgamento em
processo crime (cfr. artigo 3º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro,
diploma respeitante às 'Infracções Anti-Económicas e Contra a Saúde Pública',
doravante designado DL 28/84) no Tribunal Judicial da Comarca de Sabrosa,
conjuntamente com um seu Administrador, enquanto seu representante, acusados,
ela e este, da prática:
“[…]
de um crime «contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros
alimentícios e aditivos alimentares», referente a género («Vinho do Porto»)
«falsificado» (crime p. e p. pelo artigo 24º, nº 1, alínea a), com referência ao
conceito do artigo 82º, nº 2, alínea a), ambos do DL 28/84);
e de um crime de «violação de normas sobre declarações relativas a inquéritos,
manifestos, regimes de preços ou movimento das empresas» (crime p. e p. pelo
artigo 34º, nº 2 do DL 28/84, com referência aos artigos 10º do Decreto-Lei nº
513-D/79, de 24 de Dezembro, 1º e 5º da Portaria nº 265/84, de 24 de Abril e 4º
do Regulamento CEE nº 3929/87, de 17 de Dezembro).[…]”
Culminando tal julgamento foi a A. condenada pelo segundo destes crimes
(Sentença de fls. 1088/1112; o Administrador foi absolvido dos dois crimes e a
A. do primeiro deles) na pena de 180 dias de multa (€125,00/dia, correspondente
€22.500,00).
1.1. Encontrando-se apreendidos à ordem de tal processo 495.000 litros de vinho
(fls. 25), consignou-se na Sentença, a respeito deste produto apreendido, o
seguinte:
“[…]
Cumpre-nos, por último, fazer uma pequena referência aos 495.000 litros de vinho
referentes às vindimas anteriores a 1998.
Como se extrai do teor da motivação, não ficámos convencidas quanto à
«normalidade» do vinho apreendido para que este seja considerado apto a receber
a denominação de origem «Vinho do Porto»; aliás, basta lê-la, na parte referente
ao processo de recolha que inquinou o resultado global (do vinho no seu
conjunto), para se extrair tal conclusão.
Pelo que, atendendo aos valores supra apontados, ou seja, a confiança de quem
entra em relação negocial com o agente e, reflexamente, o interesse patrimonial
do adquirente ou do consumidor na autenticidade dos géneros alimentícios, não
poderemos descurar tal situação; ao invés, procuraremos acautelar que tal
produto não entre no mercado a não ser que estejam comprovadas as
características organolépticas do Vinho do Porto.
Para tanto – uma vez que a realização de uma perícia no decurso do julgamento
não pôde ser levada a cabo, por razões que se prenderam com as garantias de
defesa dos arguidos, já que os resultados poderiam vir a ser gravosos para os
mesmos, atento o decurso de tempo entretanto decorrido sobre as segundas
recolhas e análises –, determinar-se-á a realização de um exame pericial para
que, finalmente, seja dado um destino ao produto.
Assim sendo, o produto manter-se-á, por ora, apreendido, até que seja efectuado
um novo exame pericial, com observância de todos os procedimentos exigidos e com
a colaboração de um perito a indicar pelo [Instituto do Vinho do Porto], pela
arguida e pelo Tribunal, que serão nomeados por este, os quais deverão
participar em todo o processo (desde a recolha às análises laboratoriais) e
apresentar, no final, um relatório pericial com as respectivas conclusões.
Após a sua realização, será então dado o destino final ao produto apreendido.
[…]'
[transcrição de fls. 1109/1110]
Realizada esta perícia (cfr. fls. 1162), e apresentado o respectivo relatório
(cfr. fls. 1175/1232), proferiu a Exmª Juíza da Comarca de Sabrosa o seguinte
Despacho:
“[...] Em sede de sentença, não foi dado destino ao produto apreendido no
âmbito dos presentes autos, ou seja, 495.000 litros de vinho, relegando-se tal
decisão para uma fase posterior à realização de um novo exame pericial e
elaboração do respectivo laboratório.
[…].
O art. 8º, do DL 28/84 […], prevê a possibilidade de aplicação de penas
acessórias relativamente aos crimes previstos nesse mesmo diploma (crimes estes
em causa nos presentes autos), e entre as quais se destaca, no que ao caso dos
autos respeita, a constante da alínea a) do referido preceito legal, ou seja, a
perda de bens.
A propósito de tal sanção, o art. 9º, nº 1, prevê que: «A perda de bens,
a declarar nos termos do presente diploma e do Código Penal, abrange o lucro
ilícito obtido pelo infractor».
Também o artigo 24º, nº 3 do referido diploma, preceito legal que
tipifica o crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros
alimentícios e aditivos alimentares, de cuja prática os arguidos foram acusados
e absolvidos, determina que o tribunal ordenará a perda dos bens.
Destas normas legais, decorre a possibilidade [de o] tribunal declarar a
perda a favor do Estado dos bens objecto da prática do ilícito criminal previsto
[nesse] art. 24º […].
Importa também fazer referência ao disposto no art. 109º do Código Penal,
preceito para o qual nos remete o anteriormente referido art. 9º, nº 1 do DL
28/84 […], e que dispõe o seguinte: «São declarados perdidos a favor do Estado
os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática
de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando,
pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança
das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser
utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos».
Ora, o preceito legal em causa assenta em razões de natureza preventiva,
devendo ser declarados perdidos a favor do Estado, nomeadamente, os objectos que
serviram para a prática de um ilícito criminal ou que por este foram produzidos,
quando pela sua natureza oferecerem sério risco de serem utilizados para o
cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Destes preceitos legais decorre que, ocorrendo a prática do ilícito
criminal em causa, os bens que foram objecto do mesmo deverão ser declarados
perdidos a favor do Estado.
[…].
Embora os arguidos […] e [A.] tivessem sido acusados da prática de um
crime […] p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 24º, nº 1, a) e 82º, nº
2, a) do DL 28/84 […], a verdade é que ambos os arguidos foram absolvidos da
prática de tal ilícito criminal.
Ora, faltar-nos-á assim o pressuposto fundamental para podermos declarar
perdidos a favor do Estado o vinho apreendido nos presentes autos.
Porém, importa ir mais longe e verificar as razões que levaram a tal
absolvição dos arguidos.
E tais razões tiveram a ver com o facto de não se terem preenchido os
elementos objectivos e subjectivos do crime que lhes era imputado.
E os elementos objectivos de tal ilícito consideraram-se não preenchidos,
porquanto se deu como não provado, que o vinho em questão fosse no seu conjunto
anormal […].
O tribunal ficou na dúvida sobre se acaso as amostras do produto
analisado contivessem também amostras do fundo de cada balão, os resultados das
análises efectuadas ao produto seriam os mesmos, ou seja, concluiriam, como
concluíram, que se tratava de produto avariado.
Mas, se tal dúvida foi determinante para o tribunal absolver os arguidos
da prática do crime que lhes era imputado, já no que respeita ao destino a dar
ao produto, o tribunal não quis tomar uma decisão sem previamente desfazer tais
dúvidas, tendo para o efeito determinado a realização de nova perícia ao produto
[…]”.
[transcrição de fls. 1237/1239]
Seguidamente, refere-se o Despacho aqui em causa às conclusões da nova perícia,
e ao entendimento, desta resultante, de que o produto apreendido nos autos “[…]
não é susceptível da denominação de origem Porto”. E acrescenta o seguinte,
relativamente à representatividade do conjunto das amostras que originaram as
análises valoradas em julgamento e às consequências jurídicas dessa constatação:
“[…] conclui-se que as amostras analisadas de fls.136 a 150 eram representativas
do todo, pois são-no independentemente de serem colhidas também no fundo dos
balões ou não.
Logo, se as análises de fls.136 a 150 eram representativas do todo, cai
por terra a dúvida que se levantou ao tribunal e que o levou a dar como não
provados os factos constantes de b) e c) da sentença de fls.1093.
Ora se aquelas análises concluíram pelos factos ali dados como não
provados e se a dúvida pela qual os mesmos se deram como não provados foi
dissipada […], dúvidas não há de que, aqueles factos dados como não provados têm
agora, para efeito da questão que estamos a apreciar, que se ter como assentes,
o que parcialmente, também resulta das análises agora efectuadas.
Temos assim que, embora não se verifiquem os pressupostos subjectivos do
ilícito […], dúvidas não há de que se verificam os elementos objectivos do
mesmo.
[...]
Coloca-se agora a questão de saber, se apesar da não verificação dos
elementos subjectivos do crime em causa, ainda assim será de declarar o produto
em questão perdido a favor do Estado.
Nesta matéria, entendemos ser de aplicar o disposto no nº 2 do artigo
109º do Código Penal [e este] prevê que: «O disposto no número anterior tem
lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto»
[...].
O vinho apreendido à ordem dos presentes autos serviu ou destinava-se a
servir para a prática de um ilícito criminal, sendo o mesmo o objecto ou produto
desse ilícito e[,] pela sua natureza de produto «avariado», oferece sério risco
de ser utilizado para o cometimento de novo facto ilícito típico, pois para que
tal ocorra basta armazená-lo ou simplesmente detê-lo em depósito.
E[,] assim sendo[,] verificam-se todos os pressupostos para que o vinho
em causa seja declarado perdido a favor do Estado.
[...]
Pelo exposto, declaro perdido a favor do Estado o vinho apreendido à
ordem dos presentes autos [...]
[transcrição de trechos de fls.1240/1242]
1.2. Deste Despacho interpôs a A. recurso (fls. 1247), rematando a
respectiva motivação com as seguintes (quarenta) conclusões (das quais se
transcrevem apenas as susceptíveis de apresentar alguma relevância para a
apreciação dos pressupostos do presente recurso de constitucionalidade) :
“[...]
b) Esta douta decisão [...] viola diversos princípios legais e constitucionais.
Viola o princípio da extinção do poder jurisdicional: proferida a sentença, fica
imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
c) O alcance de tal princípio é o seguinte: o juiz não pode [...] alterar a
decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia
[...]. Este princípio fundamenta-se na necessidade de assegurar a estabilidade
da decisão jurisdicional.
[...]
e) Assim, com a sentença proferida [...] o poder jurisdicional [...] ficou
esgotado, não podendo ser considerada legal a nomeação dos peritos, a recolha de
amostras e [a] sua análise, o respectivo «relatório pericial», bem como a
decisão recorrida [...].
f) A douta decisão viola igualmente o princípio ne bis in idem.
[...]
l)[...] porquanto, socorrendo-se de uma prova ilegal, obtida fora do processo,
com violação dos princípios do contraditório, da imediação e da oralidade,
decide aplicar uma pena acessória à Recorrente, considerando que esta terá
praticado o mesmo facto típico ilícito (pressuposto da pena acessória) [do]
qu[al] anteriormente fora definitivamente absolvida.
m) Viola ainda a douta decisão recorrida o art. 30º, nº 4 da Constituição.
n) Ao lado da pena principal, o direito penal consagra igualmente um conjunto de
penas acessórias [...].
o) Como sanções acessórias elas terão necessariamente que ser aferidas ao facto
ilícito cometido e à culpa manifestada pelo agente, não se configurando como
efeitos da condenação, do que resulta que não são de aplicação automática, nem
podem ser decretados se forem manifestamente desproporcionados à gravidade do
crime e da culpa do agente (nesse sentido Ac. do Tribunal Constitucional nº
327/99[...]).
[...]
u) A perda dos bens tal como se encontra prevista no Código Penal não exige uma
condenação, em sede de julgamento, pela prática de um crime. Para ser declarado
perdido a favor do Estado o instrumento do crime é necessário, por um lado, que
o objecto tenha servido ou estivesse destinado a servir para a prática de um
crime, por outro, que se verifique uma das situações de perigosidade previstas
no nº1 do artigo 109º do Código Penal.
v) Ora, o texto deste artigo é resultante da revisão do Código levada a efeito
pelo DL nº 48/95, de 15 de Março. No nº1, os termos crime e crimes foram
substituídos pelas expressões facto ilícito e típico e factos ilícitos típicos.
O objectivo era afastar a ideia de culpa como pressuposto da perda e abranger,
assim, os inimputáveis – e não as pessoas colectivas, atento o facto do Código
Penal encontrar-se estruturado com base na responsabilidade pessoal.
[...]
x) [...] não haveria nunca o risco sério ou perigosidade que se encontram
previstos no artigo 109º do Código Penal [...].
[...]
cc) A [...] decisão recorrida viola, também, os princípios da oralidade, da
imediação e do contraditório.
dd) Não valem em julgamento, nomeadamente para efeitos de formação da convicção
do tribunal, quaisquer provas que não sejam produzidas ou examinadas em
audiência [...].
ee) Ora, por maioria de razão, uma vez esgotado o poder jurisdicional, [...],
não poderá ser admissível qualquer material probatório, recolhido a posteriori
[...]. Tal é, inclusive, atentatório do Estado de direito democrático.
[...]
ll) Por último, viola a [...] decisão recorrida o princípio da intangibilidade
do caso julgado.
mm) Tendo o tribunal considerado como não provados determinados factos
essenciais, não pode depois [...] decidir o contrário[,] porque o seu poder
jurisdicional esgotara-se em tal matéria [...].
nn) Pelo exposto, a [...] decisão recorrida viola os arts. 666º do CPC
([p]rincípio da extinção do poder jurisdicional), art. 29º, nº5 da CRP
([p]rincípio ne bis in idem e da intangibilidade do caso julgado), art. 30º, nº4
da CRP e arts. 355º, nº1, 365º, nº3 e 374º, nº2 do CPP (princípios da oralidade,
imediação e contraditório).
[...]”
[transcrição de trechos de fls. 1270/1279]
Entretanto, tendo o processo subido ao Tribunal da Relação do Porto,
determinou-se, face à posição do Ministério Público expressa no visto de fls.
1350/1360, o cumprimento do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo
Penal, pronunciando-se a ora recorrente nos termos constantes de fls. 1369/1372,
repetindo os argumentos da motivação, designadamente nas passagens já antes
transcritas.
1.3. Decidindo o recurso (Acórdão de fls. 1375/1396), rejeitou o Tribunal
da Relação do Porto que a decisão aí recorrida violasse os princípios “da
extinção do poder jurisdicional”, do “ne bis in idem e da intangibilidade do
caso julgado”, da “oralidade, da imediação e do contraditório” ou o disposto no
nº4 do artigo 30º da CRP (cfr. fls. 1385). Relativamente ao artigo 109º do
Código Penal (CP), entendeu o Tribunal “[...] não resta[r] a mínima dúvida de
que se est[ava] perante um produto anormal e que a sua manutenção em depósito só
por si já integra[va] o crime p. e p. no artigo 24º, nº1 do DL 28/84, pelo que
se impunha o seu perdimento a favor do Estado”. Tratou-se, sublinhou a decisão
ora recorrida, de “[...] uma medida de prevenção para evitar a prática de novos
factos ilícitos [...] não [...] dependente da condenação dos arguidos, ao abrigo
do disposto na parte final do nº1 e do nº2 do artigo 109º do CP” (transcrições
de fls. 1395/1396).
1.4. Surge então o presente recurso de constitucionalidade (fls.
1404/1406), caracterizando-o a recorrente Cálem nos seguintes termos:
“[...]
1. Os princípios de que ninguém pelos mesmos factos pode ser
criminalmente julgado por mais do que uma vez (non bis in idem), de que nenhuma
pena pode envolver como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis,
profissionais ou políticos (limite das penas), de que a audiência de julgamento
e os actos instrutórios estão subordinados ao contraditório (princípio do
contraditório), e a garantia do direito de propriedade, têm sido uma constante
no ordenamento constitucional português e têm expressão respectivamente nos
artigos 29º, nº5, 30º, nº4, 32º, nº5 e 62º da [CRP].
2. A douta sentença [...] da Primeira Instância – transitada em julgado:
absolveu os arguidos da prática dos crimes contra a genuinidade, qualidade ou
composição de géneros alimentares de que vinham acusados, e [;] julgou não se
ter provado que os 495.000 litros de vinho apresentassem características
organolépticas diversas das do Vinho do Porto.
3. Mais tarde [...] o mesmo Tribunal de Sabrosa, no mesmo processo, veio
decidir o contrário: julgou, agora, estar provado que os mesmos 495.000 litros
de vinho afinal não apresentavam as características organolépticas do Vinho do
Porto; condenou a arguida [A.], proprietária desses 495.000 litros de vinho, na
sua perda a favor do Estado.
4. O douto acórdão de que se recorre confirmou a decisão da Primeira
Instância. Para o efeito, considerou não se ter esgotado o poder jurisdicional
do juiz com a prolação [...] da primeira sentença, ao contrário do que determina
o artigo 666º, nº1 do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto
no artigo 4º do Código de Processo Penal, apoiando-se no artigo 109º, nºs 1 e 2
do [CP] e nos artigos 8º, alínea a) e 9º do [DL 28/84].
5. É inconstitucional a interpretação normativa dada pelo douto acórdão
recorrido aos preceitos citados – artigo 109º, nºs 1 e 2 do [CP] e artigos 8º,
alínea a) e 9º do [DL 28/84] – no sentido de que após sentença transitada em
julgado, e em referência aos mesmos factos e aos mesmos arguidos, de novo se
possa não só considerar provado o que antes se julgou não provado, mas também
condenar em penas acessórias quem antes já sofrera condenação.
6. Interpretadas assim as normas contidas nos artigos 666º, nº1 do Código
de Processo Civil, 109º, nºs 1 e 2 do [CP] e 8º, alínea a) e 9º do [DL 28/84],
infringem o disposto nos artigos 29º, nº5, 30º, nº4, 32º, nº5 e 62º da
Constituição [...].
7. A ora Recorrente suscitou e debateu a questão da inconstitucionalidade
na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto. [...]”
[transcrição de fls. 1404/1406]
2. A admissão do presente recurso no Tribunal a quo (cfr. fls. 1407) não
vincula o Tribunal Constitucional [artigo 76º, nº3 da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro [LTC)]. Assim, sendo certo que ao recurso pretendido interpor pela
recorrente A. falta o necessário pressuposto da suscitação prévia de uma questão
de inconstitucionalidade normativa, importa proferir decisão sumária de não
admissão, nos termos do disposto no artigo 78º-A, nº1 da LTC.
Porém, preliminarmente, importa esclarecer que o recurso interposto pela
recorrente A. é o previsto na alínea b) do nº1 do artigo 70º da LTC, e não o da
alínea g) da mesma disposição, como, por notório lapso de escrita, indicou no
seu requerimento de interposição (cfr. fls. 1404). Com efeito, alcança-se que o
recurso visado é o da alínea b), tendo presente, desde logo, a referência,
constante do mesmo requerimento ao artigo 280º, nº1, alínea b) da Constituição
da República Portuguesa (CRP). Além disso, lendo integralmente o requerimento de
interposição, intui-se não estar em causa – ou seja, não ter pretendido a
recorrente que estivesse em causa – uma aplicação de “[...]norma já
anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal
Constitucional” (fundamento constante da alínea g)), sendo evidente pretender
antes recorrer por considerar que o Tribunal da Relação do Porto aplicou “[...]
norma cuja inconstitucionalidade [havia ela] suscitad[o] durante o processo” (ou
seja, o fundamento constante da alínea b)). Não se trata aqui – importa
sublinhá-lo – de proceder, contra a jurisprudência constante deste Tribunal
(cfr., entre outros, os Acórdãos nºs 347/04 e 71/04, disponíveis, bem como o
posteriormente citado, em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos), a uma
convolação do fundamento do recurso, mas, tão só, de corrigir (de assumir a
correcção de) um erro de escrita notório, porque revelado pelo próprio “contexto
da declaração” do recorrente [cfr. artigo 249º do Código Civil, norma que contém
uma regra de vocação geral, aplicável “às declarações que as partes produzem no
decurso de um processo” (Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência,
125º Ano, p. 383)].
2.1. Assente isto – ou seja, assente que o recurso interposto é o
previsto na alínea b) do nº1 do artigo 70º da LTC –, importa determinar se a
recorrente suscitou, anteriormente à decisão aqui recorrida, uma questão de
inconstitucionalidade à qual possamos atribuir natureza normativa.
O trecho processual relevante para aferição deste pressuposto (que é o da
suscitação anterior à decisão objecto do recurso de constitucionalidade) é,
neste caso, aquele em que a recorrente expõe ao Tribunal da Relação do Porto,
através da motivação do recurso aí em causa, as razões da sua discordância
relativamente ao decidido pelo Tribunal da Comarca de Sabrosa, ao declarar
perdido a favor do Estado, nos termos do artigo 109º, nº2 do CP, o vinho
apreendido.
Ora, analisando tal peça processual (a motivação de fls. 1247/1279), e
concretamente o teor das conclusões que delimitam o objecto do recurso aí
interposto (conclusões que, nos itens relevantes, se mostram transcritas nesta
decisão), verifica-se que a recorrente nunca suscitou, perante o Tribunal da
Relação do Porto, alguma questão de inconstitucionalidade que, por se reportar a
concretas normas de direito ordinário encaradas na sua relação com normas ou
princípios constitucionais, assumisse natureza normativa. É certo que a
recorrente se referiu no texto dessa motivação, e designadamente nas conclusões,
à existência de violações de diversos princípios com assento na Lei Fundamental.
Tais referências, porém, conforme se pode constatar através das transcrições
feitas na presente decisão sumária (cfr. item 1.2. supra), jamais se traduziram
na invocação de que alguma norma, e concretamente aquela (o artigo 109º, nº2 do
CP) que funcionou como ratio decidendi, na primeira e na segunda instância,
relativamente à perda dos bens, violaria a Constituição ou teria sido aplicada
na base de uma interpretação que a tornasse inconstitucional. Coisa diferente é
– e isso, com efeito, a recorrente fá-lo na motivação de fls. 1247/1279 –
imputar a uma decisão judicial ter violado princípios constitucionais. Esta
imputação, porém, não abrindo a via do recurso de constitucionalidade (cfr.
Acórdão nº 583/05), também não conta como suscitação prévia de
inconstitucionalidade, para o efeito de um recurso fundado na alínea b) do nº1
do artigo 70º da LTC, pois não adverte o tribunal ad quem do entendimento da
parte de que uma determinada norma – ou uma norma em determinada interpretação –
não são conformes ao texto constitucional.
2.2. Mostrando-se ausente, como se acabou de indicar, o imprescindível
pressuposto da suscitação prévia de uma questão de inconstitucionalidade
normativa, resta ao Tribunal proferir uma decisão de não admissão do recurso.
3. Nestes termos, decide-se não admitir o presente recurso.
[…]”
[transcrição de fls. 1414/1425]
2. Como resulta da decisão sumária acabada de transcrever constituiu fundamento
da não admissão do recurso – e consequentemente da prolação dessa decisão
sumária –, a ausência de suscitação junto do tribunal recorrido (que é o
Tribunal da Relação do Porto), previamente à decisão ora recorrida (que é o
Acórdão dessa Relação de fls. 1375/1396), de uma questão de
inconstitucionalidade que, por assumir natureza normativa, possibilitasse
posteriormente a interposição de um recurso de constitucionalidade ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC. Com efeito, pressupondo este recurso que
a parte que o interpõe “[...] haja suscitado a questão da inconstitucionalidade
[...] de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer [...]” (artigo 72º,
nº2 da LTC; sublinhado acrescentado), entendeu-se – e o Tribunal reafirmá-lo-á
no presente Acórdão – que a Recorrente não invocara, na motivação do recurso
interposto da decisão aí recorrida (a decisão do Tribunal de Sabrosa constante
de fls. 1237/1242), qualquer questão de constitucionalidade reportada às normas
e/ou interpretações normativas aplicadas por essa mesma decisão.
Trata-se este de um entendimento que o Tribunal tem assumido, reiteradamente, em
situações em tudo idênticas à do presente recurso, expressando-o, entre outras,
através das seguintes formulações, retiradas dos Acórdãos nºs 169 e 361/06
(ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos):
“[...]
[C]omo constitui jurisprudência constante do Tribunal, só pode considerar-se
suscitada a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado se o
interessado tiver colocado o tribunal perante uma argumentação que seja referida
à desconformidade de determinada norma de direito ordinário com regras ou
princípios constitucionais e que apresente um mínimo de substanciação, de tal
modo que o tribunal saiba ou deva saber, antes de esgotado o seu poder
jurisdicional sobre a matéria que deva ser decidida por aplicação da norma cuja
desconformidade à Constituição se quer pôr em causa, que tem uma questão dessa
natureza para decidir, isto é, que se pretende que faça uso do poder que lhe
confere o artigo 204º da Constituição e que, em consequência, recuse aplicação à
norma (ou a esse identificado sentido normativo), no caso concreto, com esse
fundamento. A colocação da questão de constitucionalidade deve ser clara, de tal
modo que possa dizer-se que a sua eventual não consideração na decisão constitua
uma infracção ao dever de conhecimento de todas as questões submetidas a
apreciação, exceptuadas aquelas cuja resolução esteja prejudicada, que o nº 2 do
artigo 660º do Código de Processo Civil impõe ao juiz (cfr. também o nº 2 do
artigo 713º do CPC). Não se exigem fórmulas sacramentais, mas é indispensável
que se confronte o juiz da causa [...] com o problema de não poder aplicar
determinada norma (ou determinado sentido dessa norma) sem afastar o obstáculo
da sua desconformidade com a Constituição.
[...]”
[transcrição do Acórdão nº 169/06]
“[...]
O cumprimento do ónus a que se refere o artigo 72º, nº 2 da [LTC] não se
basta [...] com a mera afirmação, perante o tribunal recorrido, de que certa
interpretação normativa, não concretizada, é inconstitucional, pois que tal não
traduz a invocação de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade: o
preceito vai mais longe, impondo ao recorrente a delimitação dessa questão, de
forma a possibilitar ao tribunal recorrido a sua cabal compreensão e, portanto,
a sua efectiva decisão.
É evidente que [...] pode suceder que o tribunal recorrido não venha a
decidi-la, caso em que não teria sentido prejudicar o recorrente, impedindo-o de
obter a apreciação dessa questão pelo Tribunal Constitucional. Mas uma coisa é o
tribunal recorrido não ter decidido a questão; outra, bem diferente, é não ter
estado sequer obrigado a conhecê-la, por ela não lhe ter sido colocada de forma
clara.
[...]”
[transcrição do Acórdão nº 361/06]
2.1. É certo que a reclamante alega ter suscitado, na motivação do
recurso que originou a decisão recorrida, essa questão de inconstitucionalidade
normativa que a decisão sumária entendeu ausente. Porém, “quod scripsi, scripsi
!” e o Tribunal, tendo transcrito no texto da decisão reclamada (cfr. item 1.2.
a fls. 1419/1420) as passagens (todas as passagens) dessa motivação contendo
referências a normas e princípios constitucionais, continua a não vislumbrar
nessas passagens, ou em qualquer outro trecho dessa motivação, a imputação de
desconformidade constitucional a especificas normas de direito ordinário, ou a
alguma recomposição interpretativa de normas de direito ordinário da qual
decorresse uma regra minimamente abstracta e com algum tipo de vocação de
generalidade, de modo a poder constituir uma interpretação normativa sindicável
pelo Tribunal Constitucional.
O Tribunal pode – e já o fez ao longo da tramitação deste recurso –
corrigir, porque revelados pelo próprio “contexto da declaração”, lapsos de
escrita da recorrente (lendo, por exemplo, alínea a) onde, por notório engano,
se escreveu alínea g); cfr. fls. 1423). O que o Tribunal não pode, é ler no
texto da motivação do recurso para o Tribunal da Relação do Porto o que
notoriamente aí não foi escrito, fazendo equivaler, por exemplo, a afirmação de
que a “[...]decisão [...] viola diversos princípios legais e constitucionais
[...]” (v. fls. 1271), à afirmação – jamais feita pela recorrente anteriormente
à decisão recorrida – de que o artigo 109º, nº 2 do Código Penal era
inconstitucional (ou de que determinada interpretação dele era
inconstitucional).
Não se trata, contrariamente ao que a reclamante afirma, de o Tribunal se
“apegar[...] à linguagem [...]” (fls. 1430), mas sim de entender a linguagem na
base da “comunidade de palavras e enunciados” (Robert Alexy, A Theory of Legal
Argumentation, Oxford, 1989, p. 145), vigente na argumentação jurídica. Nesta
“comunidade”, afirmar que uma decisão viola a Constituição não tem o mesmo
significado e consequências do que afirmar que determinada norma é
inconstitucional. Foi, enfim, esta notória diferença que a decisão sumária
sublinhou, e que o Tribunal ora reafirma.
3. Assim, pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.
Custas pela Recorrente/Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Artur Maurício