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Processo n.º 385/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 1818 e seguintes, não se tomou
conhecimento do recurso interposto para este Tribunal por A., SA., pelos
seguintes fundamentos:
“[…]
3. Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a recusa de aplicação, pelo tribunal recorrido, da norma cuja
conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie,
com fundamento na respectiva inconstitucionalidade.
Significa esta exigência que o referido recurso só é admissível quando o
tribunal recorrido, considerando embora essa norma como potencialmente aplicável
ao caso concreto, não a tenha aplicado a esse caso (por entender que tal norma é
inconstitucional).
Ora, percorrendo a decisão recorrida (supra, 1.), verifica-se que o tribunal
recorrido não considerou a norma do n.º 4 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º
21-A/98, de 6 de Fevereiro – a norma que a recorrente submete à apreciação do
Tribunal Constitucional – como potencialmente aplicável ao caso concreto.
Na verdade, o tribunal recorrido considerou que a norma imediatamente aplicável
era a do artigo 25º do Código das Expropriações de 1991, não conhecendo sequer
da questão da aplicabilidade do n.º 4 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 21-A/98,
de 6 de Fevereiro.
Esta questão – ou, mais precisamente, a questão da determinação do direito
aplicável ao caso dos autos – tinha sido decidida em acórdão anterior (o acórdão
do Tribunal da Relação de Évora, de 25 de Janeiro de 2001, a fls. 869 e
seguintes, aliás referenciado pela recorrente: supra, 2.), em cujo texto se lê o
seguinte (cfr. fls. 878 v.º a 879 v.º):
«[…]
Há ainda que equacionar a eventual aplicação do transcrito n.º 4 do artº 4° do
DL n.º 21-A/98.
Este preceito não representa uma mera concretização da norma do n.º 3 do artº
22° CE para as expropriações por ele previstas (as necessárias à realização do
Empreendimento dos Fins Múltiplos de Alqueva e definidas no n.º 1 do seu artº
1º; as necessárias à reinstalação da Aldeia da Luz e realojamento da população
respectiva – n.º 2 desse artº; e as necessárias à construção das
infra-estruturas viárias referidas no seu n.º 3), em termos de se limitar a
excluir do critério avaliativo da indemnização o valor acrescido que, da própria
expropriação, passou a resultar para os demais prédios da zona, ou seja,
repete-se, que o acréscimo de valor que os equipamentos, obras ou construções a
implantar no prédio expropriado tenha trazido ou venha a trazer para esses
outros prédios não interfere na fixação da indemnização de expropriação.
Vai mais longe, visando excluir, designadamente, no que aqui interessa
considerar, a valorização da parcela a afectar à reinstalação da Aldeia da Luz e
da sua população como solo apto para construção, nessa medida indo além do n.º 3
do artº 22° e afastando a aplicação da al. c) do n.º 2 do artº 24°, também do
CE.
Ora, na medida em que concretize, no caso, a norma desse n.º 3 vale o
entendimento do referido ac. n.º 267/97 do Tribunal Constitucional.
E na medida em que vai mais além, nos termos referidos?
Aí há que dizer que, além de violar igualmente os princípios constitucionais da
justiça e da proporcionalidade (apontados no citado acórdão), viola também o da
igualdade, previsto no artº 13° da Constituição da República Portuguesa.
Como se disse no ac. n.º 1007/96 do Tribunal Constitucional, no DR., 2ª, de
12.12.96, e tem vindo a ser por este reafirmado, ‘o princípio da igualdade, como
é entendimento uniforme deste Tribunal, obriga que se trate como igual o que for
essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não
impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a
irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de
tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.
Prossegue-se assim uma igualdade material, que não meramente formal.
Para que haja violação do princípio constitucional da igualdade, necessário se
torna verificar, preliminarmente, a existência de uma concreta e efectiva
situação de diferenciação injustificada ou discriminação.
Concretizando, importará perguntar se as normas impugnadas possuem uma
justificação material para a “diferenciação” que (eventualmente) estabelecem. É
que, se a tiverem, não importarão qualquer violação do princípio da igualdade’.
Ora, verifica-se que, na medida apontada, que vai além do regime geral
consagrado no n.º 3 do artº 22° do CE de 1991 e afasta também a aplicação do
regime geral da al. c) do n.º 2 do artº 24° do mesmo diploma, a norma do n.º 4
do artº 4° do DL n.º 21-A/98 cria uma desigualdade injustificada e desrazoável
entre os expropriados dos presentes autos – aliás, já identificados e objecto da
expropriação em data anterior à da publicação deste DL (e, porventura, outros
expropriados do referido Empreendimento do Alqueva que vissem as suas parcelas
expropriadas para afectação a fins edificatórios, v.g. para reinstalação da
população da antiga Aldeia da Luz ou outra) e os demais expropriados – isto é,
fora do quadro expropriativo desse Empreendimento – limitando-lhes a
indemnização a receber.
Isto porque aqueles veriam o prédio avaliado como «solo para outros fins»,
enquanto que estes veriam os seus terrenos avaliados como «solo apto para
construção», com os inerentes critérios valorativos diferentes, mais
desfavoráveis para os 1ºs.
Assim sendo, a norma do referido artº 4 é, na medida apontada, inconstitucional,
por violar o princípio da igualdade, sendo, pois, de lhe recusar aplicação (artº
204° CRP).
Entendemos, portanto, que não vale, no caso, nem a al. c) do n.º 2 do artº 24°
CE nem o n.º 4 do artº 4° do DL n.º 21-A/98, sendo, por isso, de avaliar como
‘solo apto para construção’ a concreta área do prédio expropriado que seja
destinada à reinstalação da Aldeia da Luz, área a apurar, na 1ª instância, já
que dos autos não constam dados seguros sobre esse ponto.
Aliás, à mesma conclusão se chegava, no caso, se se defendesse que a hipótese
era prevista pelo n.º 5 do artº 24°, face ao entendimento do aludido ac. do TC
n.º 267/97 no sentido da apontada inconstitucionalidade dessa norma, posição que
valeria também no caso dos autos.
A valorização dessa parte da parcela terá, assim, de ser efectuada na 1ª
instância, no quadro do artº 25° do CE, já que, para além de não se saber a área
a avaliar como tal, os peritos nomeados pelo Tribunal e pela expropriante não
consideraram essa valorização, nem, consequentemente, forneceram os dados
necessários para tal.
[…].».
Tendo a determinação do direito aplicável ao caso dos autos sido efectuada, não
no acórdão ora recorrido, mas no acórdão acabado de transcrever, só deste
acórdão de 25 de Janeiro de 2001 poderia ter sido interposto recurso para o
Tribunal Constitucional para a apreciação da questão de constitucionalidade que
constitui o objecto do presente recurso: na verdade, só neste acórdão a norma do
artigo 4º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 21-A/98, de 6 de Fevereiro, foi considerada
como potencialmente aplicável, pelo que só em relação a este acórdão poderia
eventualmente sustentar-se que a aplicação dessa norma foi recusada com
fundamento em inconstitucionalidade.
Não tendo o acórdão ora recorrido recusado, por inconstitucionalidade, a
aplicação da norma que a recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal
Constitucional, não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, por não se
mostrar preenchido um dos seus pressupostos processuais.
[…].”.
2. Desta decisão sumária vem agora A., SA. reclamar para a
conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, dizendo o seguinte (fls. 1842 e seguintes):
“[…]
C) Ilegalidade da Decisão Sumária Reclamada
10. A mencionada Decisão Sumária, ao recusar a tomada de conhecimento do
presente recurso pelos fundamentos supra-identificados, viola a garantia e o
inerente direito de recurso de constitucionalidade estabelecidos no artigo 280°,
n.º 1, al. a) da Constituição e no artigo 70°, n.º 1, al. a) da Lei do Tribunal
Constitucional, sendo assim inconstitucional e ilegal por violação destas normas
e devendo afinal ser revogada;
11. Na verdade, a Recorrente, por disposição constitucional e legal, gozava e
podia exercer – como exerceu – o direito de recurso para o Tribunal
Constitucional, cumprindo-se in casu todos os respectivos pressupostos
processuais para que se pudesse tomar conhecimento do recurso interposto;
12. Em particular, e contrariamente ao que se pretende na Decisão Sumária ora
reclamada, verifica-se, quanto ao presente recurso, o pressuposto processual que
corresponde à exigência de se impugnar uma decisão judicial que tenha recusado a
aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade;
13. Na verdade, no presente recurso, a recorrente impugnou uma decisão judicial
– o Acórdão de 2 de Fevereiro de 2006, proferido pelo Tribunal da Relação de
Évora (2ª Secção) no proc. n.º 1211/05 – que recusou a aplicação ao caso sub
judice de uma norma – a do n.º 4, do artigo 4° do DL 21-A/98, de 6 de Fevereiro
–, fazendo-o com fundamento na sua inconstitucionalidade;
14. Em termos gerais, para efeitos de recurso de constitucionalidade, a recusa
de aplicação de normas por inconstitucionalidade tanto pode resultar expressa
como implicitamente das decisões judiciais impugnadas, as quais podem ser
meramente confirmativas de posição (judicium ou cognitio) anteriormente assumida
judicialmente (maxime, no mesmo processo);
15. Para tanto, e ainda em termos gerais, basta considerar que a garantia de
recurso de constitucionalidade, tal como se encontra consagrada
constitucionalmente e no segmento que aqui importa considerar, visa prevenir
que, em processos judiciais, se emitam juízos negativos de constitucionalidade
de normas que levem ao afastamento da sua aplicação aos casos concretos sem que
o Tribunal Constitucional se pronuncie a propósito;
16. Mais: o nosso ordenamento estabelece uma presunção de constitucionalidade
das normas aplicáveis a casos pendentes de apreciação judicial, a qual apenas
pode ser ilidida – e, se for caso disso, não pode deixar de ser ilidida –
mediante decisão do Tribunal Constitucional;
17. Daí que, para tais casos, se estabeleça a obrigatoriedade de recurso para o
Tribunal Constitucional quanto ao Ministério Público (artigo 280°, n.º 3 da
Constituição e artigos 2°, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional);
18. Assim sempre que, de algum modo, se possa concluir que no quadro de uma
decisão judicial houve recusa intencional de aplicação de uma certa norma, por
razões de constitucionalidade terá de ser possível o recurso de
constitucionalidade para o Tribunal Constitucional;
19. Retomando considerações sobre o Acórdão impugnado de 2 de Fevereiro de 2006
e sobre a recusa que nele se faz da aplicação ao caso concreto do n.º 4, do
artigo 4° do DL 21-A/98, de 6 de Fevereiro, diremos então que esta recusa é
neste acórdão inequívoca, já que, na parte relativa ao «Mérito dos Recursos», a
fls. 20, se acolhe a posição antes defendida no Acórdão da Relação de Évora de
25 de Janeiro de 2001 proferido a propósito do mesmo caso sub judice,
transcrevendo-se que: «não vale, no caso, (...) o n.º 4, do artigo 4° do DL n.º
21-A/98, de 6 de Fevereiro, sendo por isso, de avaliar como solo apto para
construção a concreta área do prédio que seja destinada à reinstalação da Aldeia
da Luz, área a apurar na 1ª instância, já que dos autos não constam dados
seguros sobre este ponto»;
20. O Acórdão ora em causa tomou assim posição sobre a questão da aplicação do
n.º 4, do artigo 4° do DL 21-A/98, de 6 de Fevereiro, que acabou por ser de
aceitação confirmativa da posição assumida em anterior Acórdão de 25 de Janeiro
de 2001, a qual apontava para a recusa de aplicação de tal norma por razões de
constitucionalidade (vd. parte transcrita na Decisão Sumária reclamada, a fls. 5
a 7);
21. E o Acórdão ora em causa, não podia deixar de, expressa ou implicitamente,
directamente ou por remissão, tomar posição sobre a aplicabilidade da citada
norma do n.º 4, do artigo 4° do DL 21-A/98, de 6 de Fevereiro; é que esta norma
correspondia a direito positivo, indeclinavelmente, aplicável ao caso;
22. Acresce que, ao postergar a aplicação de tal norma, este Acórdão de 2 de
Fevereiro de 2006, por corresponder a uma decisão pretensamente final, acabou
por considerar implicitamente – indo mais longe do que o anterior Acórdão de 25
de Janeiro de 2001 – que na determinação do valor das indemnizações deveria ser
tomada em consideração a mais-valia resultante da própria declaração de
utilidade pública da correspondente expropriação, bem como da efectiva
realização do Empreendimento de Alqueva e dos projectos e instrumentos de
planeamento que lhe respeitam; e isto para contrariar a aplicação do citado n.º
4, do artigo 4° do DL 21-A/98, de 6/2;
23. E rejeitou assim, de modo efectivo e intencional, a aplicação da citada
norma do DL 21-A/98; e as razões foram inequivocamente de inconstitucionalidade,
na esteira do Acórdão de 25 de Janeiro de 2001;
24. A tudo isto podemos acrescentar que no processo judicial em questão o citado
Acórdão de 25 de Janeiro de 2001 não tem, afinal, autonomia decisória face ao
Acórdão ora recorrido de 2 de Fevereiro de 2006, de tal modo que aquele vale tão
só nos limites e termos em que julgou – i.e., como ordem de baixa dos autos à 1ª
instância em vista de se obter a ampliação da matéria de facto – e que a
cognitio de constitucionalidade nele contida acerca do n.º 4, do artigo 4° do DL
21-A/98, de 6/2, só se tornou judicium através do Acórdão ora recorrido; este
tomou como seus, em lógica de decisão final, o que interlocutoriamente fora
considerado em momentos processuais anteriores; o Acórdão de 2 de Fevereiro de
2006 absorveu, nomeadamente, o que resulta do Acórdão de 25 de Janeiro de 2001 e
não é por ele afastado;
25. Como notas finais, será de considerar, por um lado, que nos termos do
disposto no n.º 6, do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o facto de
não ter sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão do
Tribunal da Relação de Évora de 25 de Janeiro de 2001 não precludiu o direito de
interpô-lo do Acórdão do mesmo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2006;
26. O que o n.º 6, do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional quis
acautelar foi que em nenhum processo judicial em que tivesse relevado
determinantemente uma questão de constitucionalidade esta pudesse vir a ser
julgada em definitivo sem intervenção do Tribunal Constitucional;
27. Aliás, sempre será de relevar que o citado Acórdão de 25 de Janeiro de 2001
não era quanto à questão de constitucionalidade em referência passível de
recurso para o Tribunal Constitucional porquanto não representava a decisão
judicial final do processo – valeu apenas como decisão com alcance processual,
determinante da ampliação da matéria de facto; a decisão judicial final
encontramo-la apenas no Acórdão ora Recorrido; e é de decisões desta natureza –
que já não comportem recursos ordinários – que pode caber recurso para o
Tribunal Constitucional;
28. Por outro lado, mas complementarmente, será de considerar que o recurso de
constitucionalidade interposto é, constitucional e legalmente, qualificado como
obrigatório (artigo 280°, n.º 3, da Constituição e artigo 72°, n.º 3 da Lei do
Tribunal Constitucional);
29. E tal deve conduzir a que só seja recusado o seu conhecimento pelo Tribunal
Constitucional em casos extremos: quando num processo judicial – em nenhuma das
decisões em que ele se analise e que se condensam na decisão final – se
verificou qualquer recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento em
inconstitucionalidade; o que não é o caso vertente, como aliás se admite na
Decisão Sumária ora reclamada.
[…].”.
3. A recorrida B. respondeu à reclamação (fls. 1851 e seguintes), no
que foi acompanhada pelo recorrido, C. (fls. 1860), pugnando pela respectiva
improcedência.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. A argumentação em que assenta a presente reclamação (supra, 2.) é
essencialmente a seguinte:
a) Contrariamente ao sustentado na decisão sumária reclamada,
do acórdão recorrido era possível interpor recurso para o Tribunal
Constitucional com fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, pois que “a recusa de aplicação de normas por
inconstitucionalidade tanto pode resultar expressa como implicitamente das
decisões judiciais impugnadas, as quais podem ser meramente confirmativas de
posição […] anteriormente assumida judicialmente”;
b) “Sempre que, de algum modo, se possa concluir que no quadro
de uma decisão judicial houve recusa intencional de aplicação de uma certa
norma, por razões de constitucionalidade, terá de ser possível o recurso de
constitucionalidade para o Tribunal Constitucional”;
c) O acórdão recorrido tomou posição sobre a questão da
aplicação do n.º 4 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 21-A/98, de 6 de Fevereiro –
a norma que constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade –,
pois que do seu texto consta uma transcrição do acórdão anterior, onde se afirma
que esse preceito não vale, no caso concreto;
d) A questão da inconstitucionalidade desta norma foi conhecida
e decidida, a final, no acórdão recorrido;
e) Do n.º 6 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
resulta a não preclusão do direito de interpor o presente recurso;
f) Não era admissível recurso para o Tribunal Constitucional do
acórdão de 25 de Janeiro de 2001.
5. Cabe salientar, em primeiro lugar, que a decisão sumária reclamada
não rejeitou o conhecimento do objecto do presente recurso de
constitucionalidade, por ter sido implícita a recusa de aplicação da norma
questionada (n.º 4 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 21-A/98, de 6 de Fevereiro):
pura e simplesmente, a decisão sumária reclamada considerou não ter havido tal
recusa, nem explícita nem implícita.
E isto porque, como aí se referiu, a recusa pressupõe a
consideração de que determinada norma é potencialmente aplicável ao caso
concreto e, na decisão recorrida, tal consideração nem sequer ocorreu.
Assim sendo, os dois primeiros argumentos da reclamante não
destroem a fundamentação da decisão sumária: seria, para o efeito, necessário
demonstrar que a decisão recorrida havia considerado a possibilidade da
aplicação da norma que constitui o objecto do presente recurso, o que não se
confunde com a mera afirmação de que houve intenção de recusa de aplicação.
6. Por outro lado, não é possível concluir no sentido da existência
de recusa (expressa ou implícita), pela mera leitura do trecho do acórdão
recorrido que a reclamante aponta: da circunstância de, neste acórdão, se ter
transcrito uma afirmação do acórdão anterior, segundo a qual a norma que
constitui o objecto do presente recurso “não vale”, não decorre que, no acórdão
ora recorrido, se tenha chegado a ponderar a possibilidade de aplicação dessa
norma e, muito menos, que se tenha afastado essa possibilidade por razões de
desconformidade constitucional.
Tal transcrição do acórdão anterior, incluída certamente por
razões de facilidade de exposição, destina-se a incorporar no acórdão o que já
se encontrava decidido – e não impugnado – quanto à “classificação” do solo
expropriado como “solo apto para construção”.
É que o acórdão agora recorrido não se pronunciou sequer sobre
a questão para a qual seria eventualmente pertinente a consideração da norma
constante do n.º 4 do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 21-A/98, de 6 de Fevereiro,
pela simples razão de que a classificação do solo expropriado não fazia parte do
objecto dos recursos submetidos ao Tribunal da Relação de Évora. Na verdade, o
objecto dos recursos interpostos pelos expropriados estava circunscrito, na
parte que neste momento importa considerar, à determinação do valor
indemnizatório do solo expropriado, já anteriormente classificado como “solo
apto para construção” (cfr. a delimitação do objecto dos recursos feita no
acórdão aqui recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, em 2 de
Fevereiro de 2006, a fls. 1737).
Improcedem assim igualmente o terceiro e o quarto argumentos da
reclamante.
8. Ao quinto argumento subjaz o entendimento segundo o qual o artigo
70º, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional permite o conhecimento do objecto
de um recurso cujos pressupostos processuais não estejam preenchidos, para tanto
bastando que a decisão recorrida confirme uma anterior decisão relativamente à
qual o recurso para o Tribunal Constitucional seria admissível.
Levado às últimas consequências, tal argumento significaria, na
verdade, a dispensabilidade, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea a) do
n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do próprio requisito da
recusa de aplicação de uma norma, desde que a decisão recorrida confirmasse uma
anterior que tivesse recusado essa aplicação.
Sucede, porém, que este entendimento não tem a mínima base
legal. O artigo 70º, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional não é uma norma
excepcional em relação ao artigo 70º, n.º 1, alínea a), da mesma Lei – o que,
aliás, seria perfeitamente desadequado, sob o ponto de vista sistemático –,
apenas pretendendo regular o regime a que está subordinado um dos requisitos do
recurso de constitucionalidade: o da exaustão dos recursos ordinários.
Aliás, no caso dos autos, o acórdão da Relação de Évora, aqui
recorrido, de 2 de Fevereiro de 2006, não confirma o acórdão da mesma Relação,
de 25 de Janeiro de 2001, já que, como decorre do que anteriormente se disse
(supra, 6.), tais acórdãos decidiram questões jurídicas distintas.
Improcede, portanto, também este quinto argumento.
9. Quanto ao sexto argumento, não tem igualmente razão a reclamante.
De uma decisão que tenha recusado a aplicação de uma norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade – como era o caso da decisão de 25 de Janeiro de 2001 – é
sempre admissível recurso para o Tribunal Constitucional, pois que o artigo 70º,
n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional não exige que, em relação a ela, se
esgotem os recursos ordinários.
O artigo 70º, n.º 2, menciona, como facilmente decorre da sua
leitura, apenas os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1.
Nessa perspectiva, a circunstância de tal decisão não
representar “a decisão judicial final do processo” – para usar as palavras da
reclamante – não constituía obstáculo à sua impugnação perante o Tribunal
Constitucional.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente
reclamação, mantendo-se a decisão sumária de fls. 1818 e seguintes, que não
tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos