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Processo n.º 467/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Foi, a fls. 748 e seguintes, proferida decisão sumária no sentido
do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A.,
Lda., pelos seguintes fundamentos:
“[…]
4. Resulta do requerimento de interposição do presente recurso (supra, 3.) que o
mesmo foi interposto ao abrigo das alíneas a) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional.
Estes preceitos prevêem, respectivamente, o recurso para o Tribunal
Constitucional de decisões judiciais que recusem a aplicação de qualquer norma,
com fundamento em inconstitucionalidade e, bem assim, que apliquem norma cuja
ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos
referidos nas alíneas c), d) e e) (ou seja, com fundamento em violação de lei
com valor reforçado, em violação do estatuto de região autónoma ou em violação
de lei geral da República).
Ora, relativamente ao recurso previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, é evidente que os respectivos pressupostos não
se encontram preenchidos, atendendo a que o tribunal recorrido não recusou a
aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, das normas que a
recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional; muito pelo
contrário, o tribunal recorrido considerou que tais normas não eram
inconstitucionais, sendo, por isso, aplicáveis ao caso concreto (supra, 2.).
Quanto ao recurso previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, é também patente que os seus pressupostos não se
encontram preenchidos: desde logo, porque a recorrente não suscitou, durante o
processo, em relação às normas que agora pretende submeter à apreciação do
Tribunal Constitucional, qualquer dos vícios de ilegalidade reforçada previstos
na disposição invocada como fundamento do recurso, tendo-se limitado a invocar a
inconstitucionalidade de tais normas (supra, 2.).
Não estando preenchidos os pressupostos processuais do recurso interposto, não é
possível conhecer-se do respectivo objecto.
[…].”.
2. Desta decisão sumária vem agora A., Lda. reclamar para a
conferência, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, dizendo o seguinte (fls. 760 e seguintes):
“[...]
1°- A Recorrente interpôs, efectivamente, o presente Recurso indicando, no
requerimento previsto no n.º 1 do artigo 75º-A da LTC, as alíneas a) e f) do
artigo 70° daquele diploma.
2°- No que se refere à alínea a) tal aconteceu por mero lapsus calami, pois que,
conforme flui dos Autos, tramitados em Secção e depois em Plenário da 1ª Secção
do STA, nunca esteve em causa a recusa da aplicação de qualquer norma, com
fundamento na sua inconstitucionalidade.
3°- Esteve em causa, isso sim, a aplicação de normas – as do DL 553/80, de 21 de
Novembro, em especial, o seu artigo 99° e as da Portaria n.º 207/98, de 28 de
Março – cuja inconstitucionalidade havia sido expressamente suscitada durante
todo o processo.
4°- Na verdade, desde o Recurso Contencioso de Anulação, em 1ª instância – cfr.
artigos 196° a 239° (Capítulo X) da Petição Inicial do Recurso Contencioso de
Anulação, artigos 55° a 66° (Capítulo G) e conclusões XLI e XLII das alegações
proferidas em 1ª Instância; cfr. ainda, já em fase de Recurso para o Pleno da
Secção do Contencioso Administrativo do STA, capítulo II das alegações de
recurso e suas conclusões III a VII e XXX – que a Recorrente pugna pela não
aplicação, por inconstitucionalidade, do DL 553/80, maxime do seu artigo 99° e
da Portaria n.º 207/98, de 28 de Março ... que as instâncias têm vindo
sucessivamente a validar .
5°- Ora, a alínea a) do n.º 1 do artigo 70° da LTC permite o recurso de decisões
dos Tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento na sua
inconstitucionalidade. Não é isso – uma decisão positiva de
inconstitucionalidade – que patentemente está em causa em sede de recurso da
decisão do STA! O que está em causa é o recurso de uma decisão negativa de
inconstitucionalidade, o recurso de uma decisão de rejeição!
6°- Foi, pois, por manifesto lapsus calami que se indicou a alínea a) do artigo
70° da LTC quando claramente, se queria indicar a alínea b) daquele normativo,
onde, salvo melhor opinião, cabe claramente o recurso interposto.
7°- Deve admitir-se a correcção de tal «lapsus calami» (Art. 249° do Cod.
Civil), sendo certo que a tanto autoriza, quer o contexto da declaração de
vontade de interposição do Recurso, quer as circunstâncias em que tal declaração
foi feita, designadamente todo o «histórico» da invocação da
inconstitucionalidade assacada àquelas normas.
8°- Tendo presente que o processo tem regras e que as mesmas devem ser
cumpridas, estamos em crer que, num caso como este, importa ir além do plano da
justiça meramente formal, alcandorando-nos ao da justiça material, tão almejado
pela Recorrente, ao longo das várias fases processuais vivenciadas nos Autos.
9°- Pretende a Recorrente a apreciação concreta da constitucionalidade do
Dec.-Lei n.º 553/80, de 21 de Novembro, em especial do seu Artigo 99°, e da
constitucionalidade e ilegalidade da Portaria n.º 207/98, de 28 de Março,
designadamente do seu artigo 1° b) e do seu artigo 3° c) e g), normas às quais
foram sempre atribuídas inconstitucionalidades, nunca reconhecidas pelo
Venerando Supremo Tribunal Administrativo, não devendo ficar impedida de o
fazer, por mero lapso na indicação da alínea do n.º 1 do artigo 70° da LTC.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V.as Ex.as doutamente suprirão,
deve:
a) admitir-se a correcção do «lapsus calami» cometido no requerimento de
interposição de Recurso para este Venerando Tribunal, aceitando-se a
interposição do mesmo ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70° da LTC;
b) proferir-se Decisão que admita tal Recurso, revogando-se, assim, a douta
decisão proferida ao abrigo do artigo 78°- A n.º 1 da LTC.
[…].”.
3. O Secretário de Estado Adjunto e da Educação [que sucedeu ao
Secretário de Estado da Administração Educativa], ora recorrido, pronunciou-se
no sentido do indeferimento da presente reclamação (fls. 769 e seguintes),
nestes termos:
“[…]
1° - A Requerente reage contra a decisão sumária proferida pela Ex.ma Juíza
Consª. Relatora, de 9.06.2006.
2° - Sem razão.
3° - Com efeito, a Requerente diz que queria interpor recurso para este
venerando Tribunal, ao abrigo do art. 70°, b) da LTC e não da sua alínea a),
como efectivamente aconteceu.
4° - Mas é à Recorrente que compete indicar a alínea do n.º 1 do art. 70° da LTC
ao abrigo da qual o recurso é interposto (art. 75º-A, 1 da LTC).
5° - O objecto das alíneas a) e b) são completamente diferentes: na alínea a),
trata-se de decisões judiciais que recusem a aplicação de qualquer norma, com
fundamento em inconstitucionalidade; na alínea b), trata-se de decisões
judiciais que apliquem normas eivadas de inconstitucionalidade suscitada durante
o processo.
6° - É, pois, um erro grosseiro e indesculpável para a Recorrente, ora
Reclamante!
7° - Sibi imputet!
8° - Então, haveria a Recorrente de interpor novo recurso, mas já se exauriu o
prazo legal para o efeito, consignado no art. 75° da LTC.
Nestes termos deve ser indeferida a presente reclamação, com o que este
Venerando Tribunal uma vez mais fará a costumada Justiça!
[…].”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Antes de mais, cumpre salientar que na realidade a reclamante não
questiona o acerto da fundamentação em que assentou a decisão sumária reclamada,
pois aceita que “interpôs, efectivamente, o presente Recurso indicando, no
requerimento previsto no n.º 1 do artigo 75º-A da LTC, as alíneas a) e f) do
artigo 70° daquele diploma”.
Através da reclamação agora apresentada, pretende a recorrente
alterar o fundamento do recurso, afirmando que a indicação, no requerimento
através do qual o mesmo foi interposto, da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da
Lei do Tribunal Constitucional, ficou a dever-se a “lapsus calami”, pois
pretendia fundamentar o recurso na alínea b) do mesmo preceito.
Ora, o Tribunal Constitucional tem repetidamente considerado
que não é possível a convolação do tipo de recurso interposto (cfr., a título de
exemplo, os acórdãos n.ºs 232/97, 124/01, 475/01, 179/02, 468/03, 46/04 e
347/04, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Afirmou este Tribunal no acórdão n.º 89/04 (publicado no Diário
da República, II, n.º 78, de 1 de Abril de 2004, p. 5226 ss):
“[...]
O recurso das decisões judiciais para o Tribunal Constitucional interpõe-se por
meio de requerimento que, além do mais, deve conter a indicação da norma cuja
inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie (artigo
75º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro). E o âmbito do recurso é restrito à
questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada (artigo 71º da
mesma Lei n.º 28/82).
Deste modo, o requerimento de interposição limita irremediavelmente o âmbito do
recurso. Posteriormente, pode ser restringido, mas não ampliado (n.º 3 do artigo
684º do CPC, ex vi do artigo 69º da LTC).
Esta conclusão, que não sofreria dúvidas sérias face ao regime geral do processo
civil (cfr. artigo 69º da LTC), impõe-se, com uma evidência reforçada, perante o
regime específico do recurso de fiscalização concreta. Ficariam destituídas de
sentido as acrescidas exigências formais impostas ao requerimento de
interposição pelo artigo 75º-A da LTC se o âmbito do recurso pudesse,
posteriormente, ser ampliado a outras questões de constitucionalidade (ou
ilegalidade).”.
A argumentação utilizada neste acórdão, para justificar as
exigências legais quanto à indicação, pelos recorrentes, no requerimento de
interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, da norma cuja
inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie, é
inteiramente transponível para justificar as exigências legais relativas à
indicação, pelos recorrentes, no requerimento de interposição, do fundamento do
recurso.
Na verdade, do mesmo modo que é no requerimento de interposição
que se delimita o âmbito do recurso (ressalvada a possibilidade de “restringir”
o objecto inicial, tal como admite o artigo 684º, n.º 3, do Código de Processo
Civil), é também nesse momento que se delimita o fundamento do recurso. Só assim
se explica a exigência constante do n.º 1 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal
Constitucional de que no requerimento de interposição do recurso se indique “a
alínea do n.º 1 do artigo 70º ao abrigo da qual o recurso é interposto”.
Acresce que o artigo 71º, n.º 1, da Lei do Tribunal
Constitucional determina que “os recursos de decisões judiciais para o Tribunal
Constitucional são restritos à questão da inconstitucionalidade ou da
ilegalidade suscitada” (itálico aditado agora).
É pois certo que constitui ónus dos recorrentes a identificação
inequívoca dos elementos explicitados nos n.ºs 1 e 4 do artigo 75º-A da LTC, que
esse ónus deve ser cumprido no requerimento de interposição do recurso (sem
prejuízo da possibilidade de aperfeiçoamento, mediante notificação ordenada pelo
relator, nos termos previstos nos n.ºs 5 e 6 do mesmo artigo 75º-A) e, bem
assim, que é no momento da interposição do recurso que se fixa o âmbito do
recurso e que o Tribunal procede à verificação dos respectivos pressupostos
processuais (cfr. artigo 78º-A, n.º 1, da LTC).
Consequentemente, e em suma, não é admissível a possibilidade
de alteração posterior do fundamento do recurso, nem por iniciativa do Tribunal
Constitucional, nem por iniciativa dos recorrentes, como este Tribunal já
afirmou em diversas ocasiões.
5. Não tendo a reclamante impugnado a decisão sumária proferida no
que diz respeito ao recurso previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei
do Tribunal Constitucional, transitou em julgado, nesta parte, a decisão de fls.
748 e seguintes.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a
presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária reclamada, que não tomou
conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos