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Processo n.º 746/04
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
1. A. foi julgado na Relação de Lisboa mediante acusação deduzida
pelo Ministério Público e condenado, em acórdão proferido em 12 de Dezembro de
2003, pela prática em autoria material de um crime de desobediência previsto e
punível pelas disposições conjugadas do artigo 158º n.º 1 alínea a) e n.º 3 do
Código da Estrada, com referência ao artigo 348º n.º 1 alínea a) e artigo 69º
n.º 1 alínea c) ambos do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária
de 25 euros, no total de 1500 euros, e na pena acessória de 5 meses de proibição
de conduzir veículos automóveis.
Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão de 3 de
Junho de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu rejeitar o recurso 'na
vertente em que o mesmo visava a reapreciação da matéria de facto, para além dos
vícios a que alude o artigo 410º n.º 2 do Código de Processo Penal', e em
negar-lhe provimento, no restante, assim mantendo a condenação aplicada da
Relação de Lisboa.
Deste acórdão recorre o arguido para o Tribunal Constitucional em requerimento
do seguinte teor:
A., advogado, arguido no processo supra referido, notificado do acórdão final de
3 Junho 2004, vem do mesmo interpor recurso para o Venerando Tribunal
Constitucional, limitado às questões de constitucionalidade levantadas no
decurso do processo, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1.º Nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nas alegações
escritas apresentadas já neste e em requerimento avulso sobre a competência
hierárquica dos venerandos Tribunais, o ora recorrente suscitou questões de
constitucionalidade de algumas normas, como adiante se exporá, que não obtiveram
provimento, mas que abrem a via do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional que estabelece que «Cabe recurso para o Tribunal Constitucional
das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja
sido suscitada durante o processo».
2.º No requerimento sobre a questão da competência do Tribunal da Relação de
Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente escreveu que «Uma
interpretação normativa da regra consignada no citado n.º2 do artigo 15.º do
Estatuto dos Magistrados Judiciais, de modo a abranger situações como a do
recorrente, que se encontra desligado efectivamente do serviço, cria uma
excepção ao princípio do juiz natural de tal modo gritante, que viola o
princípio da igualdade perante a lei inscrito no também referido n. º 2 do
artigo 13º da Constituição»,
3.º Com a interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 15º do Estatuto dos
Magistrados Judiciais feito no douto acórdão o recorrente considera que foi
violado o princípio da igualdade do cidadão perante a lei, consignado no n.º 2
do artigo 13.º da Constituição, visto que se não justifica a existência de foro
especial para magistrados fora do serviço efectivo, sendo até que no momento da
prolação do acórdão fina1 já se encontrava apenas aposentado, por deliberação de
25.05.2004 do Conselho Superior da Magistratura, que só lhe foi comunicado
depois da data do acórdão,
4.º O recorrente pretende ainda ver apreciada a inconstitucionalidade da norma
do n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada na redacção do artigo 4.º do
Decreto-Lei n. 265-A/2001 de 28 de Setembro, emitido ao abrigo da alínea a) do
n.º 1 do artigo 198º da Constituição, sem indicação de autorização legislativa,
em violação do princípio de reserva de lei penal da Assembleia da República,
prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Constituição, que o douto acórdão
considerou existir, mas o decreto-lei omite.
5.º Igualmente deve ser apreciada a inconstitucionalidade da norma da alínea c)
do artigo 69º do Código Penal Português, na medida em que considera que foi
aplicada em violação do regime do n.º 4 do artigo 30º da Constituição, que
proíbe a atribuição de efeitos automáticos a condenações penais, sem ponderação
autónoma dos factos, questões igualmente suscitadas nas alegações de recurso e
escritas.
6º Como se sublinhou nas alegações finais escritas, da conjugação das normas
decorrentes dos artigos 394.º, 398.º, 283.º, n.º 5 e 286.º, n.º 3, do Código de
Processo Penal, tal como foram aplicadas na fase da acusação e do seu
recebimento judicial, resultam violados os princípios da lealdade processual,
igualdade de armas, direito e garantias de defesa na modalidade do acesso à
justiça, tendo sido denegada a faculdade de abertura de instrução em devido
tempo, para cujo efeito o arguido nunca foi notificado, pelo que também se
pretende ver apreciada a constitucionalidade daquelas normas, como aplicadas no
processo, com aceitação do S.T.J.
7.º Finalmente uma questão nova se apresenta agora com a prolação do douto
acórdão. Diz respeito à interpretação do n.º 3 do artigo 412º do Código de
Processo Penal feita pelo acórdão. No mínimo, era de contar com um convite do
Supremo, para efeitos da supressão do vício relacionado com os pontos de facto
incorrectamente julgados, como se entendeu que deve ser feito no Acórdão do
Tribunal Constitucional, n.º 529/2003, Processo n.º 667/2003, de 31 de Outubro
de 2003, publicado no Diário da República - II Série, n.º 290, de 17 de Dezembro
de 2003. Uma interpretação tão radical no sentido negativo, em oposição à
própria tese do Ministério Público, permite agora suscitar a questão da
inconstitucionalidade daquela norma, por violação do artigo 32.º, n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa, a qual agora se levanta e pretende ver
apreciada igualmente no presente recurso.
Termos em que se requer a admissão do presente recurso, com oportuna remessa dos
autos ao Tribunal Constitucional, para aí seguirem os ulteriores termos.
O recurso foi admitido. Neste Tribunal, o relator convidou o recorrente a
esclarecer o seguinte:
Nos recursos previstos na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, o Tribunal Constitucional tem uniformemente entendido que,
atento o princípio do pedido, é ao recorrente que cabe o ónus de enunciar a
norma acusada de inconstitucional, por forma a que o Tribunal dela possa
conhecer nos precisos limites com que foi aplicada. Nesta fase, interessará,
assim, conhecer com rigor, não tanto as razões nas quais o douto recorrente
alicerça o fundamento do seu recurso, mas exactamente a formulação normativa
aplicada no acórdão recorrido e aqui questionada.
Convido, portanto, o recorrente, nos termos do artigo 75º-A da LTC, a indicar
com precisão qual foi a interpretação normativa dos artigos 15º n. 2 do Estatuto
dos Magistrados Judiciais, 69º alínea c) do Código Penal, e 412º n. 3 do Código
de Processo Penal que o acórdão recorrido aplicou; e convido, ainda, o mesmo
recorrente a esclarecer – no mesmo prazo de 10 dias – se suscitou ou não,
perante o Tribunal recorrido, a questão de inconstitucionalidade relativa ao
aludido 412º n. 3 do Código de Processo Penal.
O recorrente veio então dizer o seguinte:
A., advogado, recorrente no processo supra referido, notificado do douto
despacho de aperfeiçoamento, de 30 de Setembro de 2004, vem responder ao convite
efectuado com base no regime do artigo 75.º-A da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional nos termos que seguem:
Enquadramento da Questão:
a. O recorrente é convidado a indicar com precisão qual foi a interpretação
normativa dos artigos 15.º, n.º 2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 69.º,
alínea c) do Código Penal Português e 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal,
que o douto acórdão recorrido aplicou e
b. Se suscitou perante o Tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade
relativa ao aludido artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O recorrente interpreta o douto despacho nos seguintes termos:
- É seu ónus indicar a formulação normativa aplicada no douto acórdão recorrido,
que questiona no recurso perante o Tribunal Constitucional, aceitando este Alto
Tribunal que relativamente aos artigos 15.º, n.º 2 do Estatuto dos Magistrados
Judiciais e 69.º, alínea c) do Código Penal a questão da inconstitucionalidade
foi suscitada nos termos legais, havendo dúvidas se o foi também quanto ao
artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Sobre a Formulação Normativa
1º No douto acórdão recorrido o Venerando Supremo Tribunal de Justiça
interpretou e aplicou a norma resultante do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos
Magistrados Judiciais no sentido de que a mesma se aplica aos magistrados
jubilados, gozando estes de foro especial, desde que a jubilação não resulte de
afastamento em procedimento disciplinar, foro que visa ainda a defesa dos
interesses da função.
2.º Pelo contrário, o recorrente entendeu e entende que ao magistrado jubilado
não se aplica o regime jurídico daquele n.º 2 do artigo 15.º, independentemente
da jubilação resultar de procedimento disciplinar ou de normal afastamento por
idade ou tempo de serviço, sob pena de violação do princípio da igualdade
perante a lei.
3º No que concerne à alínea c) n.º 1 do artigo 69,º do Código Penal Português, o
Supremo Tribunal de Justiça, interpretou e aplicou esta norma como um efeito
automático da punição principal por crime de desobediência cometido mediante
recusa de submissão às provas estabelecidas para detecção de condução de veículo
sob efeito do álcool.
4.º Quando, no modesto entender do recorrente, a mesma prevê uma segunda punição
autónoma – condenação na proibição de conduzir – que não pode constituir mero
efeito automático da punição pela conduta principal, efeito proibido
constitucionalmente.
5.º No que concerne à formulação normativa do n. °3 do artigo 412º do Código de
Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça (folhas 16 a 19 do douto acórdão)
aplicou este dispositivo legal no sentido de que a falta de indicação nas
conclusões da motivação de recurso das menções contidas nas alíneas daquele n.º
3 tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a
improcedência do recurso nessa parte, sem que ao arguido seja dada a
oportunidade de suprir tal deficiência.
Suscitação da inconstitucionalidade - artigo 412.º, n.º 3 C.P.P.
6.º Na parte final do douto despacho do M.mo Juiz Conselheiro-Relator do
Tribunal Constitucional é também o recorrente convidado a esclarecer se suscitou
ou não, perante o Tribunal recorrido, a questão da inconstitucionalidade
relativa ao artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
7.º Nos artigos 62.º a 68.º das alegações de recurso perante o Supremo Tribunal
de Justiça o recorrente impugnou a matéria de facto, pontos de facto que
considerava incorrectamente julgados em 1.ª instância e pugnou pela transcrição
das gravações pelo Tribunal. Não colocou directamente «a questão da
inconstitucionalidade relativa ao artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo
Penal», porque o teria que fazer em antecipação a uma eventual interpretação
daquele douto Tribunal, que o recorrente não poderia prever de boa fé.
8.º Só depois de conhecer a formulação normativa indicada no artigo 5.º supra é
que pôde reagir em termos de recurso constitucional. Levantou a questão no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
apresentado no Supremo Tribunal de Justiça, logicamente já depois de proferido o
douto acórdão deste.
9.º Numa primeira análise poderia parecer que a jurisprudência do Tribunal
Constitucional é avessa a aceitar este caso como verdadeiro recurso de queixa
constitucional (cfr. Acórdão de 28.06.1983, Boletim do Ministério da Justiça,
n.º 329.º, página 355), pelo facto de, em rigor, não haver uma invocação da
inconstitucionalidade 'durante o processo'. Mas a verdade é que para fazê-lo o
recorrente teria que «adivinhar» que o Tribunal interpretaria e aplicaria a
norma em causa em violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República
Portuguesa, pelo menos como parece que o entende o douto acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 405/2004, in Diário da República, II Série, n.º 172, de 23 de
Julho de 2004, que segue jurisprudência anterior.
10.º Se é certo que a inconstitucionalidade foi invocada depois de conhecido o
douto acórdão, ainda o foi antes do trânsito em julgado e não é menos certo que
é para casos como este que vale a doutrina do douto acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 370/94, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º
437.0, página 86, em cujo sumário se escreve: «Não sendo, em princípio,
possível, após a prolação da decisão final, arguir a questão da
constitucionalidade, admite-se porém, a existência de casos em que tal possa
ocorrer por se ter verificado uma situação excepcional ou anómala capaz de
justificar a dispensa da invocação do vício antes de proferida a decisão, o que
acontecerá quando o interessado haja de ser confrontado com uma aplicação da
norma tão insólita e inesperada que se torne desrazoável e inadequado exigir-lhe
um prévio juízo de prognose sobre essa aplicação».
11.º Esclarecido o ordenado na parte final do douto despacho de aperfeiçoamento,
pensa-se, com o devido respeito, que estamos em condições de admissão do recurso
também nesta parte.
12.º Quanto ao mais invocado no recurso de constitucionalidade não referido no
douto despacho-convite, julga-se que está em conformidade com as regras do
recurso constitucional e mantém-se na íntegra.
Em momento oportuno, o recorrente apresentou a sua alegação que concluiu da
seguinte forma:
1.ª Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo
204.º da Constituição).
2.ª Uma interpretação normativa como fizeram o Tribunal da Relação de Lisboa e
Supremo Tribunal de Justiça da regra consignada no citado n.º 2 do artigo 15.º,
do Estatuto dos Magistrados Judiciais, de modo a abranger situações como a do
recorrente, que se encontra desligado efectivamente do serviço, cria uma
excepção ao princípio do juiz natural de tal modo gritante, que viola o
princípio da igualdade perante a lei inscrito no n.º 2 do artigo 13.º da
Constituição.
3ª Com efeito, não justifica a existência de foro especial para Magistrados fora
do serviço efectivo, muito menos para quem já se encontrava apenas aposentado,
por deliberação de 25.05.2004 do Conselho Superior da Magistratura, de cuja
pendência o Supremo Tribunal de Justiça fora atempadamente informado.
4.ª No douto acórdão recorrido o Venerando Supremo Tribunal de Justiça
interpretou e aplicou a norma resultante do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos
Magistrados Judiciais no sentido de que a mesma se aplica aos magistrados
jubilados, gozando estes de foro especial, desde que a jubilação não resulte de
afastamento em procedimento disciplinar, foro privilegiado em face do cidadão
comum, que visa ainda a defesa dos interesses da função, fazendo errada
aplicação daquele regime especial, cuja normatividade, no caso concreto, briga
com o princípio da igualdade perante a lei.
5ª Aos magistrados jubilados ou simplesmente aposentados, como era o caso do
recorrente, não deve aplicar-se qualquer foro especial por actos ou factos da
sua vida privada, que nada contendem com o exercício de qualquer função pública,
sendo inconstitucionais as normas da lei ordinária que afastem o princípio da
igualdade perante a lei sem justificação material, por violação deste princípio,
assim sucedendo com o artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, tal
como interpretado e aplicado pelo venerando Supremo Tribunal de Justiça.
6ª O foro especial não se destina a dar mais garantias, mas também não pode
retirar garantias ao arguido, remetendo o julgamento em 1.ª instância para o
Tribunal da Relação, com recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que se
abstém de conhecer de matéria de facto, situação que não ocorreria se o
julgamento fosse efectuado em Tribunal de 1.ª instância, com recurso para a
Relação, uma vez que esta conheceria de facto e de direito.
7ª A punição por crime de desobediência, prevista no artigo 158.º do Código da
Estrada, na redacção do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de
Setembro, foi editada sem a autorização legislativa, exigida nas alíneas a) e b)
do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, pelo que se trata de norma
organicamente inconstitucional, por violação deste normativo legal e do
princípio da reserva de lei penal, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo
165.º da Lei Fundamental, devendo ser recusada a sua aplicação pelos Tribunais,
ao contrário do que fez o douto acórdão recorrido.
8ª A republicação do Código da Estrada, em anexo ao Decreto-Lei n.º 265-A/2001,
de 28 de Setembro não se limitou a republicar propriamente o Código da Estrada.
Alterou os pressupostos do normativo legal que pune como desobediência a conduta
de recusa prevista no seu artigo 158.º, sem credencial parlamentar.
9.º De acordo com o disposto no artigo 69.º, n.º1, alínea c) do Código Penal
Português, na redacção da Lei n.º 77/01, de 13 de Julho, «É condenado na
proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses
e três anos quem for punido por crime de desobediência mediante recusa de
submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção da condução de
veículo sob efeito do álcool», sendo que este normativo legal prevê uma
condenação em sentido técnico, não podendo a proibição consistir em mero
acessório do crime de desobediência ou simples consequência da condenação por
prática deste crime.
10.º O recorrente alegou perante o Supremo Tribunal de Justiça que a proibição
que lhe foi imposta não foi objecto de ponderação autónoma, em termos de
permitir uma defesa digna desse nome por parte do arguido, relativamente ao
crime de desobediência, apresentando-se como mero efeito automático da
condenação principal pela desobediência, com violação da garantia estatuída n.º
4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
11.º Ao decidir que o recorrente «terá pois que ser condenado numa pena
acessória de proibição de conduzir veículos com motor», por tê-lo sido por
desobediência, o Supremo Tribunal de Justiça fez uma aplicação normativa da
alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal Português que briga com a
proibição prevista no n.º 2 do artigo 30.º e igualmente com o n.º 1 do artigo
32.º, ambos da Constituição, liquidando quaisquer garantias de defesa dignas
desse nome, aceitando a deslealdade processual derivada da falta de acusação
pública formal do Ministério Público e do cumprimento pelo tribunal de 2.ª
instância das regras cautelares da audiência o arguido sobre essa intenção
condenatória.
12.ª Normalmente no final do inquérito, se houver elementos para o efeito, é
deduzida acusação formal, que é notificada ao acusado, informando expressamente
que pode ser requerida instrução, mas, ao invés, o M. Público requereu o
julgamento em processo sumaríssimo, em requerimento aligeirado, propondo uma
sanção, que na sua visão era a adequada ao caso.
13.ª Daí derivou que tal como foram aplicadas na fase da acusação e do seu
recebimento judicial, as normas resultantes dos artigos 394.º, 398.º, 283.º e
286,º, n,º 3 do Código de Processo Penal, foram violados os princípios da
lealdade processual, igualdade de armas, direito e garantias de defesa, com
denegação da faculdade de abertura de instrução, pelo que mal andou o Supremo ao
confirmar aquela aplicação.
14.º O recorrente indicou os suportes técnicos em que se encontra gravada a
matéria de facto e indicou expressamente nos artigos 62º a 69.º das alegações de
recurso quais os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente
julgados, requerendo expressamente no final do requerimento a transcrição da
matéria de facto supra indicada, naqueles artigos.
15.ª Poderá haver alguma falta por parte do recorrente mas nunca o incumprimento
total das exigências do dos n.º 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo
Penal, como conclui o Supremo Tribunal de Justiça.
16.ª Daí que tenha decidido erradamente e ao interpretar as normas dos n.º 3 e 4
do artigo 412º do Código de Processo Penal, no sentido de que a falta de
indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a
decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na alínea a) e, pela
forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o
não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso
nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal
deficiência, violando desse modo o disposto no artigo 32.º, n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa,
Termos em que, apreciadas as questões de inconstitucionalidade indicadas devem
as mesmas ser reconhecidas e declaradas pelo Venerando Tribunal Constitucional,
com as legal consequências.
O representante do Ministério Público neste Tribunal alegou da seguinte forma:
1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada
O presente recurso vem interposto pelo arguido A. do acórdão, proferido nos
autos, pelo Supremo Tribunal de Justiça. Aderindo inteiramente ao douto despacho
constante de fls. 352 e segs, afigura-se que efectivamente se não verificam os
pressupostos de recurso quanto às 'normas' ali identificadas.
O objecto deste restringe-se, assim, à norma constante do artigo 158°, nº 3, do
Código da Estrada, na redacção emergente do Decreto-Lei nº 265-A/01, de 28 de
Setembro, sendo nesta parte, a questão de inconstitucionalidade orgânica
suscitada manifestamente improcedente.
Na verdade, esquece o recorrente que a reforma de 2001 do Código da Estrada
deixou perfeitamente intocada a norma questionada pelo recorrente, no que
respeita à tipificação e sancionamento do ilícito penal aí previsto – e que
encontra a sua fonte na revisão, operada em 1998, no referido Código, através do
Decreto-Lei nº 2/98, de 31 de Janeiro, com base na autorização outorgada pela
Lei nº 97/97, de 23 de Agosto.
Carecendo, pois, a referida disposição penal, na versão de 2001 do Código da
Estrada, manifestamente de carácter inovatório, em nada alterando o precedente
regime legal em vigor, é manifesto que não pode a mesma estar afectada da
ficcionada 'inconstitucionalidade orgânica', sendo obviamente irrelevante a
inclusão de tal regime – sem alterações – em versão republicada do Código da
Estrada.
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 - Carecendo manifestamente de carácter inovatório, no que concerne ao tipo
penal constante do nº 3 do artigo 158° do Código da Estrada, a versão de 2001 de
tal Código, é evidente que tal norma – incluída naquele Código na revisão de
1998, na sequência de precedente e válida autorização legislativa – não padece
de inconstitucionalidade orgânica.
2- Termos em que deverá manifestamente improceder o recurso interposto, no que
respeita a tal questão.
2. A primeira questão a abordar prende-se com a determinação do
objecto do recurso.
Sobre o assunto, o recorrente foi notificado do seguinte despacho do relator:
É possível que o Tribunal decida não conhecer de parte do objecto do recurso por
entender:
a) que a questão relacionada com a alegada inconstitucionalidade do n.º 3 do
artigo 412º do Código de Processo Penal nunca foi suscitada perante o Supremo
Tribunal de Justiça, podendo e devendo tê-lo sido;
b) que a parte do recurso em que se questiona 'que tal como foram aplicadas na
fase da acusação e do seu recebimento judicial, as normas resultantes dos
artigos 394.º, 398.º, 283.º e 286,º, n.º 3 do Código de Processo Penal, foram
violados os princípios da lealdade processual, igualdade de armas, direito e
garantias de defesa, com denegação da faculdade de abertura de instrução, pelo
que mal andou o Supremo ao confirmar aquela aplicação' não traduz uma questão
normativa, pois se dirige, essencialmente, à análise crítica de decisões tomadas
no processo;
c) que a norma retirada do n. 2 do artigo 15º do Estatuto dos Magistrados
Judiciais, segundo a qual 'a mesma se aplica aos magistrados jubilados, gozando
estes de foro especial, desde que a jubilação não resulte de afastamento em
procedimento disciplinar, foro que visa ainda a defesa dos interesses da função'
não foi a verdadeira causa de decidir da decisão recorrida, na parte
correspondente;
d) que no que concerne à alínea c) n.º 1 do artigo 69,º do Código Penal, o
Supremo Tribunal de Justiça, não tenha interpretado e aplicado esta norma 'como
um efeito automático da punição principal por crime de desobediência'.
Notifique o recorrente para em 10 dias poder dizer o que se lhe oferecer sobre o
assunto.
Respondeu, dizendo:
A., advogado, recorrente processo supra referido, notificado do douto despacho
de 17 de Março de 2006, que se pronunciar sobre o eventual não conhecimento de
parte do objecto do recurso, vem expor e requerer o seguinte:
1.º - Em resposta ao douto despacho de aperfeiçoamento de 30 de Setembro de
2004, o recorrente procurou esclarecer os termos em que entendeu ter o venerando
Supremo Tribunal de Justiça tomado conhecimento, por acção ou omissão, das
questões agora colocadas no recurso para o venerando Tribunal Constitucional,
embora eventualmente o não tenha conseguido totalmente, admitindo também que não
lhe assista razão no que concerne ao levantamento das questões enumeradas no
douto despacho 17/03/2006.
2.º - Sobre a alínea a) - artigo 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal,
parece ao recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça (folhas 16 a 19 do douto
acórdão) aplicou este dispositivo legal no sentido de que a falta de indicação
nas conclusões da motivação de recurso das menções contidas nas alíneas daquele
n.º 3 tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a
improcedência do recurso nessa farte, sem que ao arguido tenha sido dada a
oportunidade de suprir tal deficiência, pelo que, com o devido respeito, parece
que o Tribunal deveria dela conhecer.
3.º - Quanto à alínea c) o recorrente sempre levantou a questão, logo no recurso
do Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se
tratou no modesto entender do recorrente do levantamento de questão de
constitucional idade concreta, decidida, senão explícita, pelo memos
implicitamente no douto acórdão.
4º - Finalmente sobre a alínea d) parece ao recorrente que o Supremo Tribunal de
Justiça aplicou a -norma da alínea c) do n.º1 do artigo 69. °do Código Penal
Português como efeito automático punição por desobediência, o que vem no
seguimento da 1.ª instância, embora se admita que a questão possa ser duvidosa.
Termos em que se requer a admissão a discussão dos pontos referidos nesta
resposta, ou, se assim se não entender, das restantes questões de
constitucionalidade suscitadas.
3.1. O recurso previsto na alínea b) do n. 1 do artigo 70º da Lei n.º
28/82 de 15 de Novembro (LTC) cabe das decisões que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, de modo
processualmente adequado, perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer – artigo 72º n.º 2 da mesma
Lei. Acontece que a questão relacionada com a inconstitucionalidade do n. 3 do
artigo 412º do Código de Processo Penal nunca foi suscitada perante o Supremo
Tribunal de Justiça. E, contrariamente ao que afirma o recorrente, deveria tê-lo
sido, desde logo face ao despacho do Relator que foi proferido nos termos do
artigo 417º n.º 6 do Código de Processo Penal e que elegeu a questão da
admissibilidade do recurso sobre a matéria de facto, como uma matéria sobre a
qual o recorrente deveria pronunciar-se.
Para além disto, cumprirá ainda salientar o seguinte: o recorrente pretende,
conforme esclareceu a convite do Tribunal, sindicar a norma, retirada do artigo
412º n.º 3 do Código de Processo Penal, aplicada pelo Supremo Tribunal de
Justiça 'no sentido de que a falta de indicação nas conclusões da motivação de
recurso das menções contidas nas alíneas daquele n.º 3 tem como efeito o não
conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso
nessa parte, sem que ao arguido seja dada a oportunidade de suprir tal
deficiência.'
Sobre esta matéria lê-se na decisão recorrida:
[...] Ainda que assim não fosse, porém, sempre seria de ter na devida
consideração o que vem posto em relevo pelo Ministério Público junto do tribunal
ora recorrido que, com razão, dá conta de que o recorrente não satisfaz as
condições impostas pelo artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal para
impugnar a matéria de facto, nomeadamente, «em parte alguma da motivação, das
conclusões ou, ainda, do resumo das conclusões, faz referência, quer aos pontos
de facto que considera incorrectamente julgados e, menos ainda, às provas que
imporiam decisão diversa, para além de referências genéricas tais como constam
da conclusão IX - Os agentes da polícia nunca deram uma ordem sob pena de
desobediência. Apenas tentaram influenciar e persuadir recorrente a fazer o
teste...»
«Em parte alguma da sua motivação destaca o recorrente os segmentos dos
depoimento prestados que se pudessem considerar em dissonância com a matéria de
facto dada como provada, não fazendo, também, qualquer referência, como lhe é
exigido, aos suportes magnéticos onde tais supostas contradições haveriam de
fundamentar-se.»
Poderia equacionar-se a hipótese de um «convite» à superação daqueles vícios,
tendo e conta a protecção ao direito de defesa, e que se trata de recurso do
arguido. [...]
E, depois de recordar a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o
assunto, concluiu:
[...] Ora, se no caso, não são apenas as conclusões que são deficientes no que
toca às exigência legais para impugnação da matéria de facto, mas a própria
motivação não passa de um ataque genérico sem as menções legais adequadas, o
«convite» não se destinaria a suprir uma mera deficiência formal das conclusões,
antes, destinar-se-ia à reformulação dos próprios termos da motivação do
recurso, o que, como se evidencia, para além de não exigido por qualquer
princípio de proporcionalidade, vai para além do exigível pelo respeito do
direito de defesa, uma vez que o arguido, assistido por defensor, não pode ser
dispensado da observância das exigências processuais mínimas se quer exercer
devidamente o seu direito ao recurso.
Por ambos os caminhos a solução é a mesma: é de rejeitar o recurso na vertente
em que versa sobre a impugnação da matéria de facto em tudo o que vai para além
do conhecimento dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal. [...]
Deste trecho se retira que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu rejeitar o
recurso quanto à matéria de facto, por um duplo fundamento. Todavia, o
recorrente não impugna o último dos motivos que conduziram o Tribunal recorrido
a tal decisão. Por essa razão se há-de entender que, mesmo que o seu recurso
quanto a esta norma pudesse vir a ser apreciado e lhe fosse dada procedência,
ainda assim se manteria esta parte da decisão recorrida por força do fundamento
autónomo de decisão que, não tendo sido questionado, permaneceria plenamente
operante.
Não pode, por isso, o Tribunal Constitucional conhecer dessa matéria.
3.2. Outra característica do recurso previsto na alínea b) do n. 1 do
artigo 70º da LTC, consiste na natureza normativa do seu âmbito e na sua
instrumentalidade: o objecto do recurso deve consistir em normas aplicadas na
decisão recorrida como razão de decidir (ratio decidendi). Não podem, em suma,
incluir-se no âmbito deste recurso, de forma directa, as decisões
jurisdicionais.
Acontece que, ao pretender sindicar decisões tomadas no processo em aplicação
pretensamente inconstitucional 'da conjugação das normas decorrentes dos artigos
394º, 398º, 283º, n.º 5 e 286º n.º 3 do Código de Processo Penal', tal como diz
na conclusão 13.ª – [Daí derivou que tal como foram aplicadas na fase da
acusação e do seu recebimento judicial, as normas resultantes dos artigos 394.º,
398.º, 283.º e 286,º, n,º 3 do Código de Processo Penal, foram violados os
princípios da lealdade processual, igualdade de armas, direito e garantias de
defesa, com denegação da faculdade de abertura de instrução, pelo que mal andou
o Supremo ao confirmar aquela aplicação] – o recorrente está a pretender
sindicar directamente decisões jurisdicionais ocorridas durante o processo,
porventura contrárias aos ditos princípios constitucionais, mas manifestamente
insindicáveis nesta sede.
Não pode, igualmente, conhecer-se desta matéria.
3.3. Pretende ainda o recorrente impugnar a conformidade constitucional
da norma retirada do n. 2 do artigo 15º do Estatuto dos Magistrados Judiciais,
segundo a qual 'a mesma se aplica aos magistrados jubilados, gozando estes de
foro especial, desde que a jubilação não resulte de afastamento em procedimento
disciplinar, foro que visa ainda a defesa dos interesses da função'; é assim que
o recorrente define a norma que pretende sindicar, e, portanto, é quanto a esta
interpretação normativa que o Tribunal deve limitar a sua análise.
Ora, pelas já faladas razões relativas à instrumentalidade do recurso previsto
na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, o Tribunal Constitucional não deve
sindicar normas aplicadas na decisão recorrida que não constituem a ratio
decidendi da decisão, ou seja, normas que não preenchem só por si o fundamento
da decisão. Ou seja: quando, na decisão recorrida, se usa uma fundamentação
plúrima, ou complexa, ou determinada por graus de valência sucessiva, cabe ao
recorrente o ónus de impugnar globalmente o fundamento normativo da decisão, por
forma a que toda a sua justificação jurídica, sendo invalidada, determine a
reformulação do aresto de acordo com o respectivo juízo de
inconstitucionalidade. Ao invés, se permanecer incólume um qualquer segmento
autónomo do fundamento da mesma decisão, é evidente que a decisão se manteria
por força do motivo não atacado.
Serve isto para dizer que, no acórdão recorrido, o fundamento determinante para
desatender a questão suscitada pelo recorrente quanto ao tribunal competente
para o julgar – no fundo, é este o problema suscitado quanto à aplicação da
norma do n.º 2 do artigo 15º do Estatuto dos Magistrados Judiciais – não tem a
ver com a norma enunciada no requerimento de recurso, mas com outra, conforme
bem resulta do seguinte trecho daquela decisão:
[...] O arguido, como se viu, encontra-se desligado do serviço para efeitos de
aposentação/jubilação, por despacho do CSM de 15/12/2003, publicado no DR de
5/1/2004.
Tal significa que só cessou as respectivas funções exactamente naquele dia
5/1/2004, tal como resulta directamente do disposto no artigo 70.º, n.º 1, b),
do EMJ.
Logo, aquando da efectivação do julgamento, em 12/12/2003, era o Tribunal da
Relação o competente para o julgamento, tal como impõe o artigo 15.º, n.º 2, do
mesmo Estatuto.
E tal competência não pode agora ser posta em causa, sabido que é que a
alteração dos factores atributivos da competência no decurso da causa, mormente
os pressupostos de facto, é em regra, irrelevante, sobretudo se tal alteração
for no sentido de retirar ao tribunal competente a competência de que dispunha
aquando da introdução do feito em juízo.
Até porque, a ser de outro modo, ficaria, em certa medida, na disponibilidade do
arguido a possibilidade de pôr em causa o princípio constitucional ínsito no
artigo 32.º, n.º 9, da Constituição, segundo o qual, nenhuma causa pode ser
subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
Daí a improcedência manifesta da excepção invocada. [...]
Temos, assim, por seguro que a dimensão normativa que fundamentou, de forma
essencial, o juízo de improcedência da questão suscitada quanto ao foro especial
de que o arguido beneficiou, não resulta de o Supremo Tribunal de Justiça ter
entendido que era de aplicar 'aos magistrados jubilados, desde que a jubilação
não resulte de afastamento em procedimento disciplinar.' Com efeito, da decisão
resulta que a razão da solução encontrada tem a ver com a regra que proíbe
retirar ao tribunal competente a competência de que dispunha aquando da
introdução do feito em juízo. Torna-se, assim, inútil – uma vez que em causa não
está a regra que visa genericamente conceder aos magistrados judiciais um foro
especial – apreciar a questão da conformidade constitucional da norma invocada
no recurso.
Com este fundamento, também se não conhecerá da alegada inconstitucionalidade
dessa norma, retirada do n.º 2 do artigo 15º do Estatuto dos Magistrados
Judiciais.
3.4. Resta, ainda, saber – dentro desta óptica de delimitação do objecto
do recurso – se, 'no que concerne à alínea c) n.º 1 do artigo 69,º do Código
Penal Português', o Supremo Tribunal de Justiça, 'interpretou e aplicou esta
norma como um efeito automático da punição principal por crime de desobediência'
cometido mediante recusa de submissão às provas estabelecidas para detecção de
condução de veículo sob efeito do álcool.
O Supremo Tribunal de Justiça, depois de recordar, sobre este assunto, os termos
em que a Relação de Lisboa emitira o seu juízo de condenação, disse:
[...] O mínimo que se pode dizer destas quantificações é que elas são
benevolentes.
Para além da densidade palpável da ilicitude, no caso traduzida por actuação a
todos os títulos censurável e veementemente inaceitável de um juiz de direito
investido na alta função de administrar Justiça em nome do Povo - para mais em
funções tão expostas e socialmente exigentes como as de juiz de círculo e,
assim, com especial obrigação de assumir comportamento irrepreensível - no seu,
no mínimo, incívico comportamento perante os agentes da autoridade em exercício
legítimo de fiscalização rodoviária, a culpa mostra-se igualmente elevada,
mormente quando aferida pelo afinco demonstrado em não assumir o crime, sem
qualquer dúvida praticado. Por isso, os 60 dias de multa fixados pela Relação,
numa moldura até 120, não pecam por excesso.
E o quantitativo diário encontrado de € 25, a representar substancialmente menos
de metade do vencimento do arguido, igualmente não se podem ter por excessivos,
sabendo-se que a pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de
punição, tem de ter como efeito o causar, pelo menos, algum desconforto se não,
mesmo, um sacrifício económico palpável, tal como defende o acórdão recorrido,
citando nomeadamente um aresto deste Supremo Tribunal relatado pelo Ex.mo
Conselheiro Carmona da Mota e que o ora relator subscreveu como 1.º Adjunto.
Em direito penal, a pena, qualquer que seja a óptica por que seja encarada,
ainda que com fins meramente preventivos, justamente porque o é, implica
sacrifício.
Por isso, tendo em conta as circunstâncias do caso, mormente os critérios dos
artigos 71.º e 47.º do Código Penal, não se mostra exagerado o quantitativo da
multa aplicada.
As mesmas considerações valem para a medida de inibição de conduzir, fixada ao
abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, e cujo limite
máximo, em, abstracto poderia ir até um ano. [...]
Da leitura desta parte da decisão não pode concluir-se que o Supremo Tribunal de
Justiça tenha aplicado a norma que o recorrente impugna.
Na verdade, ao determinar a medida de inibição de conduzir, tendo em conta o
preceito sancionador resultante da alínea c) do n.º 1 do artigo 69º do Código
Penal, o aresto recorrido procedeu à valoração do grau de culpa, da ilicitude,
das necessidades de prevenção geral e especial e de todas as demais
circunstâncias concretamente apuradas, para aplicar e graduar essa medida.
Resulta, assim, da decisão que o Supremo Tribunal de Justiça ponderou
previamente a aplicação desta sanção, tendo concluído, com fundamento na
valoração do grau de culpa, da ilicitude, das necessidades de prevenção geral e
especial e nas demais circunstâncias, ser de aplicar, com uma determinada
medida, tal sanção acessória.
Deve recordar-se que o arguido não questiona a conformidade constitucional da
norma em virtude de ela impor uma pena acessória. O que contesta é a norma por
força da qual seria imposta a aplicação automática dessa pena, ou seja, a norma
de que resultasse a imposição de uma pena não submetida à ponderação prévia do
juiz. O que não ocorreu.
Verifica-se, portanto, que o Supremo Tribunal de Justiça também não aplicou esta
norma que o recorrente acusa de inconstitucional.
4. Importa, finalmente, tratar da questão relativa à alegada
inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 3 do artigo 158.º do Código da
Estrada 'na redacção do artigo 4.º do Decreto-Lei n. 265-A/2001 de 28 de
Setembro, emitido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 198º da
Constituição, sem indicação de autorização legislativa, em violação do princípio
de reserva de lei penal da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º,
n.º 1, alínea c) da Constituição, que o douto acórdão considerou existir, mas o
decreto-lei omite'.
Trata-se de uma falsa questão.
Na verdade, a Assembleia da República autorizou o Governo, através da Lei n.º
97/97 de 23 de Agosto – editada nos termos dos artigos 164.º alínea e), 168.º
n.º 1 alíneas b), c) e d), e 169.º n.º 3 da Constituição – a proceder à revisão
do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei 114/94 de 3 de Maio,
designadamente – artigo 3º alínea d) – instituindo a 'punição como desobediência
da recusa, por condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito,
em submeter-se aos exames legais para detecção dos estados de influenciado pelo
álcool ou por substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou
psicotrópicas, e ainda dos médicos ou paramédicos que, injustificadamente, se
recusem a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar os
referidos estados'
Na sequência desta autorização parlamentar, o Governo, através do Decreto-Lei
n.º 2/98 de 3 de Janeiro, 'no uso da autorização legislativa concedida pelos
artigos 1º a 3º da Lei n.º 97/97 de 23 de Agosto, e nos termos das alíneas a) e
b) do n.º 1 do artigo 198º da Constituição' alterou o artigo 158º Código da
Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94 de 3 de Maio, que passou a ter a
seguinte redacção:
Artigo 158.º
Princípios gerais
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de
influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas
estupefacientes ou psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os demais utentes da via pública, sempre que sejam intervenientes em acidente
de trânsito.
2 - Quem praticar actos susceptíveis de falsear os resultados dos exames a que
seja sujeito não pode prevalecer-se daqueles para efeitos de prova.
3 - Quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado
de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como
estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu
consentimento nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 159.º, é punido por
desobediência.
O tipo penal criado no ordenamento jurídico pela alteração assim introduzida no
n.º 3 do artigo 158º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94
de 3 de Maio, subsistiu e manteve-se inalterado depois do Decreto-lei n.º
265-A/2001 de 28 de Setembro.
Não existe, portanto, qualquer motivo que obrigasse o governo a munir-se de
credencial parlamentar prévia para editar este último diploma, ou, para, na
sequência da sua aprovação, proceder à republicação completa do Código da
Estrada.
Na verdade, sobre problema semelhante, já o Tribunal ponderou [Acórdão n.º
340/05] o seguinte:
«[...] 7.1. Tem, desde logo, razão o Ministério Público quando alega que é
irrelevante a circunstância de ter sido alterada a numeração do “artigo de lei”
que incorpora a “norma” em causa. Com efeito, mantendo-se, como se mantém, o
enquadramento sistemático do preceito no âmbito do processo de justificação
notarial, não resulta, por simples efeito dessa renumeração do artigo, qualquer
alteração da norma que nele se contém.
7.2. Por outro lado, também as alterações de redacção a que fizemos referência
não se afiguram relevantes, parecendo resultar de mera alteração de estilo sem
aptidão para consubstanciar uma modificação do conteúdo da norma que no preceito
se contém.
7.3. Finalmente, importa considerar a alteração que se traduz em o novo preceito
- bem como o artigo 106º que o precedeu - ter passado a remeter para a pena
prevista para o crime de “falsas declarações perante oficial público”, enquanto
que o artigo 107º da versão originária do Código de 1967 remetia para a pena
prevista para o crime de “falsidade”. Vejamos.
O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107º do Código do
Notariado de 1967) continha, no Título III do Livro Segundo, um Capítulo VI -
“Das falsidades”, onde se incriminavam as “declarações falsas” e que incluía as
seguintes Secções: I - “Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de
alguns títulos do Estado”; II - “Da falsificação de escritos”; III - “Da
falsificação de selos, cunhos e marcas”; IV - “Disposição comum às secções
antecedentes deste capítulo”; V – “Dos nomes, trajos, empregos e títulos
supostos ou usurpados”; VI – “Do falso testemunho e outras falsas declarações
perante a autoridade pública”.
O Código Penal de 1982 eliminou o Capítulo antes designado por “Das falsidades”
e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nele se incluíam.
Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que - tal como os
de falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas - são considerados crimes
contra valores e interesses da vida em sociedade (Capítulo II do Título IV) e,
por outro, aqueles que são considerados “crimes contra a realização da justiça”
e como tal incluídos no Título dos “crimes contra o Estado” (Capítulo III do
Título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de
depoimento ou declarações, a que corresponde o actual artigo 359º do Código
Penal ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360º do mesmo Código,
preceito para o qual a decisão recorrida, em juízo de interpretação de direito
infra-constitucional que a este Tribunal não cabe sindicar, entendeu que o
artigo 97º do actual Código do Notariado remeteria.
Ora, integrada neste contexto, como tem de sê-lo, facilmente se percebe que –
como nota o Ministério Público na sua alegação – a diferença que, nesta parte,
se constata entre a redacção do artigo 107º do Código do Notariado de 1967 e o
artigo 97º do actual Código do Notariado – recorde-se: a substituição da
remissão para o crime de “falsidade” pela remissão para o crime de “falsas
declarações perante oficial público” - é “meramente consequencial das
modificações sistemáticas introduzidas no Código Penal”, visando simplesmente
adequar aquele preceito do Código do Notariado à nova designação e arrumação
sistemática do Código Penal de 1982.
8. Assim sendo, como efectivamente é, não se mostrando a norma contida no artigo
97º do actual Código do Notariado inovadora, nem representando qualquer
alteração face ao anterior regime, já que o seu conteúdo corresponde, nos termos
acima descritos, ao teor da que constava do artigo 107º da versão originária do
Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47619, de 31 de Março de
1967, não incorre aquela norma no vício de inconstitucionalidade orgânica.
[...]»
É, assim, insubsistente a alegação de inconstitucionalidade orgânica invocada
pelo recorrente.
5. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) não tomar conhecimento do recurso quanto à alegada inconstitucionalidade das
normas retiradas dos seguintes preceitos: n. 3 do artigo 412º do Código de
Processo Penal; artigos 394º, 398º, 283º e 286º n.º 3 do Código de Processo
Penal; n.º 2 do artigo 15º do Estatuto dos Magistrados Judiciais; e alínea c) do
n.º 1 do artigo 69º do Código Penal:
b) no mais, negar provimento ao recurso;
c) condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Artur Maurício