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Processo n.º 367/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do
disposto no n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), da decisão sumária do relator, de 24 de Abril de 2006, que decidiu, no
uso da faculdade conferida pelo n.º 1 do mesmo preceito, por considerar
“simples” a questão de constitucionalidade suscitada, uma vez que já fora
“objecto de decisão anterior do Tribunal”, negar provimento ao recurso, não
julgando inconstitucionais as normas constantes dos artigos 94.º da Lei Orgânica
da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26 de
Junho (com excepção do seu n.º 3 e do segmento do n.º 1 referente à dispensa de
serviço a pedido do militar) e 75.º do Estatuto dos Militares da Guarda
Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho (com
excepção das alíneas b) e c) do seu n.º 1).
1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
“1. A. interpôs, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da (…)
LTC, recurso do acórdão da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo
Tribunal Administrativo, de 2 de Março de 2006, pretendendo ver apreciada a
inconstitucionalidade, por violação dos princípios que se extraem dos artigos
2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 47.º, 53.º e 266.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP), das normas do artigo 94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional
Republicana, aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26 de Junho (com excepção
do seu n.º 3 e do segmento do n.º 1 referente à dispensa de serviço a pedido do
militar), e do artigo 75.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional
Republicana, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho (com excepção
das alíneas b) e c) do seu n.º 1), aduzindo ter suscitado a
inconstitucionalidade dessas normas nas alegações do recurso interposto para o
tribunal recorrido e terem as referidas normas sido já julgadas
inconstitucionais pelo Acórdão n.º 91/2001 do Tribunal Constitucional.
Acontece que esse Acórdão n.º 91/2001 foi revogado pelo Acórdão n.º 481/2001
do Plenário do Tribunal Constitucional – em recurso interposto ao abrigo do
artigo 79.º‑D, n.º 1, da LTC, com fundamento em oposição entre o decidido no
Acórdão n.º 91/2001 e o decidido nos Acórdãos n.ºs 504/2000, 505/2000 e 26/2001
–, que não julgou inconstitucionais as normas ora em causa.
O referido Acórdão n.º 481/2001 desenvolveu a seguinte argumentação:
«2 – O recurso previsto no artigo 79.º‑D da LTC cabe de decisão que julgar “a
questão de constitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do
anteriormente adoptado quanto à mesma norma” por qualquer das secções do
Tribunal.
Visa‑se com este meio impugnatório a uniformização da jurisprudência do
Tribunal Constitucional, sem prejuízo da sua revisibilidade nos termos
definidos pelo Acórdão n.º 533/99, publicado in Diário da República, II Série,
de 22 de Novembro de 1999.
No caso, é patente a divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão
fundamento (Acórdão n.º 504/2000) no ponto em que o primeiro, em contrário do
segundo, decidiu que as supra citadas normas da LOGNR e do EMGNR, enquanto
permitem a aplicação da medida de dispensa de serviço “independentemente do
cometimento de uma infracção disciplinar que a justifique e sem ser em processo
disciplinar (...) violam o princípio da proibição do excesso e (...) o direito
à segurança no emprego”.
Tal determinou que o acórdão recorrido julgasse inconstitucionais as
referidas normas e o acórdão‑fundamento, apreciando as mesmas normas também na
perspectiva da sua constitucionalidade orgânica e material, por violação do
princípio da igualdade, formulasse juízo em sentido divergente.
3 – Depois de qualificar a sanção de dispensa de serviço como sanção
estatutária, sustenta o acórdão recorrido que ela não pode ser aplicada senão
para punir uma infracção disciplinar muito grave, fundamentalmente por ser
inaceitável que, implicando a perda dos direitos à qualidade de militar da GNR,
“possa concluir‑se que o comportamento do militar indicia ‘notórios desvios dos
requisitos morais, éticos, técnico‑profissionais ou militares que lhe são
exigidos pela sua qualidade e função’ (ou seja, que o militar revela não
possuir ‘bom comportamento militar e cívico, espírito militar ou aptidão
técnico‑profissional’) – e concluir‑se em termos de justificar a aplicação de
uma sanção que afecta tão gravemente o seu estatuto profissional – sem,
previamente, se fazer prova de que ele praticou uma infracção disciplinar muito
grave”, isto, desde logo, porque a pena disciplinar de separação de serviço
previsto no artigo 28.º, alínea f), do Regulamento Disciplinar da GNR – com a
qual o acórdão de algum modo identifica a sanção em causa – só pode ser
aplicada pela prática de infracções muito graves nos termos do artigo 42.º, n.º
1, alínea c), daquele Regulamento.
Qualificando o direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53.º da
CRP – direito que seria posto em causa com a aplicação da sanção – como direito
fundamental, gozando da protecção conferida pelo artigo 18.º, n.º 2, da CRP, o
acórdão sustenta, depois, a inadmissibilidade de “uma lei que permita que,
independentemente do cometimento de uma infracção disciplinar muito grave, se
expulse da Guarda Nacional Republicana um militar que, aos olhos do seu
comandante‑geral, dê provas de ‘notórios desvios dos requisitos morais, éticos,
técnico‑profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e
função’”, lei essa que não encontraria credencial em qualquer preceito
constitucional, designadamente no artigo 270.º da CRP, a isto acrescendo o
incumprimento da exigência de que toda a restrição se deve limitar “ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
previstos”.
E conclui:
“Há‑de, pois, convir‑se que as normas legais aqui sub iudicio, ao
permitirem a aplicação da medida de dispensa do serviço independentemente do
cometimento de uma infracção disciplinar que a justifique e sem ser em processo
disciplinar, são inconstitucionais: antes de mais, porque violam o princípio da
proibição do excesso e, desse modo, o direito à segurança no emprego, consagrado
no artigo 53.º da Constituição, que dispõe que ‘é garantido aos trabalhadores a
segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por
motivos políticos ou ideológicos’.”
Esta garantia – que vale, naturalmente, também para os militares da Guarda
Nacional Republicana [sobre a aplicação da garantia da segurança no emprego aos
trabalhadores da Administração Pública – e isso são os militares da Guarda
Nacional Republicana – cf. os Acórdãos n.ºs 154/86 e 285/92 (publicados nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 7.º, tomo I, páginas 185 e
seguintes, e volume 22.º, páginas 159 e seguintes)] – significa, pelo menos,
que eles não podem ser expulsos das fileiras, salvo apurando‑se, em processo
próprio, com observância das garantias de defesa, que cometeram infracção
disciplinar de gravidade tal que torne impossível a sua manutenção ao serviço
e a sua pertença à corporação.
Ora, o acórdão‑fundamento não deixa de admitir que a sanção de dispensa de
serviço afecte o direito à segurança no emprego. Simplesmente nele se diz também
– e com razão – que “aquela medida não está conceptualizada de molde a poder‑se
concluir que a mesma é ou pode ser aplicável ad libitum, antes só o podendo ser
se ocorrerem causas precisas, indicadas nas normas em questão”.
E acrescenta-se:
“Na verdade, como aliás se escreveu no acórdão ora sub iudicio, o militar
da Guarda Nacional Republicana só será abatido aos respectivos quadros após se
ter concluído, em processo próprio, que não reúne as condições essenciais para
o exercício das respectivas funções, sendo que, pela natureza das suas
atribuições e pelo modelo de organização daquele corpo especial de tropas, são
de exigir dos seus militares condições especiais de permanente aptidão física,
psíquica e psicológica, comportamentos pautados por estritos rigores éticos de
coesão interna e acentuado espírito de disciplina, condições e comportamentos
estes que, a não serem seguidos, são justificativos da não manutenção efectiva
da acima indicada ‘relação laboral’.
Não poderá, desta sorte, equiparar‑se a medida de dispensa de serviço a um
caso de despedimento sem justa causa.
A exigência de uma causa adequada à cessação da efectiva ‘relação laboral’
e a exigência de um processo que assegure plenamente garantias de defesa em
relação ao militar está amplamente consagrada nas normas em apreciação.”
Isto mesmo se repete no Acórdão n.º 26/2001, quando nele se diz:
“Não se afigura forçado admitir que a medida de dispensa do serviço ponha
em causa a segurança no emprego. Simplesmente, o que parece claro, face ao
disposto nas referidas normas do EMGNR93 e da LOGNR, é que ela não é aplicável
sem que se verifiquem as condições nelas previstas, embora com a utilização de
conceitos indeterminados. O tipo de funções que o militar da GNR exerce,
enquadrado num modelo organizacional próprio, exige que a esse militar se
imponham especiais condições de aptidão física e psíquica e a observância de
rigorosos padrões comportamentais e éticos, sem os quais se não pode deixar de
justificar a quebra do ‘vínculo laboral’. E é precisamente a falta dessas
condições e desses requisitos que as normas em causa prevêem como justificativas
da imposição da medida.
No caso, pois, existindo uma causa adequada à cessação da ‘relação laboral’,
não é legítima a identificação da dispensa de serviço com observância do
disposto nas citadas normas com um despedimento sem justa causa, sendo ainda
certo que no processo em que a medida é aplicada se asseguram ‘todas as
garantias de defesa’ (artigo 94.º, n.º 2, da LOGNR93).”
De facto, para além de a sanção só poder ser aplicada em processo próprio
(mesmo o acórdão recorrido não deixa de aceitar que ele seja um “processo
disciplinar especial” quando nele se considera “não se contesta(r) que o
‘processo próprio de dispensa de serviço’ cumpra as funções do processo
disciplinar”) com todas as garantias de defesa – e o processo concretamente em
causa revela‑o de modo claro – ela assenta sempre em factos concretos, por força
do artigo 75.º, n.º 2, do EMGNR, cuja inegável gravidade resulta da
circunstância de eles revelarem um “comportamento (...) incompatível com a
condição de ‘soldado da lei’” ou que o sancionado não possui ‘bom comportamento
militar e cívico’, ou ‘espírito militar’ ou ‘aptidão técnico‑profissional’ (n.º
1 do citado artigo 75.º).
Não é assim lícito concluir, como se faz no acórdão recorrido, que a
sanção pode ser imposta a infracções que se não revelem muito graves, pedra
angular e decisiva (até, como se disse, pelo facto de se aceitar que o processo
em que se aplica a sanção não deixa de ser um processo disciplinar especial) na
fundamentação do julgamento de inconstitucionalidade.
Especificamente sobre a violação do princípio da proporcionalidade (o
acórdão recorrido aprecia a questão na vertente da “proibição do excesso”),
escreveu‑se no acórdão‑fundamento:
“5 – Refira‑se, por último, que se não lobriga que a consagração legal da
medida de dispensa de serviço se revele, em si, desproporcionada quando estejam
em causa comportamentos que, objectivamente, são de considerar acentuadamente
graves, como é o caso daquele que foi prosseguido pelo recorrente e que ditaram
a aplicação da medida na vertente situação.
Efectivamente, como já se assinalou acima, muito embora essa medida acarrete
uma cessação do efectivo desempenho de uma ‘relação laboral’, não deixará de se
reconhecer que os pressupostos de facto que legalmente são estipulados para que
a mesma seja tomada são de tal monta que, para um corpo especial de tropas tal
como a Guarda Nacional Republicana, com as características a que já se fez
alusão, seria inexigível a manutenção ao serviço de militares que adoptaram
comportamentos indiciadores de notórios desvios dos requisitos morais, éticos,
técnico‑profissionais ou militares que têm de ser apanágio do respectivo
desempenho de serviço, sob pena de não poderem ser prosseguidos os objectivos
cometidos àquele corpo especial de tropas.”
A conclusão não poderia ser outra, aceite – como se aceitou – que os
factos que justificam a aplicação da medida são necessariamente de acentuada ou
muita gravidade, em contrário do que se decidiu no acórdão recorrido.
O mesmo aliás se entendeu no Acórdão n.º 26/2001, quando nele se afirma:
“E também se não vislumbra que a medida de dispensa do serviço seja
desproporcionada ou viole o princípio da proporcionalidade.
Com efeito, pelo que se deixou dito quanto às funções que a GNR exerce e
tendo em conta os objectivos cometidos a este corpo especial de tropas, não se
vê até como a verificação dos pressupostos de facto legalmente previstos para a
aplicação da medida – designadamente os que no caso ocorreram –, não
preenchendo o militar da GNR as condições previstas nos artigos 94.º, n.º 2, da
LOGNR93 e 75.º, n.º 1, do EMGNR93, pudesse permitir a continuação desse militar
ao serviço; não há, assim, qualquer inadequação entre a medida de dispensa do
serviço e a gravidade da conduta a que ela corresponde.”
A este entendimento intenta o acórdão recorrido responder, com o apoio na
tese seguida no Acórdão n.º 666/94, in Acórdãos do Tribunal Constitucional,
29.º vol., pág. 349, argumentando que, em tal conformidade, violado seria o
princípio da determinabilidade das leis, nos seguintes termos:
“Há‑de convir‑se, no entanto, que, ao mandar aplicar a medida de dispensa
de serviço a ‘factos que levam à invocação da falta’ de ‘bom comportamento
moral e cívico’, de ‘espírito militar’ ou de ‘aptidão técnico‑profissional’
(cf. os n.ºs 1 e 2 do citado artigo 75.º) – é dizer: que levam à conclusão de
que ‘o comportamento do militar’ indicia ‘notórios desvios dos requisitos
morais, éticos, técnico‑profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua
qualidade e função’ (cf. o n.º 2 do mencionado artigo 94.º) –, as normas sub
iudicio não cumprem aquele mínimo de determinabilidade que é de exigir a normas
legais que prevejam a aplicação de penas disciplinares expulsivas. E, desse
modo, tais normas violam o princípio que se extrai das disposições conjugadas
dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 47.º, 53.º e 266.º da Constituição,
que o Acórdão n.º 666/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 29.º,
pág. 349) enunciou como segue: ‘as normas de direito disciplinar que prevejam
medidas expulsivas [...] têm que conter um grau de precisão tal que permita
identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar‑se’.
Nesse Acórdão n.º 666/94, o Tribunal recordou a jurisprudência da Comissão
Constitucional sobre a matéria e citou o Acórdão n.º 282/86, no qual se
sublinhara que, ‘quando as penas envolvidas implicarem a privação ou restrição
de um direito fundamental’, ‘as regras constitucionais que condicionam e
limitam tais restrições – designadamente o princípio da proporcionalidade
(artigo 18.º, n.º 2) – implicam que tais penas só sejam previstas para situações
que justifiquem a sua gravidade’. E, depois de referir que a regra da
tipicidade das infracções só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois
as suas exigências fazem‑se sentir em menor grau no domínio do direito
disciplinar, em que as infracções não têm que ser inteiramente tipificadas,
acrescentou o aresto:
‘Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos‑funcionários
incluídos) podem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se
trate de prever penas disciplinares expulsivas – penas, cuja aplicação vai
afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo político
(garantidos pelo artigo 47.º, n.ºs 1 e 2) ou a segurança no emprego (protegida
pelo artigo 53.º) –, as normas legais têm que conter um mínimo de
determinabilidade. Ou seja: hão‑de revestir um grau de precisão tal que permita
identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa
espécie de penas – o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos
princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar‑se às
condutas cuja gravidade o justifique (cf. o artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição).
No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam
penas expulsivas têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, que ser
normas delimitadoras.
É que a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem
jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da
dignidade da pessoa humana – pessoa que é o princípio e o fim do poder e das
instituições (artigos 2.º e 266.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição).’
As normas sub iudicio, mandando aplicar a medida de dispensa de serviço a
comportamentos que indiciem ‘notórios desvios dos requisitos morais, éticos,
técnico‑profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e
função’ (artigo 94.º, n.º 2) – é dizer: a factos que levem ‘à invocação de
falta’ de ‘bom comportamento militar e cívico’, de ‘espírito militar’ ou de
‘aptidão técnico‑profissional’ – não fornecem, pois, à entidade com competência
para aplicar tal medida ‘um critério de decisão que lhe permita agir com
segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante’, do
mesmo modo que ‘não possibilitam, em termos razoáveis, o controlo judicial das
decisões assim tomadas – o que tudo significa que não defendem os seus
destinatários contra o arbítrio’ (as palavras são do citado Acórdão n.º 666/94).
Não cumprindo tais normas, em termos razoáveis, a função de garantia, elas
são inconstitucionais, por violação do princípio que atrás se indicou.”
Mas sem razão.
Em primeiro lugar, deve salientar‑se que a norma que estava em causa no
citado Acórdão n.º 666/94 era, no ponto que interessa, substancialmente
diferente da que agora nos ocupa.
Tratava‑se, com efeito, de norma contida num preceito do Regulamento
Disciplinar aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, aprovado pelo
Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, que dispunha o seguinte: “As infracções não
especificadas nos artigos antecedentes são punidas do mesmo modo e em proporção
da sua gravidade ou do dano por elas causado.”
E poderia, aí sem esforço, reconhecer‑se um tipo totalmente aberto de
infracção disciplinar em que a própria pena a aplicar ficava na
discricionariedade do órgão competente para punir.
Não é o que acontece no caso em que a sanção está determinada e as
condutas a ela sujeitas se reportam a deveres funcionais concreta e
exaustivamente estabelecidos no EMGNR.
É o que, aliás, se diz, com inteira pertinência, no voto de vencida da Ex.ma
Cons.ª Maria dos Prazeres Beleza exarado no acórdão recorrido, chamando em
particular a atenção para preceitos sancionatórios do Estatuto Disciplinar dos
Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local:
“Pelo que toca à questão da não observância do ‘mínimo de
determinabilidade’ que seria de exigir à norma legal em apreciação, importa ter
presente que não pode efectuar‑se uma leitura isolada do n.º 2 do artigo 94.º,
como se tal preceito não devesse conjugar‑se com as normas que, no Estatuto dos
Militares da Guarda Nacional Republicana, estabelecem os deveres fundamentais
dos respectivos militares (cf., em particular, a alínea m) do seu artigo 14.º).
Lembre‑se, aliás, que o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local permite a aplicação da pena disciplinar
de aposentação compulsiva perante ‘infracções que inviabilizarem a manutenção
da relação funcional’ (n.º 1 do artigo 26.º), ‘em caso de comprovada
incompetência profissional ou falta de idoneidade moral para o exercício das
funções’ (n.º 3 do artigo 26.º).”
Não falta, pois, às normas em causa aquele mínimo de determinabilidade que
as faria incorrer em violação do princípio invocado no acórdão recorrido, sendo
certo que a caracterização do ilícito disciplinar, de modo a desejavelmente
poder abranger uma multiplicidade de condutas censuráveis, exige, por vezes, o
uso de conceitos indeterminados na definição do tipo.
Não é assim de sufragar a tese do acórdão recorrido quanto ao juízo de
inconstitucionalidade, que nele se faz, e de acolher o que se decidiu, sobre a
mesma matéria, no Acórdão n.º 504/2000.
4 – Como se disse, o acórdão recorrido não aprecia a questão das invocadas
inconstitucionalidades, material (por violação do princípio da igualdade) e
orgânica, das normas em causa, sendo certo que, nas suas contra‑alegações, o
ora recorrido continua a defender que tais inconstitucionalidades se
verificam no caso.
Fê‑lo, porém, o acórdão‑fundamento nos seguintes termos:
“2.1. Que os aludidos artigos 94.º e 75.º não podem, de todo em todo, ser
considerados como algo respeitante às bases do regime e âmbito da função pública
(cf., por entre outros, e no tocante ao que deve ser entendido em tal conceito,
o Acórdão deste Tribunal n.º 154/86, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 7.º volume, págs. 185 a 218), é circunstância que se não pode
pôr em dúvida.
De outro lado, parece que sempre se imporia saber se aqueles normativos
respeitam, como defende o recorrente, a matéria disciplinar, e isto sem se
entrar, desde já, no problema de saber se, mesmo a dar‑se resposta afirmativa
àquela questão, ainda assim, por se tratar, nessa hipótese, de uma medida
disciplinar que seria específica de um determinado grupo de agentes do Estado
(cf., no sentido de que os militares e agentes militarizados são de considerar
como agentes do Estado, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, pág. 949), a edição legislativa
referente aos mesmos normativos haveria de ser submetida aos ditames
constitucionalmente impostos para o regime geral de punição das infracções
disciplinares.
A jurisprudência tomada pelo Supremo Tribunal Administrativo, de que é
exemplo o acórdão impugnado e que daquela se faz eco, tem sustentado, sem
discrepâncias, que a medida de dispensa do serviço é uma medida de natureza
estatutária que se não confunde com qualquer pena disciplinar.
Também essa postura foi defendida no Parecer exarado pela
Procuradoria‑Geral da República no Proc. n.º 54/79 e que se encontra publicado
no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 292, págs. 148 a 158, relativamente a
uma medida de conteúdo semelhante à ora em apreço, constante do Regulamento de
Disciplina Militar aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 142/77, de 9 de Abril, e
interpretada autenticamente pelo Decreto‑Lei n.º 203/78, de 24 de Julho.
Não se poderá, porém, como faz o acórdão recorrido, dizer expressamente que
o mesmo foi defendido no Parecer da Comissão Constitucional n.º 32/79 (in
Pareceres da Comissão Constitucional, 10.º volume, págs. 81 a 196).
É que, muito embora neste último Parecer se dissesse, por entre o mais, que,
‘... na verdade, a natureza autónoma das medidas estatutárias, com fundamentos
e fins diversos dos das penas disciplinares, torna aquelas independentes da
extinção, quer do procedimento disciplinar, quer do criminal; são realidades
que nada lhes dizem e que se movem em campos diferentes, não se chocando entre
si’, também se aceitava ‘que a constitucionalidade das medidas estatutárias
possa ser discutida’, mas que, simplesmente, isso teria de ser posto à luz do
Regulamento de Disciplina Militar, corte normativa que, então, estava fora do
objecto daquele Parecer.
Convém‑se que, de um ponto de vista lógico‑jurídico e, até, não afastando a
perspectiva constitucional, se apresenta como um caminho cheio de escolhos a
questão de se afirmar, sem mais, que a denominada sanção estatutária representa
uma realidade diferente das sanções disciplinares (para maiores desenvolvimento,
cf. o voto de vencido aposto ao mencionado Parecer da Comissão Constitucional
pelo vogal Cons. Luís Nunes de Almeida, no qual se defendeu que o que
caracteriza as sanções estatutárias ‘não é o tipo de infracção que ela visa
punir, nem o processo conducente à respectiva aplicação, nem a entidade que a
pode aplicar’, mas sim o facto de ela ‘«afectar a situação jurídica» do agente,
«atingindo-o como tal»; isto é, uma certa sanção é sempre estatutária desde que
afecte o estatuto profissional do agente, desde que o atinja «na sua carreira
profissional ou situação funcional, modificando-as em seu prejuízo»’).
Mas, mesmo que se concluísse que as denominadas sanções estatutárias
haveriam de ser entendidas como sanções disciplinares, ao menos para efeitos do
seu tratamento constitucional, nem por isso se haveria de seguir
inelutavelmente à conclusão a que chega o recorrente.
2.2. De facto, esgrime este com a circunstância de as normas em apreciação
terem sido editadas por diplomas governamentais que não foram precedidos de
autorização concedida pela Assembleia da República.
É que, mesmo aceitando que a matéria regulada nos artigos 94.º da Lei
Orgânica da Guarda Nacional Republicana e 75.º do Estatuto dos Militares da
Guarda Nacional Republicana dissesse respeito a matéria disciplinar (e
continuando a pôr de remissa o problema acima focado) ou a matéria conexionada
com direitos, liberdades e garantias (enquanto criadores de situações que podem
ser vistas como afectando a carreira ou situação profissional dos militares da
Guarda Nacional Republicana e, por isso, com ligação à própria segurança no
emprego), o que se torna nítido é que a medida de dispensa de serviço ali
estatuída não é algo de inovatoriamente consagrado.
Na realidade, uma tal medida, com um figurino em tudo semelhante,
encontrava‑se já prevista no Regulamento de Disciplina Militar e com reporte ao
Decreto-Lei n.º 203/78 – um e outro editados pelo órgão então dotado de poderes
constitucionais para tanto – Regulamento esse que veio a ser aplicável aos
militares da Guarda Nacional Republicana (cf. n.º 1 do artigo 69.º e n.º 1 do
artigo 32.º, ambos da Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro, artigos 2.º, alínea e),
e 16.º, estes da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho; hoje em dia, contudo, após a
entrada em vigor da Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, aquele corpo especial de
tropas ficou dotado de um regulamento de disciplina próprio). Justamente por
isso, ou seja, porque essa medida já lhes era aplicável, se explicitou no
Decreto‑Lei n.º 333/83, de 14 de Julho, ao sistematizar as normas referentes à
orgânica da Guarda Nacional Republicana, que o militar do quadro permanente da
Guarda Nacional Republicana no activo ou na efectividade de serviço que não
convenha ao serviço ou ainda por razões de ordem moral, física, militar e
técnico-profissional poderá ser dispensado do serviço ou passar às situações de
reserva, reforma ou separado do serviço, após o apuramento processual dos
factos (cf. artigo 70.º, n.º 1), sendo uma tal decisão da competência do
comandante‑geral, mediante parecer favorável do Conselho Superior da Guarda (n.º
2 do mesmo artigo).
Não se pode, assim, dizer que a medida a que se reportam as normas em causa
trouxe, relativamente aos militares da Guarda Nacional Republicana, algo de
novo ou, se se quiser, lhes impôs uma medida à qual não estavam anteriormente
sujeitos, ou se inovou, com carácter interpretativo ou integrativo ou
conferindo uma acrescida e qualificada dimensão de natureza substantiva quanto à
respectiva natureza, quanto às linhas rectoras do procedimento conducente à sua
aplicação (cf., sobre o ponto, por entre outros, o Acórdão deste Tribunal n.º
174/93, nomeadamente o seu ponto 6.2., publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 24.º volume, págs. 57 a 164).”
E, especificamente, sobre a alegada violação do princípio da igualdade,
escreveu-se no mesmo acórdão:
“4. Sustenta ainda o recorrente que a consagração da medida em análise
viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, pois
que, não havendo diferença ‘quanto à sua missão nem quanto à sua tutela entre a
força de segurança GNR e a força de segurança PSP’, não se justificaria que os
membros da primeira estivessem sujeitos à medida, enquanto os não estavam os da
segunda.
No que concerne ao princípio da igualdade, é já muito abundante a
jurisprudência deste Tribunal. Citam‑se, assim, a título exemplificativo, os
Acórdãos n.ºs 186/90, 330/93, 335/94 e 565/96 (publicados na 2.ª Série do Diário
da República de, respectivamente, 12 de Setembro de 1990, 30 de Julho de 1993,
30 de Agosto de 1994 e 16 de Maio de 1996), de onde se pode extrair que o
princípio da igualdade postula que se dê tratamento igual a situações de facto
essencialmente iguais e tratamento diverso a situações de facto desiguais.
O princípio da igualdade não proíbe a diversidade de tratamento. O que veda
é o estabelecimento de distinções sem fundamento racional e objectivo, ditadas
pela irrazoabilidade e, logo, pelo mero arbítrio (parafraseando Vieira de
Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, pág. 299, o que
importa ‘é que não se discrimine para discriminar’).
Por isso, impõe‑se – para apurar se o princípio da igualdade é violado
quando se está perante soluções legislativas que regulam de forma diversa
situações que, prima facie, podiam merecer o mesmo tratamento – saber se o
legislador, ao adoptar essa solução, no exercício da sua liberdade de
conformação, foi informado por situações de facto que reclamam diversos
tratamentos, que parametrizados finalisticamente, encontram razoabilidade e
adequação na respectiva consagração.
Em face destas considerações, há que reconhecer que são profundas as
diferenças entre as forças de segurança Guarda Nacional Republicana e Polícia
de Segurança Pública.
A primeira é, seguramente, uma força de segurança que, como deflui do artigo
1.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, é constituída por militares
organizados num corpo especial de tropas, tem dependência do Ministro da Defesa
Nacional, no que respeita à uniformização e normalização da disciplina militar,
do armamento e do equipamento, pode ser colocada na dependência operacional do
Chefe do Estado‑Maior‑General das Forças Armadas em caso de guerra ou em
situação de crise (cf. artigo 9.º da mesma Lei Orgânica), está subordinada a
princípios de comando e os seus militares estão sujeitos a aquartelamento e
enquadramento hierárquico muito próximo do das Forças Armadas. Estas
características aproximam, pois, os militares da Guarda Nacional Republicana e a
respectiva organização daqueloutras típicas da instituição militar (cf., quanto
a estas, o Acórdão deste Tribunal n.º 103/87, nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 9.º volume, págs. 83 a 182).
O mesmo se não passa com a Polícia de Segurança Pública, acerca da qual se
não pode dizer, como o recorrente diz, que dela fazem parte ‘agentes
militarizados’ dessa força de segurança que, por o serem, ou melhor, não
obstante o serem, não estão sujeitos a medida idêntica à sub specie (o
recorrente alude ainda a que os militares das Forças Armadas não estão também
sujeitos a tal medida, o que, viu‑se já, não corresponde à realidade); por outro
lado, não se pode sustentar que esta força de segurança seja uma força de
segurança militar, pois que, indubitavelmente, está organizada e hierarquizada
em termos acentuadamente diversos reportadamente à Guarda Nacional
Republicana.
As características que informam esta Guarda e a aproximam da instituição
militar, ao que há que aditar, além disso, o que foi referido numa parte do
quarto parágrafo do antecedente ponto 3., constituem, desta arte, todo um
condicionalismo que deverá ser considerado como suporte bastante para que se
conclua que não se apresenta irrazoável ou desprovida de fundamento racional
(ou seja, que se não apresente como arbitrária) a solução consistente na
adopção da medida de dispensa do serviço em relação aos militares da Guarda
Nacional Republicana (à semelhança do que existe para os militares das Forças
Armadas) e que, relativamente aos membros da Polícia de Segurança Pública, uma
medida de idêntico jaez não tenha consagração.
Não se vislumbra, por isso, violação do princípio da igualdade.”
Ora, nada o recorrido adianta nas suas contra‑alegações que leve o Plenário
a não sufragar, sem necessidade de outras considerações, o decidido no
acórdão‑fundamento, que, de resto, foi igualmente seguido no Acórdão n.º
26/2001.»
A orientação definida neste Acórdão do Plenário n.º 481/2001 (rectificado
pelo Acórdão n.º 491/2001) foi posteriormente seguida no Acórdão n.º 235/2002
(todos com texto integral disponível em www.tribunalconstitucional.pt; o
primeiro publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51.º vol., pág. 381;
e os primeiro e segundo publicados no Diário da República, II Série, n.º 21, de
25 de Janeiro de 2002, págs. 1613 e 1617, respectivamente).
É essa orientação que ora se reitera através da prolação da presente
decisão sumária, admissível, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC, por
se tratar de «questão simples», uma vez que já foi «objecto de decisão anterior
do Tribunal».
2. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo
78.º‑A da LTC:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 94.º da Lei
Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 231/93,
de 26 de Junho (com excepção do seu n.º 3 e do segmento do n.º 1 referente à
dispensa de serviço a pedido do militar) e 75.º do Estatuto dos Militares da
Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de
Julho (com excepção das alíneas b) e c) do seu n.º 1); e, consequentemente:
b) Negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido, na parte
impugnada.”
1.2. A reclamação do recorrente apresenta a seguinte
fundamentação:
“I – Questão prévia:
Gostaria de começar por uma citação: «Num momento em que o Direito se interroga,
também ele, perante a instabilidade dos valores e a celeridade dos dinamismos
sociais, é ao julgador que há‑de pedir‑se, num compromisso de expressão cultural
e ética, que vislumbre, na ligação do direito à vida, a marca da justiça, que,
legitimando a autoridade daquele, faça surgir, em cada caso, a silhueta da
gente. Só assim parece poder hoje entender‑se o direito e viver‑se, de forma
apaixonada, a tarefa da sua aplicação», Laborinho Lúcio, Sobre a aplicação do
Direito.
Desde logo, o reclamante entende que a questão não é simples, como já o
reconheceu o Tribunal Constitucional e se tentará demonstrar nas considerações
seguintes. Os votos de vencidos do Acórdão n.º 481/2001 e o Acórdão n.º 91/2001
do Tribunal Constitucional muitas sombras de dúvida devem pôr sobre tantas
certezas. Há razões muito poderosas que não se podem ignorar e até novas
alterações legislativas com a entrada em vigor do Regulamento de Disciplina da
GNR que devem ser apreciadas.
Na verdade, no douto Acórdão n.º 504/2000, de 28 de Novembro de 2000,
escreveu‑se:
«Não se poderá, porém, como faz o acórdão recorrido, dizer expressamente que o
mesmo foi defendido no Parecer da Comissão Constitucional n.º 32/79 (in
Pareceres da Comissão Constitucional, 10.º vol., pp. 81-196).
(…)
Convém‑se que, de um ponto de vista lógico‑jurídico e, até, não afastando a
perspectiva constitucional, se apresenta como um caminho cheio de escolhos a
questão de se afirmar, sem mais, que a denominada sanção estatutária representa
uma realidade diferente das sanções disciplinares (para maiores
desenvolvimentos, cf. o voto de vencido aposto ao mencionado Parecer da Comissão
Constitucional pelo vogal Conselheiro Luís Nunes de Almeida, no qual se defendeu
que o que caracteriza as sanções estatutárias ‘não é o tipo de infracção que ela
visa punir nem o processo conducente à respectiva aplicação, nem a entidade que
a pode aplicar’, mas sim o facto de ela ‘«afectar a situação jurídica» do
agente, «atingindo‑o como tal»; isto é, uma certa sanção é sempre estatutária
desde que afecte o estatuto profissional do agente, desde que o atinja «na sua
carreira profissional ou situação funcional, modificando‑as em seu
prejuízo»’).»
Estas mesmas afirmações voltaram a ser repetidas no Acórdão n.º 481/2001, de 13
de Novembro de 2001, do Plenário do Tribunal Constitucional.
Diga‑se em abono da verdade que aquelas afirmações não foram truncadas na
decisão reclamada, mas também não mereceram qualquer ponderação e delas não se
tiraram as devidas consequências.
Bastavam estas ponderadas considerações para admitir, ao contrário do que consta
da decisão reclamada, que, no caso dos autos, não seria admissível a prolação de
decisão sumária nos termos do artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC, sem, ao menos, se
assegurar o contraditório nos termos do artigo 3.º do CPC.
Também não é totalmente correcto afirmar-se que o thema decidendi já foi objecto
de decisão anterior do Tribunal, com a orientação reiterada na decisão
reclamada.
O Acórdão n.º 91/2001 foi revogado pelo Acórdão n.º 481/2001 do plenário do
Tribunal Constitucional em recurso interposto ao abrigo do artigo 79.º‑D, n.º 1,
da LTC. Mas qual é a decisão mais justa e que deve ser mantida no futuro e nos
presentes autos? Muitas dúvidas continuam a existir, como bem demonstram os
votos de vencidos que tem o acórdão e as próprias transcrições feitas.
Um dos argumentos invocados na decisão reclamada – transcrita do Acórdão n.º
481/2001 do Tribunal Constitucional – é a postura defendida no Parecer da
Procuradoria‑Geral da República no processo n.º 54/79 e que se encontra
publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 292, pp. 148 a 158,
relativamente a uma medida de conteúdo semelhante à ora em apreço, constante do
Regulamento de Disciplina Militar aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 142/77, de 9 de
Abril, e interpretada autenticamente pelo Decreto‑Lei n.º 203/78, de 24 de
Julho, e que adiante se analisará com mais pormenores.
O reclamante lembra que, relacionado, em parte, com este tema, já foi emitido um
novo Parecer da Procuradoria‑Geral da República, com o n.º 100/2001, de 27 de
Setembro de 2001, publicado no Diário da República, n.º 141, II Série, de 21 de
Junho de 2002, datado, portanto, depois do Acórdão n.º 91/2001, que declarou a
inconstitucionalidade das normas dos artigos 94.º, n.º 2, da Lei Orgânica e 75.º
do Estatuto dos Militares da GNR.
E qual foi o motivo da emissão deste parecer? Na génese do pedido do parecer
está um parecer da Auditoria Jurídica do Ministério da Administração Interna em
que se alude às consequências da alteração do regime legal das sanções
estatutárias passíveis de serem aplicadas aos militares da GNR, levantando uma
série de novas questões, tendo em conta que, por um lado, o actual Regulamento
de Disciplina da GNR, aprovado pela Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, deixou de
efectuar a remissão directa da matéria para o Regulamento de Disciplina Militar
(onde a questão surge mais clarificada por efeito das normas interpretativas do
Decreto‑Lei n.º 203/78, de 24 de Julho).
A Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, que aprovou o Regulamento de Disciplina da
GNR, veio estatuir no seu artigo 2.º: «Com a entrada em vigor do Regulamento de
Disciplina referido no artigo anterior, ficam revogadas as disposições legais e
regulamentares na parte em que prevêem ou determinam a aplicação do Regulamento
de Disciplina Militar (RDM) aos militares da Guarda Nacional Republicana».
Não é difícil conceber como razão justificativa da referida norma revogatória o
facto de o legislador ter instituído, pela primeira vez, um complexo normativo
que, de modo sistemático e tanto quanto possível completo, defina os princípios,
tipos de infracção e trâmites procedimentais especialmente aplicáveis aos
militares da GNR em matéria da acção e exercício do poder disciplinar.
A definição de um regime disciplinar especial para o corpo de militares da
Guarda afasta necessariamente, quanto a esse universo de destinatários, o
recurso à lei geral em matéria de disciplina militar, pelo que a norma da artigo
2.º da Lei n.º 145/99, ao efectuar a revogação das disposições avulsas que
remetiam para o Regulamento de Disciplina Militar, não é mais do que uma
aplicação concreta do princípio segundo o qual lei especial nova derroga sempre
a lei geral.
E pode afirmar‑se sem sombra de dúvidas e com coragem que a norma constante do
artigo 94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo
Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26 de Junho (com excepção do n.º 3 e do segmento do
n.º 1 referente à dispensa do serviço a pedido do militar) e a que consta do
artigo 75.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (aprovado
pelo Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho), com as excepções das alíneas b) e
c) do seu n.º 1, são inconstitucionais: elas violam o princípio que se extrai
dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 10, 47.º, 53.º e 266.º
da Constituição.
Sem prescindir, poderá levar‑se a afirmação mais longe e defender‑se que a norma
constante do artigo 94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana,
aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26 de Junho (com excepção do n.º 3 e do
segmento do n.º 1 referente à dispensa do serviço a pedido do militar), e a que
consta do artigo 75.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana
(aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho), com as excepções das
alíneas b) e c) do seu n.º 1, se encontra tacitamente revogada ou só pode ser
aplicada em conjugação com o disposto no artigo 59.º do Regulamento de
Disciplina da GNR, que dispõe: «Os militares da Guarda que, estando na 4.ª
classe de comportamento, cometam infracção grave, como tal punida, serão objecto
de apreciação com vista à eventual aplicação da medida estatutária (sublinhado
nosso) de dispensa do serviço».
É um preceito novo que restringe o âmbito de aplicação da medida estatutária,
prevista anteriormente nos citados artigos 94.º e 73.º. Este artigo estabelece a
possibilidade de aplicação da medida estatutária, mas somente com determinados
pressupostos e em determinadas circunstâncias. Há agora uma interpretação dita
autêntica, algo semelhante à que constava do Decreto‑Lei n.º 203/78, de 24 de
Julho.
Ponderosas razões, tanto puramente textuais como de coerência e rigor, avalizam
esta interpretação no sentido com que devem ser aplicadas as medidas
estatutárias.
O novo Regulamento Disciplinar reforça esta argumentação. O RDM (artigos 34.º,
35.º e 36.º) não previa penas expulsivas para cabos e soldados, as chamadas
praças, mas só para sargentos e oficiais.
Como o mesmo RDM era aplicado à GNR, lá se teve que colmatar esta lacuna,
através das famosas medidas estatutárias. Hoje já assim não acontece. O
Regulamento de Disciplina admite medidas expulsivas para todos os elementos da
GNR, sejam oficiais, sargentos ou praças. A sanção estatutária não tem qualquer
razão de ser, quando se trata de apreciar condutas concretas que podem ser
classificadas como infracções disciplinares. Para isso o legislador regulou com
muitos pormenores o procedimento disciplinar (cf. artigos 67.º a 133.º do
RD/GNR).
Raciocinando do modo mais elementar. Os juízes podem interpretar as normas em
sentido contrário ao que a lei determina? E contra a Constituição? A
inconstitucionalidade das citadas normas é agora ainda mais flagrante.
O citado Acórdão n.º 481/2001 e a decisão aqui reclamada não são vitórias do
Estado de Direito, mas uma claudicação deste, que não serve para nada: uma
renúncia singular aos princípios constitucionais que se extraem dos artigos 2.º,
18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 1 e 10, 47.º, 53.º e 266.º da Constituição.
Para quem acredita, como o reclamante, e tem confiança que o direito e a justiça
são capazes de triunfar sem renúncia a nenhum dos princípios constitucionais
não pode ter desencanto, dúvida e tristeza.
II – Analisemos agora com mais pormenor a decisão reclamada:
O Tribunal Constitucional parece não ter tempo para votar, para decidir os casos
concretos e utiliza conceitos abstractos de valor. Depara com um processo de
fiscalização concreta de constitucionalidade, uma situação real da vida e vai
buscar um enquadramento jurídico já preestabelecido, formatado num acórdão
resultante de um recurso ministerial, sem atender à factualidade dos autos.
Com a devida vénia, a arte de julgar é mais complexa. Os juízes têm que criar
decisões novas para situações novas; eles aplicam o direito que existe, mas
interpretam‑no em cada decisão. Isto resulta da própria Constituição, que logo
no artigo 1.º realça o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio do
Estado de Direito, de um Estado de Justiça e de legalidade.
Em Portugal, no sistema romano‑germânico, a jurisprudência não serve de fonte de
direito, servindo apenas de orientação. O juiz não é um autómato rígido, que
decide cortando e colando pedaços de prosa. A interpretação do direito é sempre
uma história criativa iniciada pelo legislador, que exige ponderação, e dando
plena relevância ao sentido, alcance e interpretação às normas cuja
constitucionalidade se pretende ver apreciada e fiscalizada em casos concretos.
Com o devido e muito respeito pela douta decisão reclamada, o longo e denso
percurso do Excelentíssimo Conselheiro que a assina, a sua brilhante figura de
jurista, a rebeldia, a tenacidade notável, a coragem intelectual, o eclectismo
com que defende a dignidade humana, no país e no estrangeiro, em prestigiadas
organizações de defesa dos direitos humanos, mereciam uma decisão mais justa e
equitativa.
Há problemas gravíssimos de disciplina na Guarda Nacional Republicana. Centenas
de elementos da GNR são julgados e condenados em Tribunal por condutas
criminosas no exercício das funções e continuam ao serviço, exibindo no banco
dos réus a gloriosa e prestigiada farda da Guarda. Um Capitão de nome Pires pede
para ser dispensado do serviço; o seu pedido é indeferido e depois é preso como
desertor; o reclamante é louvado, galardoado, classificado como tendo
comportamento exemplar e ao mesmo tempo diz‑se que o mesmo não tem perfil para
continuar na GNR! O brio profissional do reclamante e as qualidades podem ser
louvadas, galardoadas e simultaneamente ser expulso e demitido do serviço com a
concordância de quem tem a obrigação funcional de o defender dos abusos do
poder.
São os próprios fundamentos do Estado de Direito que são abalados com tão
diferentes pesos e medidas.
Apreciando o caso concreto dos autos, vemos que se trata, no fundo, de um
assunto do foro pessoal, que só mesquinhas bisbilhoteiras de soalheiro se
atrevem a comentar, com o seu abelhudo moralismo. A nossa sociedade, livre,
avançada, tolerante, descomplexada, sem tabus, vive hoje de forma desinibida e
emancipada e isto também é uma vitória cultural. Já ninguém tem pachorra para
ouvir sermões edificantes, censuras enfatuadas, inspecções policiais a cartas e
correspondência íntima e privada. O moralismo legal, asfixiante, petulante,
teocrático, apocalíptico, extremista, metendo o nariz em tudo o que é vida
privada, dá padres Malagridas em Portugal e Savonarolas na República Florentina,
mas não serve para fazer justiça, a não ser nas fogueiras da Inquisição.
Os motivos das decisões judiciais sobre medidas estatutárias que – dizem – não
são sanções disciplinares, parecem mais de natureza política que jurídica e soam
a falsete. A ideia de que a aplicação da medida estatutária de dispensa do
serviço do militar da GNR por iniciativa do Comandante‑Geral da GNR, como é o
caso dos autos, não é uma sanção disciplinar e que pode ser aplicada fora do
âmbito de um procedimento disciplinar, onde as fases de instrução, defesa e
decisão estão fixadas pormenorizadamente pelo legislador, como a necessidade da
caracterização da gravidade das infracções, o grau de culpa com que o agente
agiu, é uma falácia, um sofisma, uma tautologia, que não resiste a qualquer
silogismo jurídico consistente. É como querer desembaraçar‑se de toda a
legalidade.
Salienta‑se que hoje o Estatuto dos Militares das Forças Armadas não consagra em
qualquer das suas disposições legais qualquer medida estatutária ou dispensa do
serviço por iniciativa do Comandante, para os próprios militares das Forças
Armadas! Em Portugal nenhum cidadão tem no seu Estatuto uma medida estatutária
semelhante a aplicar num famigerado processo próprio.
III – Eis, pois, alguns factos julgados relevantes:
O reclamante, não se conformando com a decisão proferida pelo STA datada de 2
de Fevereiro de 2006, da mesma interpôs recurso para o Tribunal Constitucional
nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alíneas b) e
g), e 75.º‑A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Nos termos do referido artigo 75.º‑A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o
recorrente considerou que a douta decisão recorrida é ilegal, e as normas aqui
sub judicio, ou seja, a norma constante do artigo 94.º do Decreto‑Lei n.º
231/93, de 26 de Junho, com excepção do seu n.º 3 e do segmento do n.º 1
referente à dispensa do serviço a pedido do militar, e a que consta do artigo
75.º do Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, com excepção das alíneas b) e c)
do seu n.º l, são inconstitucionais, pois violam os princípios que se extraem
dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 47.º, 53.º e 266.º da Constituição da
República Portuguesa, inconstitucionalidade e ilegalidade que o recorrente
suscitou nas petições de recurso e nas alegações feitas nos autos no Tribunal
Central Administrativo de Lisboa e no recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 91/2001, de 13 de Março de 2001 –
Proc. n.º 532/00 já julgou inconstitucionais as referidas normas.
No STA, o recurso foi admitido por despacho de 14 de Março de 2006. Todavia, no
Tribunal Constitucional foi proferida a decisão sumária reclamada, decidindo‑se
não julgar inconstitucionais os segmentos das normas constantes do requerimento
acima citado e negar provimento ao recurso.
Requereu‑se, pois, a declaração da inconstitucionalidade dos indicados segmentos
das referidas normas e numa determinada dimensão interpretativa dos citados
preceitos num caso concreto, de fiscalização concreta e não abstracta, de forma
que o STA, tribunal a quo, saiba que não os devia aplicar com a interpretação
que fez.
Daí a individualização dos segmentos das normas e do sentido ou interpretação
normativa que o reclamante reputou como necessário individualizar no seu
requerimento de interposição de recurso. É sabido que os vícios de ilegalidade
só podem ser apreciados nesse Tribunal nos casos previstos nas alíneas do n.º 1
do artigo 70.º da LTC.
O Sr. Ministro da Administração Interna, por seu despacho de 4 de Janeiro de
1999, determinou ao reclamante a dispensa do serviço da GNR, passando à
situação prevista no n.º 4 do artigo 75.º do Estatuto dos Militares da GNR, nos
termos das disposições do artigo 2.º do mesmo Estatuto, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, e nos termos dos n.ºs 2 e 4 do artigo
94.º do Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26 de Janeiro, e das alíneas a) e b) do n.º 1
do artigo 75.º referido.
Desta decisão o reclamante requereu a suspensão de eficácia e o TCA deferiu a
pretensão, por decisão de 2 de Junho de 1999, data em que o reclamante foi
novamente reintegrado na GNR, contando como serviço efectivo o período que
medeia entre 14 de Janeiro de 1999 e 2 de Junho de 1999, até à presente data.
Continuou, pois, o reclamante a prestar com toda a normalidade serviço no Grupo
Territorial de Aveiro da GNR – já lá vão quase 7 anos –, onde estava colocado em
4 de Janeiro de 1999 e, em 11 de Abril de 2001, o Comandante do Grupo
Territorial de Aveiro atesta que o reclamante, colocado no Posto de Cacia, tem
cumprido sem reparos as suas obrigações de serviço, informação que consta dos
autos.
Por satisfazer as condições previstas no Decreto‑Lei n.º 316/2002, de 27 de
Dezembro, em 19 de Abril de 2002, o reclamante foi condecorado com a Medalha de
Prata de Comportamento Exemplar e encontra‑se classificado na 1.ª Classe de
comportamento, sem nunca ter sofrido qualquer castigo, tendo averbado um louvor
público.
O TCA Sul, por decisão de 12 de Fevereiro de 2004, negou provimento ao recurso
interposto pelo reclamante, decisão confirmada em 2 de Março de 2006 pelo STA e
da qual se recorreu para este alto Tribunal.
Sendo que no nosso ordenamento jurídico não existe o «recurso de amparo» como há
noutros países, para compreender a dimensão interpretativa com que as citadas
normas foram aplicadas nestes autos pelo STA e na decisão sumária do TC, veja‑se
esta passagem do acórdão do STA – Recurso n.º 765/2004, 1.ª Secção, 2.ª
Subsecção:
«A aplicação da medida estatutária de dispensa de serviço do militar da GNR por
iniciativa do Comandante‑Geral da GNR, como foi o caso em apreço, implica
sempre, e nos termos anteriormente referidos, a instauração de um prévio
procedimento administrativo que visa apurar se o comportamento do militar
indicia (ou não) notórios desvios dos requisitos morais, éticos,
técnico‑profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e
função que o militar exerce.
Este procedimento próprio de dispensa de serviço tem apenas uma única
finalidade, como seja o apurar se os factos praticados pelo militar são
susceptíveis de integrar um comportamento que, como expressamente estabelece o
artigo 91.º, n.º 2, “se revele incompatível com a condição de ‘soldado da lei’”
ou comprovativo de o militar não possuir determinadas condições entre as quais
“Bom comportamento militar e cívico”.»
O reclamante já deu sobejas provas pelas quais se pode aferir o seu perfil
comportamental e caracteriológico, que é bem adequado à continuação da sua
permanência na GNR, ou seja, os seus superiores já verificaram e atestaram que o
militar tem todas as condições e possui estrutura caracteriológica totalmente
compatível com a condição de militar da Guarda – veja‑se a condecoração com que
recentemente foi galardoado!
Continua a viver com a família, mulher e filhos, na aldeia de Macinhata do
Vouga, Águeda. Há situações da vida real e decisões dos tribunais que fogem à
capacidade de compreensão do cidadão comum, do povo em nome do qual se
administra a justiça.
Como resulta da decisão sumária reclamada, no julgamento do caso no STA de que
emergiu o presente recurso, foram aplicadas a norma constante do artigo 94.º da
Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto‑Lei n.º
231/93, de 26 de Junho (com excepção do seu n.º 3 e do segmento do n.º 1
referente à dispensa do serviço a pedido do militar), e a que consta do artigo
75.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho), com excepção das alíneas b) e c) do seu
n.º 1.
O artigo 94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (aprovada pelo
Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26 de Junho), cuja rubrica é dispensa do serviço,
dispõe:
«1. A dispensa do serviço dos militares dos quadros permanentes da Guarda
ocorre a pedido dos próprios ou por iniciativa do comandante-geral.
2. A dispensa do serviço, quando da iniciativa do comandante‑geral, pode ter
lugar sempre que o comportamento do militar indicie notórios desvios dos
requisitos morais, éticos, técnico‑profissionais ou militares que lhe são
exigidos pela sua qualidade e função, implicando tal medida a instauração de
processo próprio com observância de todas as garantias de defesa e com a pensão
de reforma que lhe couber.
3. A dispensa do serviço a pedido do militar é da competência do
comandante‑geral.
4. À adopção da medida prevista no n.º 2 deste artigo é da iniciativa do
comandante‑geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda, competindo a decisão
final ao Ministro da Administração Interna.
5. Da decisão do Ministro da Administração Interna cabe recurso nos termos da
lei.»
O Capítulo VI do Título I do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional
Republicana (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho), subordinado
à epígrafe efectivos, situações e quadros, contém 5 secções. A Secção I
(disposições gerais) compreende os artigos 60.º a 65.º, nos quais se definem as
situações em que os militares se podem encontrar: activo, reserva e reforma. A
Secção II (artigos 66.º a 76.º) regula as situações do activo. A Secção III
(artigos 77.º a 84.º) regula a situação de reserva. E a Secção IV (artigos 85.º
a 89.º) regula a situação de reforma.
O artigo 75.º do Estatuto, aqui também sub judicio, cuja rubrica é Dispensa por
iniciativa do comandante, prescreve como segue:
«1. Não pode continuar no activo nem na efectividade de serviço o militar dos
quadros da Guarda cujo comportamento se revele incompatível com a condição
“soldado da lei” ou que se comprove não possuir qualquer das seguintes
condições:
a) Bom comportamento militar e cívico;
b) Espírito militar;
c) Aptidão técnico‑profissional.
2. O apuramento dos factos que levam à invocação da falta de condições referidas
no número anterior é feito através de processo próprio de dispensa de serviço
ou disciplinar.
3. A decisão de impor ao militar a saída do activo e da efectividade de serviço
é da competência do Ministro da Administração Interna, sob proposta do
comandante‑geral, ouvido o Conselho Superior da Guarda.
4. A dispensa do serviço origina o abate nos quadros e perda dos direitos de
militar da Guarda, sem prejuízo da concessão da pensão de reforma nos termos da
lei.»
A dispensa do serviço implica, assim, que o militar, a quem tal medida for
aplicada, tem que deixar a Guarda Nacional Republicana, que o mesmo é dizer o
«exercício efectivo de cargos e funções próprias do posto nos casos e condições
previstos»; perde os direitos de militar da Guarda (salvo o direito à pensão de
reforma); e é abatido aos quadros.
Tal medida é aplicada, com observância de todas as garantias de defesa, em
processo próprio de dispensa do serviço ou em processo disciplinar, aos
militares da Guarda cujo comportamento «indicie notórios desvios dos requisitos
morais, éticos, técnico‑profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua
qualidade e função», ou seja, que revelem não possuir «bom comportamento
militar e cívico, espírito militar ou aptidão técnico‑profissional».
Tanto a Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, como o Estatuto dos
Militares da Guarda Nacional Republicana concebem a medida de dispensa do
serviço como uma medida sem a natureza de sanção disciplinar – recte, como uma
medida que a Lei Orgânica qualifica como medida estatutária. Tal resulta do
confronto entre a epígrafe do capítulo V do título II da Lei Orgânica (regime
penal, disciplinar e estatutário) e os artigos 92.º e 94.º da mesma lei, e entre
os artigos 5.º, 74.º e 75.º do Estatuto.
Na verdade, da epígrafe do capítulo V do título II da Lei Orgânica, consta que
nele se trata do regime penal, disciplinar e estatutário, mas o artigo 92.º –
que versa sobre o regime penal e disciplinar – determina que o regime
disciplinar aplicável aos militares da Guarda é, embora «com os ajustamentos
adequados às características estruturais deste tipo de tropas», o constante do
Regulamento de Disciplina Militar (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 142/77, de 9 de
Abril, alterado pelo Decreto‑Lei n.º 226/79, de 21 de Julho); e o artigo 94.º,
esse, regula a dispensa do serviço, que, desse modo, surge como uma medida
estatutária, e não como uma sanção disciplinar.
Por sua vez, o Estatuto, no seu artigo 5.º, prescreve também que ao militar da
Guarda é aplicável o Regulamento de Disciplina Militar, embora “com os
ajustamentos adequados às características estruturais deste corpo militar e
constantes dos respectivos diplomas legais»; e, nos artigos 74.º e 75.º, regula
a dispensa do serviço (no artigo 74.º, se requerida pelo interessado; no artigo
75.º, quando imposta pelo Ministro da Administração Interna, sob proposta do
comandante‑geral), a qual aparece, assim, como uma medida que não tem a natureza
de sanção disciplinar. [Estes artigos 74.º e 75.º fazem parte do capítulo VI do
titulo I, que está subordinado à rubrica efectivos, situações e quadros].
A sujeição dos militares da Guarda ao regime disciplinar constante do
Regulamento de Disciplina Militar tem, naturalmente, a ver com o facto de eles
serem «soldados da lei» que se obrigam «a manter em todas as circunstâncias um
bom comportamento cívico e a proceder com justiça, lealdade, integridade,
honestidade e competência profissional, por forma a suscitar a confiança e o
respeito da população e a contribuir para o prestígio da Guarda e das
instituições democráticas» (cf. artigo 2.º do Estatuto). Essa sujeição era, de
resto, imposta pela Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82,
de 11 de Dezembro) e pela Lei n.º 11/89, de 1 de Junho, que estabeleceu as Bases
gerais do estatuto da condição militar.
Na verdade, a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas preceitua, no artigo
69.º, n.º 1, que «é aplicável aos militares e agentes militarizados dos quadros
permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Nacional
Republicana» o disposto nos seus artigos 31.º (restrições ao exercício de
direitos por militares), 32.º (a justiça e a disciplina são reguladas,
respectivamente, no Código de Justiça Militar e no Regulamento de Disciplina
Militar) e 33.º (condiciona o exercício do direito de queixa ao Provedor de
Justiça).
De sua parte, a Lei n.º 11/89, de 1 de Junho, contendo, como se disse, as bases
do estatuto da condição militar, prescreve, no seu artigo 16.º, que ela se
aplica aos militares da Guarda Nacional Republicana.
Resulta do que se disse que, no domínio do artigo 69.º, n.º 1, da Lei da Defesa
Nacional (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro), do artigo 16.º da Lei n.º 11/89, de
1 de Junho (Bases gerais do estatuto da condição militar), do artigo 92.º, n.º
1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26
de Junho) e do artigo 5.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional
Republicana (Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho), as penas disciplinares
aplicáveis aos militares da Guarda eram – embora, como se disse, «com os
ajustamentos adequados às características estruturais deste corpo de tropas» –
as previstas no Regulamento de Disciplina Militar. Ou seja, entre outras, as
penas de reserva compulsiva, reforma compulsiva e separação do serviço (cf.
artigo 34.º), mas estas últimas só para oficiais e sargentos e não para soldados
e cabos.
IV – Novo Regulamento de Disciplina da GNR:
Entretanto, porém, foi publicada a Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, que aprovou
o Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana.
O artigo 2.º desta Lei n.º 145/99 veio revogar, a partir da entrada em vigor do
dito Regulamento, «as disposições legais e regulamentares na parte em que
prevêem ou determinam a aplicação do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) aos
militares da Guarda Nacional Republicana». E o artigo 4.º da mesma lei – que
veio estabelecer, «para todos os efeitos legais e regulamentares», «a
correspondência entre as penas previstas no Regulamento de Disciplina Militar e
no presente Regulamento de Disciplina» – dispôs, na alínea g) do n.º 1, que «as
penas de reforma compulsiva e de separação do serviço correspondem‑se nos dois
regimes». Com a ressalva feita anteriormente no que diz respeito a cabos e
soldados.
Agora já a todos os militares da Guarda – a quem, presentemente, são aplicáveis
as penas disciplinares de repreensão escrita, repreensão escrita agravada,
suspensão, suspensão agravada, reforma compulsiva e separação do serviço (cf.
artigo 27.º do respectivo Regulamento) – continua, pois, a poder aplicar‑se, em
processo próprio (com observância de todas as garantias de defesa) ou em
processo disciplinar, a medida de dispensa do serviço, que a lei concebe como
medida estatutária sem carácter de sanção disciplinar.
De facto, como o artigo 2.º desta Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, revogou
apenas «as disposições legais e regulamentares na parte em que prevêem ou
determinam a aplicação do Regulamento de Disciplina Militar (RDM) aos militares
da Guarda Nacional Republicana», mantêm-se em vigor o artigo 94.º da Lei
Orgânica e os artigos 74.º e 75.º do Estatuto, que prevêem a aplicação, nos
termos atrás indicados, da medida de dispensa do serviço.
V – Análise da questão da constitucionalidade das normas em causa:
Ao contrário do que defende a decisão reclamada, o reclamante, a quem não foi
sequer permitido o exercício do contraditório e apresentar alegações, sustenta
que o facto de a medida que lhe foi aplicada (dispensa do serviço da Guarda
Nacional Republicana) ter a natureza de sanção estatutária não lhe retira o
carácter de pena disciplinar, já que ela constitui, tal como a pena disciplinar
expulsiva, uma sanção estatutária expulsiva – o que vale por dizer que não
constitui, enquanto tal, um género próprio, autónomo e distinto da pena
disciplinar.
Salvo o devido respeito, em seu entender, as normas legais aqui sub judicio
versam, assim, sobre direitos, liberdades e garantias, regime disciplinar e
regime da função pública, que se inscrevem na reserva relativa de competência
da Assembleia da República, como tal consignadas nas alíneas b), d) e v) do n.º
1 do artigo 168.º da Constituição da República Portuguesa. E, por isso, o
Governo só as podia produzir munido de autorização legislativa.
Ao contrário do que consta da douta decisão sumária, a referida medida (a medida
de dispensa do serviço) atinge irremediavelmente o seu direito à segurança no
emprego, consagrado no artigo 53.º da Constituição e são também violados os
princípios da igualdade e da proporcionalidade e da justiça.
Como é que se pode defender, como consta da decisão reclamada, que tal medida
não tem o carácter, nem a natureza de pena disciplinar se o seu efeito prático
na carreira profissional é idêntico ao da aplicação de uma pena expulsiva?
Como pode afirmar‑se que o que se procura não é sancionar o comportamento do
agente, mas sim retirar as consequências de uma situação objectiva em que o
agente se colocou de deixar de reunir as condições necessárias, nos aspectos
ético, moral e de carácter, ao exercício das funções próprias do corpo especial
a que pertence? Mas o agente continua ao serviço da Guarda e até foi
recentemente galardoado com a medalha de comportamento exemplar!
Para se decidirem, com justiça, as questões de constitucionalidade que os autos
colocam, mais do que apurar a real natureza da medida de dispensa do serviço,
aplicável aos militares da Guarda Nacional Republicana, ou seja, mais do que
apurar se ela reveste a natureza de sanção disciplinar ou se é uma medida de
saneamento de quadros, de carácter meramente estatutário – a CRP na sua versão
inicial e nas disposições transitárias dizia que acabavam os saneamentos, mas
parece que alguém ainda os quer continuar trinta anos depois –, importa
averiguar se é possível aplicá‑la sem ser como punição de uma infracção
disciplinar. E isto porque ela constitui, inegavelmente, uma medida
sancionatória, pois que implica, para aquele a quem for aplicada, a expulsão da
Guarda Nacional Republicana.
Sublinhou‑se acima que a lei concebe tal medida como uma medida estatutária sem
natureza de sanção disciplinar. No entanto, decisivo para apurar a natureza da
medida não é a qualificação que dela faz o legislador. Decisivo é, antes, o que
ela realmente é.
O Conselho da Revolução – que, à data, era o «órgão político e legislativo em
matéria militar» (cf. o artigo 142.° da Constituição, na sua versão inicial) –
editou, em dado momento, o Decreto‑Lei n.º 203/78, de 24 de Julho, «firmando a
interpretação autêntica a dar aos (...) preceitos» que, no Regulamento de
Disciplina Militar, definem as atribuições dos conselhos superiores de
disciplina (cf. o respectivo preâmbulo).
No artigo 2.º, n.º 1, deste Decreto‑Lei n.º 203/78, de 24 de Julho, dispôs‑se
que «a apreciação da capacidade profissional ou moral de militares pelos
conselhos de disciplina, prevista na segunda parte do n.º 2 do artigo 34.º e nas
alíneas c) e d) do artigo 134.º do citado Regulamento, é independente de
quaisquer processos disciplinares ou criminais respeitantes à actuação dos
mesmos militares, e não é prejudicada pela extinção do procedimento disciplinar
ou criminal, excepto no caso de morte».
A Comissão Constitucional foi chamada a apreciar a constitucionalidade desse
Decreto‑Lei n.º 203/78, de 24 de Julho. Debruçou‑se, então, sobre a natureza
jurídica de uma medida que é idêntica à de dispensa do serviço, aqui sub
judicio. Tratou‑se da medida de separação do serviço, prevista na segunda parte
do n.º 2 do artigo 34.º do Regulamento de Disciplina Militar, aplicável aos
militares das Forças Armadas como sanção de natureza não disciplinar, mas só aos
oficiais e sargentos, como já se salientou anteriormente.
As praças, soldados e cabos, eram todos do serviço geral obrigatório e a
separação do serviço era um prémio e não um castigo. Os «taratas» não se
importavam de passar mais cedo à «peluda». Como as coisas são tão simples e as
mentalidades ficam bloqueadas por realidades que não querem admitir como reais!
A Comissão Constitucional assentou em que as «chamadas medidas de natureza
estatutária (sanções estatutárias ou sanções de estado)» «são proferidas à
margem e independentemente de procedimento disciplinar». Acrescentou que – por
força do disposto no artigo 34.º, n.º 2, do Regulamento de Disciplina Militar,
que prescreve que «as penas de reserva compulsiva, reforma compulsiva e
separação do serviço só poderão ser aplicadas em processo disciplinar após a
apreciação dos conselhos superiores de disciplina respectivos, ou quando
resultem da apreciação da capacidade profissional e moral dos elementos das
forças armadas que não revelem as qualidades essenciais para o exercício das
suas funções militares, nos termos do artigo 134.º»; e por força, bem assim, do
preceituado no artigo 134.º do mesmo Regulamento, que, no n.º 1, estabelece que
«na deliberação que proferir, o conselho discriminará os factos cuja acusação
julgou procedente, a sua qualificação como ilícito, concluindo pela sujeição do
arguido à medida disciplinar que no seu prudente arbítrio entender»; e que, no
n.º 2, determina que «poderá igualmente o conselho pronunciar‑se pela passagem
compulsiva do arguido às situações de reserva, de reforma ou pela separação de
serviço, conforme se revele incompatível a sua permanência na efectividade de
serviço ou nas fileiras» – a separação do serviço (tal como a reserva
compulsiva e a reforma compulsiva) é, de umas vezes, aplicada como pena
disciplinar, e, de outras, como sanção de diversa natureza.
Sublinhou a «natureza autónoma das medidas estatutárias, com fundamentos e fins
diversos dos das penas disciplinares ou criminais». E concluiu que a medida de
separação do serviço, cuja aplicação os conselhos de disciplina podem propor
nos termos dos citados artigos 34.º, n.º 2, parte final, e 134.º, n.º 2, tendo
embora o mesmo nome da pena disciplinar de separação do serviço, tem, contudo,
natureza diferente (ou seja: não é sanção disciplinar, mas estatutária), sendo
por isso que ela pode ser aplicada, ainda que o procedimento disciplinar ou
criminal se tenha extinguido, outro tanto acontecendo com a reserva compulsiva
e com a reforma compulsiva (cf. o parecer n.º 32/79, de 6 de Novembro de 1979,
publicado nos Pareceres da Comissão Constitucional, 10.º volume, páginas 81 e
seguintes).
No mesmo sentido se tinha, aliás, pronunciado a Procuradoria‑Geral da República,
embora com duas vozes discordantes: as dos vogais Tavares da Costa e Ferreira
Vidigal (cf. o parecer n.º 54/79, de 19 de Outubro de 1979, publicado no Diário
da República, II série, de 26 de Março de 1980).
Na Comissão Constitucional, também não foi unânime o entendimento de que, no
Regulamento de Disciplina Militar, as medidas de reforma compulsiva, de reserva
compulsiva e de separação do serviço eram, de umas vezes, penas disciplinares,
e, de outras, sanções de natureza diversa (recte, sanções estatutárias, sem
carácter disciplinar). Desse entendimento discordaram os vogais Jorge Campinos e
Luís Nunes de Almeida.
O Conselheiro Luís Nunes de Almeida – depois de acentuar que «o que caracteriza
uma sanção como estatutária não é o tipo de infracção que ela visa punir, nem o
processo conducente à respectiva aplicação, nem a entidade que a pode aplicar»,
e que «o que permite caracterizar uma certa sanção como sanção estatutária é o
facto de ela (...) ‘afectar a situação jurídica’ do agente, ‘atingindo‑o como
tal’, isto é, uma certa sanção é sempre uma sanção estatutária desde que afecte
o estatuto profissional do agente, desde que o atinja ‘na sua carreira
profissional ou situação funcional, modificando‑as em seu prejuízo’» –
sublinhou que «as penas de reserva compulsiva, de reforma compulsiva e de
separação do serviço são sempre (…) sanções estatutárias», mas que isso «de
forma alguma lhes retira o carácter de pena disciplinar» – acrescentou: «o que
acontece é que entre as penas disciplinares previstas no Regulamento de
Disciplina Militar se encontram penas morais, como a repreensão e a repreensão
agravada; penas restritivas da liberdade, como a prisão disciplinar e a prisão
disciplinar agravada; e penas estatutárias ou profissionais, como as já várias
vezes referidas e, ainda, a pena de inactividade». E – depois de precisar que
«as penas de reserva compulsiva, reforma compulsiva e de separação do serviço,
como sanções estatutárias de carácter expulsivo que na realidade são, assumem
uma extraordinária gravidade» – concluiu que «não é minimamente aceitável a tese
segundo a qual a apreciação da capacidade profissional e moral é independente de
procedimento disciplinar e da existência de infracção disciplinar»; que «mais
inaceitável ainda se revela aceitar que possa haver casos em que a incapacidade
moral ou profissional não assente numa infracção disciplinar»; e que «os factos
susceptíveis, de acordo com o Regulamento de Disciplina Militar, de justificar a
apreciação da capacidade moral ou profissional devem ter a natureza de um
ilícito disciplinar e a decisão final é uma verdadeira decisão em matéria
disciplinar, sendo a incapacidade moral ou profissional objecto de uma punição
disciplinar, com todas as consequências daí resultantes», como a Comissão já
tinha, aliás, decidido no Parecer n.º 18/77 (publicado nos Pareceres citados,
2.º volume, página 115 e seguintes).
Abre‑se aqui um parêntesis para salientar algo que se disse atrás: existe
identidade entre a medida de separação do serviço, aplicável aos Oficiais e
Sargentos das Forças Armadas, e a de dispensa do serviço, aplicável aos
militares da Guarda Nacional Republicana.
Esclarece‑se, agora, que essa identidade resulta evidente, quando se tenha
presente que a medida de separação do serviço «consiste no afastamento de um
militar do exercício das suas funções, com perda da sua qualidade de militar,
ficando privado do uso de uniforme, distintivos ou insígnias militares, com a
pensão de reforma que lhe couber» (cf. artigo 32.º do Regulamento de Disciplina
Militar); e que a medida de dispensa do serviço implica, justamente, como se viu
acima, que o militar, a quem seja aplicada, tem que deixar a Guarda Nacional
Republicana, que o mesmo é dizer o «exercício efectivo de cargos e funções
próprias do posto nos casos e condições previstos»; perde os direitos de militar
da Guarda (salvo o direito à pensão de reforma); e é abatido aos quadros.
A identidade entre as duas medidas evidencia‑se também, se se tiver em conta que
a medida de separação do serviço pode ser aplicada «quando resulte da apreciação
da capacidade profissional e moral dos elementos dos forças armadas que não
revelem as qualidades essenciais para o exercício das suas funções militares»
(cf. artigo 34.º, n.º 2, do Regulamento de Disciplina Militar), ou seja, quando
«se revele incompatível a sua permanência (…) nas fileiras» (cf. artigo 134.º,
n.º 2, do mesmo Regulamento); e que a medida de dispensa do serviço pode ser
aplicada aos militares da Guarda Nacional Republicana, cujo comportamento
«indicie notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico‑profissionais
ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função» (cf. artigo 94.º,
n.º 2, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana), ou seja, que revelem
não possuir «bom comportamento militar e cívico, espírito militar ou aptidão
técnico‑profissional» (cf. artigo 75.º, n.º 1, do Estatuto dos Militares da
Guarda Nacional Republicana).
Prosseguindo, deve, então, concluir‑se que, semelhantemente ao que acontece com
a sanção de separação do serviço (aplicável aos Oficiais e Sargentos das Forças
Armadas), a sanção de dispensa do serviço (aplicável aos militares da Guarda
Nacional Republicana), é uma sanção estatutária, ou seja, uma sanção que atinge
o militar na sua carreira profissional.
Ao contrário da tese que fez vencimento na decisão reclamada, o facto de a
dispensa do serviço ser uma sanção estatutária não permite, porém, que ela seja
aplicada sem ser para punir uma infracção disciplinar e que, como o militar que
a sofre tem que deixar a Guarda Nacional Republicana, perde os direitos
inerentes a essa qualidade de militar, com excepção do direito à pensão de
reforma, e é abatido aos quadros respectivos, seria inadmissível que essa sanção
pudesse ser aplicada independentemente da existência de infracção disciplinar.
Inadmissível, não tanto pelo facto de a lei permitir a sua aplicação sem ser em
processo disciplinar (pois ela sempre tem que ser aplicada em processo próprio,
com observância de todas as garantias de defesa), mas sobretudo porque é
inaceitável que possa concluir‑se que o comportamento do militar indicia
«notórios desvios dos requisitos morais, éticos, técnico‑profissionais ou
militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e função» (ou seja, que o
militar revela não possuir «bom comportamento militar e cívico, espírito militar
ou aptidão técnico‑profissional») – e concluir‑se em termos de justificar a
aplicação de uma sanção que afecta tão gravemente o seu estatuto profissional –
sem, previamente, se fazer prova de que ele praticou uma infracção disciplinar
muito grave.
VI – Consagração do critério da tipicidade e determinabilidade:
Veja‑se a seguir o critério de tipicidade que o legislador exige na aplicação
das penas expulsivas.
Na verdade, a pena de separação do serviço, prevista na alínea f) do artigo 28.º
do Regulamento de Disciplina da Guarda Nacional Republicana – que, recorda‑se,
«consiste no afastamento definitivo da Guarda, com extinção do vínculo funcional
à mesma e a perda da qualidade de militar, ficando interdito o uso de uniforme,
distintivos e insígnias militares, sem prejuízo do direito à pensão de reforma»
– só pode ser aplicada pela prática de infracções disciplinares muito graves
(cf. artigo 42.º, n.º 1, alínea c), do mesmo Regulamento), ou seja, por
«comportamentos dos militares da Guarda, violadores dos deveres a que se
encontram adstritos, cometidos com elevado grau de culpa e de que resultem
avultados danos ou prejuízos para o serviço ou para as pessoas, pondo gravemente
em causa o prestígio e o bom nome da instituição, dessa forma inviabilizando a
manutenção da relação funcional» (cf. o n.º 1 do artigo 21.º do mesmo
Regulamento), como são, a título de exemplo, «usar de poderes de autoridade não
conferidos por lei ou abusar dos poderes inerentes às suas funções (...)»;
«agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente qualquer militar da Guarda ou
terceiro, em local de serviço ou em público»; «praticar, no exercício das suas
funções ou fora delas, crime doloso, punível com pena de prisão superior a três
anos, que revele ser o militar incapaz ou indigno da confiança necessária ao
exercício das função»; «encobrir criminosos ou ministrar‑lhes auxílio
ilegítimo»; «atentar gravemente contra a ordem, a disciplina, a imagem e o
prestígio da instituição»; «revelar, sem autorização, dados relativos à
actividade da Guarda, classificados com grau de reservado ou superior, ou, em
geral, matérias que constituam segredo de Estado, de justiça ou profissional»;
«inobservar as normas de segurança ou deveres funcionais, com grave prejuízo da
actividade operacional da Guarda e dos bens e missões que lhe estão confiados»
(cf. as várias alíneas do n.º 2 do mesmo artigo 21.º).
Ora, a sanção de dispensa do serviço, que aqui está a ser analisada e que consta
da decisão reclamada, quanto aos efeitos que produz no estatuto profissional do
militar da Guarda – e estes são os que verdadeiramente relevam, e não
propriamente a finalidade tida em vista pela Administração ao aplicá‑la – tem,
como se viu, conteúdo idêntico, se não mesmo igual, ao da pena disciplinar de
separação do serviço, aplicável a esse mesmo militar.
Dizer isto é concluir pela improcedência do argumento (utilizado pela decisão
reclamada para decidir pela não inconstitucionalidade) de que, com a aplicação
de tal medida, se não procura sancionar o comportamento do agente, mas sim
retirar as consequências de uma situação objectiva, consistente em que o agente
deixou de reunir as condições necessárias, nos aspectos ético, moral e de
carácter, ao exercício das funções próprias do corpo especial a que pertence, o
que – acrescenta a mesma decisão – justifica que ela se aplique
independentemente do cometimento de uma infracção disciplinar, pois se trata de
uma medida de saneamento dos quadros, que é admissível no domínio das
denominadas relações especiais de poder (cf. também o citado parecer da
Procuradoria‑Geral da República).
VII – As normas sub judicio, o princípio da proporcionalidade e o direito à
segurança no emprego:
Admitir a aplicação da sanção de dispensa do serviço sem ser para punir uma
infracção disciplinar muito grave, como actualmente se exige no Regulamento de
Disciplina da GNR, mas apenas para sanear os quadros da Guarda Nacional
Republicana, expulsando os militares que, do ponto de vista do seu
comandante-geral – ponto de vista homologado pelo Ministro da Administração
Interna, após audição do Conselho Superior da Guarda – não reúnam «as condições
necessárias, nos aspectos ético, moral e de carácter, ao exercício das funções
próprias do corpo especial a que pertencem», é esquecer que os direitos
fundamentais dos cidadãos, cujo núcleo essencial é intocável, se encontram sob
reserva da Constituição e que, por isso, só com autorização constitucional podem
ser restringidos (cf. artigo 18.º), o que, desde logo, significa que, sejam
quais forem as implicações que, nos quadros do Estado de Direito, possa ter o
facto de alguém se encontrar numa situação que possa qualificar‑se como relação
especial de poder, elas nunca podem ir ao ponto de legitimar, ratione
constitutionis, uma lei que permita que, independentemente do cometimento de uma
infracção disciplinar muito grave, se expulse da Guarda Nacional Republicana um
militar que, aos olhos do seu comandante‑geral, dê provas de «notórios desvios
dos requisitos morais, éticos, técnico‑profissionais ou militares que lhe são
exigidos pela sua qualidade e função». Nos quadros do Estado de Direito, o
facto de alguém se encontrar numa situação de especial proximidade em relação à
Administração não significa que fique colocado em estado de sujeição, em termos
de, para ele, deixarem de valer as garantias constitucionais e legais.
E isto é tão normal e evidente que o Regulamento de Disciplina da GNR foi
aprovado por uma Lei da Assembleia da Republica – Lei n.º 145/99, de 1 de
Setembro, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição.
A sanção de dispensa do serviço, quando possa ser aplicada sem ser para punir
uma infracção disciplinar muito grave, não pode, pois, encontrar credencial em
qualquer preceito constitucional. Designadamente, não a encontra no artigo
270.º da Constituição – que foi introduzido pela revisão constitucional de
1982, tendo a revisão de 1997 acrescentado o inciso «bem como por agentes dos
serviços e forças de segurança» – o qual, presentemente, prescreve que «a lei
pode estabelecer restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião,
manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva
dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço
efectivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança, na estrita
medida das exigências das suas funções próprias» (Sobre o sentido e alcance
deste artigo 270.º, na versão de 1982, cf. o Acórdão n.º 103/87, publicado nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 9.º, páginas 975 e seguintes).
Na verdade, a sanção de dispensa do serviço, importando a expulsão do visado da
Guarda Nacional Republicana, fazendo‑o perder o emprego, o que, desde logo, põe
em causa é o direito ao lugar – não, obviamente, na sua vertente de ius ad
officium, mas na de ius in officio (ou seja, a segurança no emprego) –, e não
qualquer dos direitos que o artigo 270.º autoriza seja restringido. Ao que
acresce que a sua aplicação (a aplicação da medida de dispensa do serviço) nas
condições apontadas (ou seja, sem se requerer a prova da prática de uma
infracção disciplinar muito grave) não cumpre a exigência de que toda a
restrição se deve limitar «ao necessário para salvaguardar outros direitos ou
interesses constitucionalmente previstos», nem a garantia do n.º 10 do artigo
32.º: «nos processos de contra‑ordenação, bem como em quaisquer processos
sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa»
(cf. artigos 18.º, n.º 2, e 32.º, n.ºs 1 e 10, da Constituição).
VII – As normas em análise os princípios da proibição do excesso, da igualdade,
da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé:
Há‑de, pois, convir‑se que as normas legais aqui sub judicio, ao permitirem a
aplicação da medida de dispensa do serviço independentemente do cometimento de
uma infracção disciplinar que a justifique e sem ser em processo disciplinar,
são inconstitucionais: antes de mais, porque violam o princípio da proibição do
excesso e, desse modo, o direito à segurança no emprego, consagrado no artigo
53.º da Constituição, que dispõe que «é garantido aos trabalhadores a segurança
no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos
políticos ou ideológicos», e os princípios da igualdade, da proporcionalidade,
da justiça, da imparcialidade e da boa fé (cf. artigo 266.º da Constituição).
Esta garantia – que vale, naturalmente também para os militares da Guarda
Nacional Republicana (sobre a aplicação da garantia da segurança no emprego aos
trabalhadores da Administração Pública – e isso são os militares da Guarda
Nacional Republicana – cf. os Acórdãos n.ºs 154/86 e 285/92, publicados nos
Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 7.º, tomo I, página 185 e
seguintes, e 22.º, página 159) – significa, pelo menos, que eles não podem ser
expulsos das fileiras, salvo apurando‑se, em processo próprio, com observância
das garantias de defesa, que cometeram infracção disciplinar de gravidade tal
que torne impossível a sua manutenção ao serviço e a sua pertença à corporação.
É isto que hoje está consagrado no artigo 21.º do Regulamento de Disciplina da
GNR.
Contra a conclusão a que acaba de chegar‑se, dir‑se‑á que, em direitas contas,
ao aplicar‑se a medida de dispensa de serviço, mais não se faz do que punir uma
infracção disciplinar, pois – dispõe o n.º 3 do artigo 75.º do Estatuto dos
Militares da Guarda Nacional Republicana – a sua aplicação pressupõe «o
apuramento de factos que levam à invocação da falta de condições referidas no
número anterior»; e que tal se faz em processo disciplinar especial, que isso é
o «processo próprio de dispensa de serviço», que decorre «com observância de
todas as garantias de defesa» (cf. o n.º 2 do artigo 94.º da Lei Orgânica da
Guarda Nacional Republicana).
Pois bem: como decorre do que se disse atrás, não se contesta que o «processo
próprio de dispensa de serviço» cumpra as funções do processo disciplinar – e
que, assim, possa ser visto como um processo disciplinar especial.
Há‑de convir‑se, no entanto, que, ao mandar aplicar a medida de dispensa de
serviço a «factos que levam à invocação da falta» de «bom comportamento moral e
cívico», de «espírito militar» ou de «aptidão técnico‑profissional» (cf. os
n.ºs 1 e 2 do citado artigo 75.º) – é dizer: que levam à conclusão de que «o
comportamento do militar» indicia «notórios desvios dos requisitos morais,
éticos, técnico‑profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua
qualidade e função” (cf. o n.º 2 do mencionado artigo 94.º) –, as normas sub
judicio não cumprem aquele mínimo de determinabilidade que é de exigir a normas
legais que prevejam a aplicação de penas disciplinares expulsivas.
E, desse modo, tais normas violam o princípio que se extrai as disposições
conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 47.º, 53.º e 266.º da
Constituição, que o Acórdão n.º 666/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
volume 29.º, página 349) enunciou como segue: «as normas de direito disciplinar
que prevejam medidas expulsivas (...) têm que conter um grau de precisão tal
que permita identificar o tipo de comportamentos a que elas podem aplicar‑se».
Foi essa determinabilidade que a Assembleia da República consagrou no citado
artigo 21.º do RD/GNR.
Nesse Acórdão n.º 666/94, o Tribunal recordou a jurisprudência da Comissão
Constitucional sobre a matéria e citou o Acórdão n.º 282/86, no qual se
sublinhara que «quando as penas envolvidas implicarem a privação ou restrição
de um direito fundamental», «as regras constitucionais que condicionam e
limitam tais restrições – designadamente o princípio da proporcionalidade
(artigo 18.º, n.º 2) – implicam que tais penas só sejam previstas para situações
que justifiquem a sua gravidade». E, depois de referir que a regra da tipicidade
das infracções só vale, qua tale, no domínio do direito penal, pois as suas
exigências fazem‑se sentir em menor grau no domínio do direito disciplinar, em
que as infracções não têm que ser inteiramente tipificadas, acrescentou o
aresto:
«Simplesmente, num Estado de Direito, nunca os cidadãos (cidadãos-funcionários
incluídos) podem ficar à mercê de puros actos de poder. Por isso, quando se
trate de prever penas disciplinares expulsivas – penas cuja aplicação vai
afectar o direito ao exercício de uma profissão ou de um cargo político
(garantidos pelo artigo 47.º, n.ºs 1 e 2) ou a segurança no emprego (protegida
pelo artigo 53.º) –, as normas legais têm que conter um mínimo de
determinabilidade. Ou seja: hão‑de revestir um grau de precisão tal que permita
identificar o tipo de comportamentos capazes de induzir a inflicção dessa
espécie de penas – o que se torna evidente, se se ponderar que, por força dos
princípios da necessidade e da proporcionalidade, elas só deverão aplicar‑se às
condutas cuja gravidade o justifique (cf. o artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição).
No Estado de Direito, as normas punitivas de direito disciplinar que prevejam
penas expulsivas têm de cumprir uma função de garantia. Têm, por isso, que ser
normas delimitadoras.
É que a segurança dos cidadãos (e a correspondente confiança deles na ordem
jurídica) é um valor essencial no Estado de Direito, que gira em torno da
dignidade da pessoa humana – pessoa que é o princípio e o fim do poder e das
instituições (artigos 2.º e 266.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição).»
As normas sub judicio, mandando aplicar a medida de dispensa de serviço a
comportamentos que indiciem «notórios desvios dos requisitos morais, éticos,
técnico‑profissionais ou militares que lhe são exigidos pela sua qualidade e
função» (artigo 94.º, n.º 2) – é dizer: a factos que levem «à invocação de
falta» de «bom comportamento militar e cívico», de «espírito militar» ou de
«aptidão técnico‑profissional» – não fornecem, pois, à entidade com competência
para aplicar tal medida «um critério de decisão que lhe permita agir com
segurança no momento de avaliar este ou aquele comportamento desviante», do
mesmo modo que «não possibilitam, em termos razoáveis, o controlo judicial das
decisões assim tomadas – o que tudo significa que não defendem os seus
destinatários contra o arbítrio» (as palavras são do citado Acórdão n.º 666/94).
Não cumprindo tais normas, em termos razoáveis, a função de garantia, elas são
inconstitucionais, por violação do princípio que atrás se indicou.
Comparem‑se essas normas com o artigo 21.º do RD/GNR e veja‑se qual o critério
actualmente exigido pelo ordenamento jurídico no seu todo.
Tendo‑se concluído pela inconstitucionalidade material das normas sub judicio, o
reclamante julga desnecessário analisar se, ao editá‑las, o Governo invadiu a
reserva parlamentar.
Em conclusão: as normas aqui sub judicio – ou seja: a norma constante do artigo
94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, aprovada pelo Decreto‑Lei
n.º 231/93, de 26 de Junho (com excepção do seu n.º 3 e do segmento do n.º 1
referente à dispensa do serviço a pedido do militar), e a que consta do artigo
75.º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicava (aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho), com excepção das alíneas b) e c) do seu
n.º 1 – são inconstitucionais: elas violam o princípio que se extrai dos artigos
2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 47.º, 53.º e 266.º da Constituição, no
entendimento e com o sentido interpretativo que foram aplicadas pelo STA nos
presentes autos.
Termos em que e nos melhores de direito com o mui douto suprimento de VV.
Ex.ªas:
a) Deve a decisão sumária reclamada ser revogada e substituída por outra que
declare que a norma constante do artigo 94.º da Lei Orgânica da Guarda Nacional
Republicana, aprovada pelo Decreto‑Lei n.º 231/93, de 26 de Junho (com excepção
do seu n.º 3 e do segmento do n.º 1 referente à dispensa do serviço a pedido do
militar), e a que consta do artigo 75.º do Estatuto dos Militares da Guarda
Nacional Republicana (aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 265/93, de 31 de Julho), com
excepção das alíneas b) e c) do seu n.º 1, são inconstitucionais: elas violam o
princípio que se extrai dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 47.º, 53.º e
266.º da Constituição, no entendimento e com o sentido interpretativo que foram
aplicadas pelo STA nos presentes autos;
b) Deve conhecer‑se e dar‑se provimento ao recurso, com todas as consequências
legais.”
1.3. O recorrido (Ministro de Estado e da Administração
Interna), notificado da reclamação, não apresentou resposta.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O reclamante começa por divergir da qualificação como
“simples” da questão de constitucionalidade suscitada, contrapondo que a sua
complexidade é patenteada pela existência de votos de vencido apostos ao Acórdão
n.º 481/2001. Porém, é a própria LTC, no seu artigo 78.º‑A, n.º 1, que equipara
“questão simples” a questão já anteriormente decidida pelo Tribunal
Constitucional, sem condicionar essa equiparação à inexistência de polémica ou
de divisão de opiniões entre os juízes do Tribunal Constitucional. A existência
de anterior decisão do Tribunal Constitucional sobre a específica questão de
constitucionalidade suscitada – reforçadamente quando, como no caso ocorre,
essa decisão é do Plenário do Tribunal – permite a consideração da questão como
simples, mesmo que tivesse sido tangencial a maioria dos juízes que fez
vencimento (e, no presente caso, aliás, essa maioria foi de nove votos contra
dois). Saliente‑se, ainda, que a doutrina do Acórdão n.º 481/2001 (do Plenário)
foi posteriormente reiterada no Acórdão n.º 235/2002 (da 3.ª Secção), votado por
unanimidade, incluindo os dois juízes que haviam votado vencido no Acórdão n.º
481/2001.
Depois, não ocorre qualquer violação do contraditório por a
Decisão Sumária ora reclamada ter sido proferida sem prévia audição do
recorrente. Conforme constitui orientação uniforme deste Tribunal (cf., por
último, o Acórdão n.º 283/2006, que trata desenvolvidamente da questão), no
regime da LTC posterior à alteração introduzida pela Lei n.º 13‑A/98, não existe
audição prévia à prolação das Decisões Sumárias do relator, regime este que “não
viola qualquer norma ou princípio constitucional, na medida em que sempre é
permitida reclamação para a conferência (de que, aliás, se tem tomado
conhecimento mesmo quando não apareça fundamentada e se limita a expressar a
discordância com a decisão sumária), reclamação, essa, na qual o recorrente pode
expor os motivos pelos quais entende que deve tomar‑se conhecimento do recurso”
ou alterar‑se o sentido do juízo de constitucionalidade formulado.
Por outro lado, o objecto do recurso de constitucionalidade
respeita a normas dos diplomas de 1993, que foram aplicados no acto
administrativo (o despacho do Ministro da Administração Interna, de 4 de Janeiro
de 1999), alvo de recurso contencioso, normas essas que foram também as
aplicadas no acórdão ora recorrido. Por isso, são irrelevantes as
considerações tecidas pelo reclamante tendo por suporte o Regulamento de
Disciplina da GNR, aprovado pela Lei n.º 145/99, de 1 de Setembro, a cuja
existência o Acórdão n.º 481/2001 faz explícita alusão, mas cujas normas não
integravam o objecto do recurso de constitucionalidade decidido por esse
Acórdão, tal como não integram o do presente recurso.
Por último, lida a extensa reclamação do recorrente, nela
não se detecta a apresentação de qualquer argumento novo que não tivesse sido
já considerado no Acórdão n.º 481/2001. Na verdade, aquele Acórdão,
sucessivamente, considerou não ocorrer violação: (i) do princípio da segurança
no emprego, transcrevendo pertinentes passagens dos Acórdãos n.ºs 504/2000
(acórdão‑fundamento) e 26/2001; (ii) do princípio da proporcionalidade (a que é
reconduzível o princípio da justiça), reproduzindo o n.º 5 do Acórdão n.º
504/2000 e passagens do Acórdão n.º 26/2001; (iii) do princípio da
determinabilidade, com argumentação própria; (iv) da reserva de competência
legislativa da Assembleia da República, quer por a matéria versada não se
integrar nessa reserva, quer porque, mesmo que se integrasse, as normas em causa
não terem natureza inovatória, transcrevendo os n.ºs 2.1. e 2.2. do Acórdão n.º
504/2000; e (v) do princípio da igualdade, reproduzindo o n.º 4 do mesmo
Acórdão. As razões que fundamentaram esses juízos, assumidas na Decisão Sumária
reclamada, merecem inteiro acolhimento e conduzem ao indeferimento da
reclamação.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 31 de Maio de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060349.html ]