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Processo n.º 376/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de Fevereiro de
2006, que negou provimento ao recurso por ele deduzido contra o despacho da
Juíza do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, de 4 de Outubro de 2005, que
indeferiu “arguição de irregularidade/nulidade” do despacho que lhe aplicou a
medida de prisão preventiva.
Em 20 de Setembro de 2005, o recorrente foi detido, em
execução de mandado de detenção emitido, em 28 de Março de 2005, pelo Ministério
Público, nos termos do disposto nos artigos 191.º, n.º 1, 193.º, 195.º, 196.º,
202.º, n.º 1, alínea a), 204.º, alíneas a), b) e c), 257.º, n.º 1, e 258.º do
Código de Processo Penal (CPP), “por haver fortes indícios de ter praticado um
crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido nos termos do artigo
21.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, ao qual corresponde a
pena de 4 a 12 anos de prisão”.
Em 21 de Setembro de 2005, o recorrente foi sujeito ao
primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo sido assistido por
mandatário por ele constituído. No termo do interrogatório foi‑lhe aplicada a
medida de coacção de prisão preventiva, promovida pelo Ministério Público, sem
que ao arguido ou ao seu defensor tivesse sido dada oportunidade de se
pronunciarem sobre essa promoção e sem que se tivesse invocado razão de
impossibilidade ou inconveniência dessa audição.
Por fax expedido em 26 de Setembro de 2005, o arguido veio
arguir a “irregularidade/nulidade” desse despacho, invocando que lhe devia ter
sido permitido pronunciar‑se sobre a medida de coacção que lhe veio a ser
aplicada, para além de o dito despacho ser nulo por falta de fundamentação
quanto à impossibilidade ou inconveniência dessa audição.
Por despacho de 4 de Outubro de 2005, a Juíza de Instrução
Criminal indeferiu, por extemporânea, essa arguição, dado que, implicando a
denunciada omissão uma irregularidade, que não uma nulidade, deveria ter sido
arguida no próprio acto, o que não ocorrera – consignando‑se que o mandatário do
arguido “assistiu não só à prolação da douta promoção, como do respectivo
despacho que lhe foi de imediato notificado, devido a estar presente no próprio
acto”. Mais acrescentou que, em seu entendimento, nem sequer fora cometida
qualquer irregularidade, uma vez que o artigo 194.º, n.º 1, do CPP apenas impõe
que, antes de o juiz decidir sobre a aplicação de medida de coacção, ocorra
promoção do Ministério Público, sendo “a audição do arguido previamente à
aplicação de qualquer medida de coacção (…) uma mera faculdade concedida ao juiz
que, casuisticamente, decidirá se deve ou não utilizá‑la”.
Desse despacho de 4 de Outubro de 2005, que indeferiu a
arguição de nulidade, interpôs o arguido recurso para o Tribunal da Relação do
Porto, que subiu em separado. [Foi também interposto recurso do despacho de 21
de Setembro de 2005, que decretou a prisão preventiva, cujo desfecho não está
documentado nos presentes autos].
A motivação do recurso relativo ao despacho de 4 de Outubro
de 2005 termina com a formulação das seguintes conclusões:
“1.ª – Não foi permitida ao arguido, através do seu defensor, pronunciar‑se
sobre a medida de coacção prisão preventiva, promovida pelo Ministério Público,
o que impossibilitou que exercesse o seu direito de defesa.
2.ª – Verificou‑se, por isso, a nulidade prevista na alínea c) do artigo
119.º do CPP e nos artigos 18.º e 32.º, n.º 1, da CRP, por violação directa de
uma norma constitucional.
3.ª – Violou‑se em concreto o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, porque ao
arguido, através do seu defensor, não foi permitido [pronunciar-se] antes de uma
decisão judicial que implicou a restrição de direitos e da sua liberdade.
4.ª – Por via do n.º 1 do artigo 18.º da CRP, o n.º 1 do artigo 32.º da CRP
é directamente aplicável, por se estar perante uma situação que se prende com a
liberdade de um cidadão.
5.ª – Repare‑se que o arguido foi preso preventivamente sem que pudesse ser
defendido pelo seu advogado.
6.ª – Acresce que o despacho censurado nem sequer invoca, quanto mais
fundamenta, a desnecessidade ou impossibilidade em o arguido exercer o seu
direito de defesa e de contraditar o alegado pelo Ministério Público.
7.ª – É inconstitucional a interpretação dos artigos 58.º, n.º 1, alínea b),
61.º, alíneas b) e e), 63.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 1, e 194.º, n.º 2, do
CPP, segundo a qual não é permitido ao arguido, através do seu defensor, em
primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por mandado de detenção
emitido fora de flagrante delito pelo Ministério Público, pronunciar‑se sobre a
medida de coacção promovida, especialmente tratando-se da prisão preventiva.
Esta interpretação diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas
dos artigos 27.º e 28.º, n.º 4, nega garantias de defesa previstas no artigo
32.º, n.º 1, impede o contraditório e afronta o princípio da proporcionalidade
ínsito no artigo 18.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
8.ª – Caso não se entenda que a situação descrita tipifica a nulidade atrás
exposta, estamos sempre perante uma irregularidade tempestivamente arguida.
9.ª – No douto despacho que aplicou a medida de coacção não é invocado a
desnecessidade ou inconveniência na audição do arguido e, muito menos, se
fundamenta.
10.ª – Pelo que se verifica uma completa ausência de decisão desta questão
– n.º 2 do artigo 194.º do CPP.
11.ª – Mas podia ter sido ouvido através do seu defensor, uma vez que ambos
estavam presentes e não vislumbra qualquer inconveniência.”
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de
Fevereiro de 2006, foi negado provimento ao recurso, desenvolvendo‑se, para
tanto, a seguinte fundamentação:
“De acordo com o que dispõe o artigo 194.º, n.ºs 1 e 2, de Código de
Processo Penal, a aplicação de medidas de coacção é precedida, sempre que
possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do
primeiro interrogatório judicial.
Temos por impressivo que esta expressão normativa consagra ou tem como
pressuposta, quanto à audição do arguido, uma verdadeira regra, que somente
cede (revestindo‑se, então, como excepção) quando tal não for possível ou se
perspectivar como inconveniente.
É exactamente isto que nos ensinam Germano Marques da Silva, in Curso de
Processo Penal, vol. II, pág. 254: «... uma medida de coacção representa
sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou
em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes
tenha sido dada a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou
enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar»; e Maria João
Antunes, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, pág. 1250: «na
medida em que o contraditório é uma garantia de defesa do arguido, é de conceber
a audição deste como regra geral do procedimento de aplicação da medida de
coacção: a aplicação da medida de coacção só será impossível se tiverem sido
esgotadas as diligências susceptíveis de assegurar a audição do arguido, aqui
incluída a detenção, e inconveniente se a audição puder frustrar as exigências
processuais de natureza cautelar que se façam sentir no caso concreto».
Neste enquadramento, então, ou se cumpre a regra (e leva‑se a cabo audição
do arguido) ou se aduz a excepção (e se fundamenta a impossibilidade ou
inconveniência dessa audição).
No caso, nem se deu cumprimento à regra, nem se aduziu a excepção.
Mas tal ocorreu porque, segundo consta do despacho sob recurso, «... a lei
não obriga em parte alguma, apenas prevê se possível e necessária, a presença
do mandatário ou defensor e, muito menos, que os mesmos se pronunciem, após
terminus do interrogatório dos arguidos, aquando da prolação da promoção ou do
... despacho que determina a medida entendida adequada».
Aqui chegados, fácil é a constatação de que entre este entendimento e esse
outro (o nosso) há uma divergência, substancial, que se expressa, em termos
claros, do seguinte modo: além, é indispensável tomar posição expressa sobre a
audição do arguido (dando‑lhe efectivação ou justificando a sua negação);
aquém não se tem de tomar posição por se não estar perante uma legal imposição.
Ora, em coerência, de acordo com o entendimento que perfilhamos, a
«ausência» (de audição do arguido ou de decisão sobre a sua impossibilidade ou
inconveniência) que acima se mencionou corresponde à inobservância daquela
disposição legal (artigo 194.º, n.º 2, de Código de Processo Penal).
Então, há que ver o que ela determina.
As nulidades estão sujeitas ao princípio da legalidade, pois, como estipula
o artigo 118.º, «a violação ou a inobservância das disposições da lei ou do
processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente
cominada na lei» (n.º 1) e «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o
acto ilegal é irregular» (n.º 2).
Aquela omissão não está prevista, na lei processual penal, como
determinando uma nulidade.
Daí que, de acordo com a mesma lei, se tenha de ver como irregularidade.
Então, intercede o artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que
dispõe que «qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do
acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver
sido arguida pelos interessados no próprio acto ...».
Ora, o que aqui se não discute é que a irregularidade em questão não foi
arguida no próprio acto (interrogatório judicial de arguido detido) quando o
podia ter sido (o mandatário do arguido estava presente).
O que torna fácil a conclusão: aquela inobservância do artigo 194.º, n.º 2,
do Código de Processo Penal, constituindo uma irregularidade, não acarreta a
atinente invalidade por a arguição respectiva não ter sido feita atempadamente.
O arguido obtempera que a interpretação que o despacho sob recurso deu ao
artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal padece de
inconstitucionalidade, já que violadora de normas constitucionais (indica, a
propósito, as contidas nos artigos 27.º, 28.º, n.º 4, 32.º, n.º 1, e 18.º da
Constituição da República Portuguesa), e que, por isso, tal («ausência de
audição») configuraria uma nulidade insanável.
O primeiro rege sobre o direito à liberdade e à segurança.
O segundo estatui sobre a prisão preventiva.
O terceiro regula as garantias de processo criminal.
O quarto contempla a força jurídica dos preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias.
Há que dizer, liminarmente, que se não vê como essa interpretação do artigo
194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal colide com as duas primeiras dessas
normas constitucionais, de modo a «diminuir a extensão e alcance do seu conteúdo
essencial» (que, de todo o modo, não especifica), pois a primeira, e para o que
ora importa (seu n.º 4), somente impõe a informação, imediata e de forma
compreensível, das razões da prisão e dos seus direitos, e a segunda, igualmente
para o que presentemente releva (seu n.º 1), tem a ver, e só, com a submissão
da detenção a apreciação do juiz, para determinado efeito (o que importa:
imposição de medida de coacção), no âmbito da qual é obrigação daquele conhecer
das causas que a determinaram e comunicá‑las ao arguido, interrogando‑o e
dando‑lhe oportunidade de defesa (sobre elas, naturalmente).
Já quanto à terceira (e à quarta, por incidência positiva, necessária),
pode‑se dizer, em tese, que essa interpretação comprime o que se pode ter por
garantias de defesa (no que se refere ao contraditório, especificamente, o n.º 5
desse artigo 31.º, não o reporta a situações como a presente), pela singela
razão de que não há lugar (necessariamente) à dita audição – como ensina Jorge
Miranda, in Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, pág. 354, são garantias de
defesa «todos os meios que em concreto se mostrem necessários para que o arguido
se faça ouvir pelo juiz sobre as provas e razões que apresenta em ordem a
defender‑se da acusação que lhe é movida», sendo que «os direitos a uma ampla e
efectiva defesa não respeitam apenas à decisão final, mas a todas as que
impliquem restrições de direitos ou possam condicionar a solução definitiva do
caso».
Mas não de modo a ter essa compressão como excessiva, desmesurada,
inaceitável, significativa, já que o arguido (o que é, neste domínio,
significativo, assim dando valia ao que é essencial nas garantias de defesa) é
submetido a interrogatório judicial, a coberto do qual pode (querendo), e para
lá do direito de recurso, prestar declarações sobre os factos que estão em
destaque e que vão sustentar, na base, os indícios que determinam a conformação
da medida de coacção a aplicar, deve ser notificado da decisão que aplica a
medida de coacção pelo modo exigente que consta do artigo 194.º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, e, a todo o tempo, pode ser revogada ou alterada,
como se colhe do artigo 212.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 3, do Código de
Processo Penal (como emanação do princípio de adequação e proporcionalidade
consagrado no artigo 193.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal), isto,
claro, para lá da eventualidade (por impossibilidade ou inconveniência) de tal
audição não vir a ocorrer.
Dito isto, mais se deve dizer, em conclusão: não se verifica a suscitada
inconstitucionalidade e, por isso, a invocada nulidade insanável.”
É contra este acórdão que, como se referiu, vem interposto
o presente recurso, tendo por objecto, de acordo com o respectivo requerimento
de interposição, a questão da inconstitucionalidade, “por contender com o
disposto nos artigos 18.º, 27.º, 28.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP”, da
interpretação, que se imputa ao acórdão recorrido, dos “artigos 61.º, alíneas
a), b) e c), 118.º, 119.º, 120.º, 123.º e 194.º, n.º 2, todos do CPP, com o
sentido de que, no acto do primeiro interrogatório de arguido detido e após este
ter prestado declarações, requerendo o Ministério Público a aplicação da medida
de coacção prisão preventiva, a não audição do arguido sobre a aplicação da
medida de coacção e não fundamentação da sua desnecessidade ou inconveniência,
constitui uma mera irregularidade, não sendo as normas constitucionais
referentes aos direitos, liberdades e garantias directamente aplicáveis ao caso
concreto”.
No Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou
alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – Não foi permitido ao arguido, através do seu defensor, pronunciar‑se sobre
a medida de coacção prisão preventiva, promovida pelo Ministério Publico em
sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido – o que
impossibilitou que exercesse o seu direito de defesa.
2 – A situação ocorrida não pode consistir numa simples irregularidade,
reservada para interesses de menor gravidade.
3 – Então, salvo o devido respeito por diversa opinião, estamos na presença de
uma nulidade insanável, prevista na alínea c) do artigo 119.º do CPP e ainda por
via directa da violação de uma norma de natureza constitucional – artigos 18.º e
32.º da CRP.
4 – Violou‑se o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, porque ao arguido, através do seu
defensor, não foi permitido que, antes de uma decisão judicial que implicou a
restrição de direitos e da sua liberdade, exercesse a sua defesa, contraditando
a posição do Ministério Público – o que coloca ainda em causa o principio da
igualdade das partes.
5 – Por via do n.º 1 do artigo 18.º da CRP, o n.º 1 do artigo 32.º da CRP é
directamente aplicável, por se estar perante uma situação que se prende com a
liberdade de um cidadão e os seus direitos de defesa.
6 – É inconstitucional a interpretação dos artigos 58.º, n.º l, alínea b), 61.º,
alíneas b) e e), 63.º, n.º 1, alínea a), 64.º, n.º 1, e 194.º, n.º 2, do CPP,
segundo a qual não é permitido ao arguido, através do seu defensor, em primeiro
interrogatório judicial de arguido detido por mandado de detenção emitido fora
de flagrante delito pelo Ministério Público, pronunciar‑se sobre a medida de
coacção promovida, especialmente tratando‑se da prisão preventiva. Esta
interpretação diminui a extensão e alcance do conteúdo essencial das normas dos
artigos 27.º e 28.º, n.º 4, nega garantias de defesa previstas no artigo 32.º,
n.º 1, impede o contraditório e afronta o principio da proporcionalidade ínsito
no artigo 18.º, todos da Constituição da Republica Portuguesa.
7 – Está em causa a liberdade do arguido e o seus direitos de defesa, pelo que,
nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da CRP, a violação daqueles princípios e
direitos implica que as normas constitucionais que os protegem sejam
directamente aplicáveis, configurando‑se como uma nulidade insanável.
8 – Prescindir da importância dos valores, direitos e interesses em causa, para
qualificar como irregularidade a consequência da sua violação, é configurar o
processo penal com injusto, não equitativo, e, como tal, lesivo dos direitos de
defesa do arguido, garantidos pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP.”
O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional contra‑alegou, concluindo:
“1 – Não é inconstitucional uma interpretação normativa segundo a qual, no
acto de interrogatório judicial de arguido detido, devidamente assistido por
advogado com procuração nos autos, a sua não audição relativamente à aplicação
da medida de prisão preventiva, promovida pelo Ministério Público, acompanhada
pela ausência de fundamentação quanto à sua desnecessidade e inconveniência,
constitui mera irregularidade prevista no artigo 123.º, com referência à omissão
do estabelecido no artigo 194.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
2 – Termos em que deverá não proceder o presente recurso.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Cumpre, antes de mais, precisar o objecto do presente
recurso, cuja delimitação é, desde logo, feita no respectivo requerimento de
interposição (sem possibilidade de alargamento nas subsequentes alegações), mas
que, além disso, se há‑de circunscrever à dimensão normativa que,
coincidentemente, tenha sido arguida de inconstitucional pelo recorrente e
tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.
Nos autos, foram defendidas, sobre a questão ora em causa,
três posições: (i) segundo a Juíza de Instrução, em rigor, nem sequer era devida
a audição do arguido sobre a promoção do Ministério Público quanto à medida de
coacção a aplicar; (ii) segundo o arguido, essa audição é devida (a menos que se
invocasse e justificasse a sua impossibilidade ou inconveniência), gerando a sua
omissão uma nulidade insuprível; e (iii) segundo o acórdão recorrido, essa
audição é devida (salvo invocação fundamentada de impossibilidade ou
inconveniência), mas a sua omissão é considerada mera irregularidade, que se
sana se não for arguida no próprio acto.
É esta última a dimensão normativa cuja conformidade
constitucional cumpre apreciar, quer por ter sido ela a identificada no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (nos
termos do qual se considerava contender com o disposto nos artigos 18.º, 27.º,
28.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP a interpretação reportada aos artigos
61.º, alíneas a), b) e c), 118.º, 119.º, 120.º, 123.º e 194.º, n.º 2, todos do
CPP, com o sentido de que constitui uma mera irregularidade a não audição do
arguido, sem fundamentação da desnecessidade ou inconveniência dessa audição,
sobre a aplicação da medida de coacção requerida pelo Ministério Público no
termo do primeiro interrogatório de arguido detido), quer por ter sido a
aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido.
Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão de
constitucionalidade da interpretação das normas dos artigos 61.º, n.º 1, alínea
b) (“1. O arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as
excepções da lei, dos direitos de: (…) b) Ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz
de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o
afecte; (…)”, 118.º, n.ºs 1 e 2 (“1. A violação ou a inobservância das
disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando
esta for expressamente cominada na lei. 2. Nos casos em que a lei não cominar
a nulidade, o acto ilegal é irregular. (…)”), 119.º (que enumera as nulidades
insanáveis, referindo, na alínea c), “a ausência do arguido ou do seu defensor,
nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência”), 120.º (que enumera as
nulidades dependentes de arguição), 123.º, n.º 1 (“1. Qualquer irregularidade
do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos
subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no
próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a
contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo
ou intervindo em algum acto nele praticado”), e 194.º, n.º 2 (“2. A aplicação
referida no número anterior [aplicação de medida de coacção, por despacho do
juiz, sob promoção do Ministério Público] é precedida, sempre que possível e
conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro
interrogatório judicial”), do CPP, no sentido de que constitui mera
irregularidade, a arguir no próprio acto, a prolação de despacho judicial a
determinar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva do arguido, na
sequência de promoção do Ministério Público, sem que ao arguido, representado
por mandatário constituído, presente ao acto, tenha sido dado oportunidade de
se pronunciar sobre essa promoção, e sem se invocar razão justificativa da
impossibilidade ou inconveniência dessa audição.
2.2. O Tribunal Constitucional ainda não foi chamado a
pronunciar‑se sobre a específica questão de inconstitucionalidade ora em causa,
mas podem encontrar‑se, em anteriores decisões, elementos úteis para a
apreciação do presente recurso, designadamente versando sobre casos em que
igualmente se discutia a constitucionalidade da consequência (nulidade
insanável, nulidade dependente de arguição ou mera irregularidade) ligada a
nulidades processuais praticadas na presença do arguido e do seu defensor, a
saber:
– Acórdão n.º 429/95, que não julgou inconstitucional, face
aos princípios do contraditório e das garantias de defesa do arguido, constantes
dos n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da CRP, as normas do artigo 343.º, n.º 4,
conjugada com a do artigo 120.º, do CPP, interpretadas no sentido de que a
nulidade prevista na primeira das referidas normas (“Respondendo vários
co‑arguidos, o presidente determina se devem ser ouvidos na presença uns dos
outros; em caso de audição separada, o presidente, uma vez todos os arguidos
ouvidos e regressados à audiência, dá‑lhes resumidamente conhecimento, sob pena
de nulidade, do que se tiver passado na sua ausência”) é sanável;
– Acórdão n.º 208/2003, que não julgou inconstitucionais,
face ao artigo 32.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 363.º e 123.º do CPP,
interpretadas no sentido de que a omissão da documentação das declarações orais
prestadas em audiência perante o tribunal colectivo constitui mera
irregularidade, que tem de ser invocada até ao final da audiência em 1.ª
instância; e
– Acórdão n.º 203/2004, que julgou inconstitucional, por
violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, a norma constante do artigo 123.º, n.º
1, do CPP, interpretada no sentido de ela impor a arguição, no próprio acto, de
irregularidade cometida em audiência de julgamento (no caso, a falta de
documentação da prova produzida em julgamento por deficiência técnica de
videoconferência), perante tribunal singular, independentemente de se apurar da
cognoscibilidade do vício pelo arguido, agindo com a diligência devida.
2.3. Antes de referenciarmos essas decisões, interessará
precisar os parâmetros constitucionais relevantes no presente caso, já que o
recorrente invocou o artigo 18.º (enquanto consagrador do princípio da
proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais), 27.º (sem indicação
específica de qualquer um dos seus cinco números), 28.º (com menção específica
do seu n.º 4) e 32.º, n.º 1, da CRP.
Ora, entende‑se que, tal como nos anteriores acórdãos
citados, o princípio constitucional mais relevante é o das garantias de defesa,
consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, associado ao princípio do
contraditório e sempre iluminado pelo princípio da proporcionalidade. Na
verdade, a dimensão normativa ora em causa não contende directamente com o
direito à liberdade (com este estão mais directamente ligadas as normas
utilizadas no despacho que decretou a prisão preventiva, objecto de diferente
recurso), consagrado e desenvolvido no artigo 27.º, nem com a disposição do n.º
4 do artigo 28.º, invocada pelo recorrente, que estabelece que a prisão
preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos pela lei. Deste preceito,
poderia, à primeira vista, surgir com relevância o disposto no seu n.º 1, que
estabelece: “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito
horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de
medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a
determinaram e comunicá‑las ao detido, interrogá‑lo e dar‑lhe oportunidade de
defesa”. No entanto, há que distinguir, como realidades processuais distintas
que são, por um lado, o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a
que respeita este artigo 28.º, n.º 1, da CRP, e se encontra regulado no artigo
141.º do CPP, relativamente ao qual nenhuma questão de constitucionalidade foi
suscitada, e, por outro lado, a audição do arguido sobre a promoção que o
Ministério Público, depois de findo o interrogatório do arguido, formule quanto
à medida de coacção a aplicar, a que se refere o artigo 194.º, n.º 2, do CPP,
ora em causa.
A questão de constitucionalidade em apreço há-de, pois, ser
apreciada tendo fundamentalmente em causa o princípio das garantias de defesa,
consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, conjugado com o princípio do
contraditório, tendo, a este propósito, este Tribunal reiteradamente expendido o
entendimento que o citado Acórdão n.º 429/95 formulou do seguinte modo:
“9 – Nos termos do artigo 32.º da Constituição, «o processo criminal
assegurará todas as garantias de defesa» (n.º 1), estabelecendo o n.º 5 do
preceito que «o processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de
julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao
princípio do contraditório».
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, 1993, Coimbra, p. 202), «a fórmula do
n.º 1 é, sobretudo, uma expressão condensada de todas as normas restantes deste
artigo, que todas elas são, em última análise, garantias de defesa. Todavia,
este preceito introdutório serve também de cláusula geral englobadora de todas
as garantias que, embora não explicitadas nos números seguintes, hajam de
decorrer do princípio da protecção global e completa dos direitos de defesa do
arguido em processo criminal».
Porém, ao invocar‑se no preceito em questão o próprio princípio da defesa,
está‑se a chamar à colação o «núcleo essencial» de tal princípio, podendo assim
atribuir‑se a tal norma «um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode
recorrer directamente, em caso limite, para inconstitucionalizar certos
preceitos da lei ordinária» (cf. Figueiredo Dias, A Revisão Constitucional, o
Processo Penal e os Tribunais, p. 51, e o Acórdão n.º 164, da Comissão
Constitucional, Apêndice ao Diário da República, I Série, de 30 de Dezembro de
1986).
A norma do n.º 1 do artigo 32.º, enquanto «cláusula geral» que permita
identificar outras possíveis concretizações judiciais do princípio da defesa não
referenciadas no preceito, não pode deixar de configurar o processo criminal
como um due process of law que considere ilegítimas quer normas processuais quer
procedimentos decorrentes das mesmas que impliquem um encurtamento inadmissível
das possibilidades de defesa do arguido (neste sentido, Acórdãos n.ºs 337/86 e
61/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º e 11.º vols., pp. 277 e 611,
respectivamente).
Por outro lado, o princípio do contraditório, expressamente referido no n.º
5 do artigo 32.º da Constituição, deve subordinar não só a audiência de
julgamento como também todos os actos instrutórios que a lei determinar.
O processo penal de um Estado de direito deve realizar primordialmente dois
objectivos essenciais: por um lado, permitir que o Estado realize o direito de
punir e, por outro lado, permitir que, na realização de tal finalidade, sejam
concedidas aos cidadãos as garantias indispensáveis para os proteger contra
eventuais abusos de tal poder de punir. Para concretizar tais fins, as garantias
de defesa impõem a observância de princípios processuais criminais
constitucionalizados, como é o caso do princípio do acusatório (um dos
princípios estruturantes da constituição processual penal), do princípio do
contraditório, do princípio da igualdade de armas, dos princípios da oralidade
e da imediação.
No que respeita ao princípio do contraditório aqui em questão, escrevem
Gomes Canotilho e Vital Moreira (ibidem, p. 206): «Relativamente aos
destinatários ele significa: a) dever e direito de o juiz ouvir as razões das
partes (da acusação e da defesa) em relação a assuntos sobre os quais tenha de
proferir uma decisão; b) direito de audiência de todos os sujeitos processuais
que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir‑lhes uma
influência executiva no desenvolvimento do processo; c) em particular, o direito
de o arguido intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os
testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos
trazidos ao processo, o que impõe designadamente que ele seja o último a
intervir no processo (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 54/87 e
154/87)».
Os mesmos autores referem que «quanto à sua extensão processual, o princípio
abrange todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição, e em especial a
audiência de discussão e julgamento e os actos instrutórios que a lei
determinar, devendo estes ser seleccionados sobretudo de acordo com o princípio
da máxima garantia de defesa do arguido» (ibidem).
O princípio traduz‑se, assim, na estruturação da audiência e dos outros
actos instrutórios que a lei determinará, como uma discussão entre a acusação e
a defesa, em que se procura também realizar a igualdade de armas entre os
sujeitos do processo, cada um apresentando os seus argumentos e as suas provas,
submetendo uns e outros ao controlo das razões e das provas apresentadas pelos
outros sujeitos, assim participando activamente na formação da decisão que vier
a ser tomada pelo juiz.”
2.4. Este mesmo Acórdão n.º 429/95, a propósito do regime
das invalidades processuais penais, apresentou a seguinte síntese:
“7 – O artigo 118.º do CPP estabelece que «a violação ou a inobservância
das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando
esta for expressamente cominada na lei» (n.º 1); quando assim não suceder, o
acto ilegal é irregular (n.º 2). A norma enuncia o princípio da tipicidade ou
da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que
têm como consequência a nulidade do respectivo acto, sendo razões de economia
processual as que baseiam tal diferenciação.
Dentro das nulidades, o Código de Processo Penal distingue as nulidades
insanáveis (ou absolutas), a que se refere o artigo 119.º, e as nulidades
dependentes de arguição (ou nulidades relativas), a que se referem os artigos
120.º e 121.º. O artigo 122.º regula os efeitos de declaração de nulidade e o
artigo 123.º estabelece o regime das irregularidades.
As nulidades insanáveis são as que constam do artigo 119.º do CPP e ainda as
que forem, como tal, identificadas em outras disposições do código. Os
comportamentos elencados nas seis alíneas do artigo 119.º respeitam à
constituição do tribunal colectivo ou às regras que regulam a sua composição
(alínea a)), à falta de promoção do processo pelo Ministério Público e à
ausência deste em actos a que devia estar presente (alínea b)), à ausência do
arguido e seu defensor quando devam estar presentes (alínea c)), à falta de
inquérito ou de instrução quando sejam obrigatórios (alínea d)), à violação das
regras de competência do tribunal, com ressalva do n.º 2 do artigo 32.º (alínea
e)), e, por fim (alínea f)), refere a norma, como fundamento de nulidade
insanável, o emprego de forma de processo especial em casos não previstos
legalmente.
De acordo com o n.º 1 do artigo 120.º, «qualquer nulidade diversa das
referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita
à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte».
Ao contrário das nulidades ditas insanáveis, as restantes nulidades ficam
sanadas se os interessados renunciarem expressamente à sua arguição, tiverem
aceite expressamente os efeitos do acto ou se tiverem prevalecido de faculdade a
cujo exercício o acto anulável se dirigia. Também não é possível conhecer
oficiosamente das nulidades ditas relativas, que funcionam apenas ope
exceptionis, mostrando que elas tutelam predominantemente interesses privados,
decorrendo também de tal estrutura funcional que o acto processual é
originalmente válido, assim se mantendo se e enquanto a pessoa interessada o não
invalidar, exercitando o direito de arguição. Com efeito, só podendo ser
conhecidas mediante suscitação de quem tem interesse na observância da
disposição processual violada ou omitida, se o interessado não proceder à sua
arguição dentro do prazo legalmente fixado, a lei considera o acto como válido,
pese embora o vício que o afecta.
De acordo com o preceituado no n.º 3 do artigo 120.º do CPP, são as
seguintes as regras quanto à oportunidade de arguição das nulidades relativas:
se a nulidade respeitar a acto a que o interessado assiste, deve argui‑la antes
que a realização do acto seja dada por finda; se o não fizer, fica precludida a
possibilidade de o fazer mais tarde (alínea a)); se a nulidade consistir em erro
na forma do processo, o prazo de arguição é de cinco dias a contar da
notificação do despacho que designou dia para a audiência (alínea b)); se a
nulidade disser respeito ao acto de inquérito ou de instrução a que o
interessado não tenha estado presente, o prazo de arguição é o proferimento da
decisão instrutória; não tendo havido instrução, o prazo é de cinco dias após a
notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito (alínea c)), se a
nulidade disser respeito a acto relativo a uma forma de processo especial
(sumário e sumaríssimo), o prazo da sua arguição é o início da audiência
(alínea d)).
De acordo com o preceituado no artigo 122.º do CPP, «as nulidades tornam
inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e
aquelas puderem afectar» (n.º 1), devendo a declaração de nulidade determinar
quais os actos inválidos e ordenar – se necessário e possível – a sua repetição
com custas por quem, culposamente, deu causa à nulidade (n.º 2), aproveitando
todos os actos que puderem ser salvos (n.º 3).”
2.5. Foi no contexto assim delineado que, como se referiu,
o Tribunal já foi chamado a apreciar distintas situações de invalidades
processuais praticadas na presença do arguido, assistido por defensor.
No caso do Acórdão n.º 429/95, o juízo de não
inconstitucionalidade então emitido foi assim alicerçado:
“8 – Voltando ao caso dos autos, constata-se que da acta de julgamento não
decorre que, tendo os co‑arguidos sido ouvidos separadamente, o presidente do
tribunal os tenha informado, uma vez regressados todos à audiência, do que na
sua ausência se tinha passado. Esta omissão – a ter de facto ocorrido, como os
recorrentes referem – consubstancia uma nulidade que, na falta de referência
expressa da lei, se tem de ter por uma nulidade dependente de arguição e, por
isso mesmo, sanável até ao termo da audiência, à face do Código de Processo
Penal — artigos 119.º, 120.º e 121.º.
Os recorrentes, porém, questionam esta interpretação feita na decisão,
propugnando a sua inconstitucionalidade, por entenderem que ela viola o
princípio das garantias de defesa do arguido e o princípio do contraditório,
constantes do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição, na medida em que tal
nulidade depende de arguição dentro de um prazo.
Vejamos se assim é, de facto.
9 – [transcrito supra, 2.3]
A consideração da omissão de informação por parte do presidente do tribunal
do que se passou na audiência durante a ausência dos arguidos, no caso de
prestação de declarações separadas, como nulidade dependente de arguição e
sanável se não for arguida até ao final da audiência, implicará a violação
destes princípios da defesa do arguido e do contraditório?
10 – O que os recorrentes verdadeiramente questionam é a conformidade
constitucional das normas que estabelecem nulidades relativas, dependentes de
arguição e sanáveis, designadamente quando tais nulidades resultem de violação
do princípio do contraditório e possam afectar as garantias de defesa do
arguido.
As nulidades a que se referem os artigos 118.º a 123.º do CPP reportam‑se
apenas aos vícios formais, isto é, à inobservância das prescrições legais
estabelecidas para a prática dos actos processuais. Uma vez que estes actos se
inserem e constituem a complexa unidade que é o processo, em que cada acto é
condicionado pelo precedente e condiciona o [subsequente], um acto viciado
contamina os subsequentes e pode afectar o termo do próprio processo – a
decisão. Porém, não pode ignorar‑se que, face à comunicação de um vício formal
aos actos subsequentes, os danos resultantes da declaração de nulidade podem ser
muito graves, levando inclusivamente à perda do direito que se pretende obter,
desde logo, por exemplo, por se não poderem já repetir certas provas.
Assim, exigências deste tipo levam a que o legislador não coloque todos os
vícios formais no mesmo plano e venha a graduar os seus efeitos de acordo com a
respectiva gravidade, função que tem o princípio da tipicidade dos vícios.
Ora, a omissão do dever de informação, que parece ter ocorrido nos
presentes autos, envolve claramente um vício processual que a lei qualifica de
nulidade e que, tendo ocorrido no decurso de um acto – a audiência – a que os
recorrentes estiveram presentes (salvo durante a audiência dos co‑arguidos),
tinha de ser arguida pelos interessados até ao termo da respectiva audiência – o
que não foi feito.
É manifesto que não tendo o presidente informado os arguidos do que se tinha
passado na audiência durante a sua ausência logo que todos a ela regressaram,
tal omissão podia afectar o direito de defesa de cada um dos co‑arguidos,
impedindo o exercício do direito destes de contraditarem o que fora dito, visto
tratar‑se de matéria de que lhes não fora dado conhecimento.
Mas o direito de defesa, e o direito ao contraditório que neste se tem de
considerar incluído, está, no caso, garantido pela cominação legal de uma
nulidade, cujo prazo de exercício dura tanto tempo quanto tempo durar a própria
audiência. Assim, cada um dos co‑arguidos, devidamente representado pelo
defensor, pôde, enquanto durou a audiência de discussão e julgamento da causa e
até ao seu termo, arguir tal nulidade, que, a ter‑se de facto praticado, levaria
a que o presidente reparasse a omissão praticada e assim repusesse, em pleno, o
direito de contraditar o que fora dito pelos co‑arguidos na ausência do
arguente.
Com efeito, como bem faz ressaltar o Procurador‑Geral Adjunto neste
Tribunal nas suas alegações, no processo penal existem outros valores
relevantes para além do direito da defesa à obtenção de uma sentença
absolutória:
– o dever de diligência do arguido – e, muito em particular, do defensor que
obrigatoriamente o deve assistir ao longo do processo (e da audiência) – que
obviamente deverão de imediato reagir contra as nulidades ou irregularidades
que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não
podendo naturalmente escudar‑se na sua própria negligência no acompanhamento
das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento
da lei relativamente a que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência
normal, não puderam deixar de se aperceber;
– dever de boa fé processual, que naturalmente impedirá que possam – arguido
e defensor – ser tentados a aproveitar‑se de alguma omissão ou irregularidade
porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção,
guardando‑a como um «trunfo» para, em fase ulterior do processo, se e quando tal
lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado.
Mas, para além destas considerações, o que importa ponderar é que, em casos
como o dos autos, em que o defensor esteve sempre presente em todos os actos da
audiência, o facto de a lei de processo cominar com a sanção da nulidade a
omissão do dever de informação por parte do presidente do tribunal do teor das
declarações dos co‑arguidos a que cada um deles não assistiu, logo que todos
tenham regressado à audiência, é forma suficiente de dar cumprimento ao direito
do contraditório.
Com efeito, praticada nulidade na audiência, estando presentes todos os
co‑arguidos interessados na sua eventual arguição, fica esta apenas dependente
de um acto do interessado, concedendo a lei um prazo suficientemente dilatado
para o fazer: até ao termo da audiência.
Torna‑se, assim, manifesto que o procedimento em causa, ao impor ao
interessado a arguição da nulidade dentro de um prazo razoável para poder dar‑se
plena exequibilidade ao direito de defesa do arguido não informado do teor das
declarações dos outros co‑arguidos, não implica um encurtamento inadmissível das
possibilidades de defesa do mesmo arguido. Verdadeiramente, nem sequer se
poderá falar de qualquer «encurtamento», pois o direito de contraditório apenas
necessita para se desenvolver de pleno, como se referiu, da dedução pelo
interessado da nulidade praticada.
É que a garantia do direito de defesa está ressalvada pela norma em causa;
apenas exige que seja o arguido a desencadear atempadamente tal direito,
arguindo o acto de nulo, ou logo após o cometimento da omissão da exigência
legal ou até ao termo de respectiva audiência.
Os recorrentes não deixaram, por isso, de ver garantido o seu direito de
conhecerem e de se pronunciarem sobre todos os factos, meios de prova, razões ou
argumentos carreados para a audiência de julgamento, tendo tido a possibilidade
de participarem na formação da decisão, quer pela forma positiva quer pelo seu
comportamento de, podendo arguir a nulidade em causa, não o terem feito dentro
do respectivo prazo.
Entende‑se, nestas circunstâncias, que deve improceder a arguição de
inconstitucionalidade da norma do artigo 343.º, n.º 4, conjugada com a do artigo
120.º, ambos do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que
a nulidade expressamente prevista no referido n.º 4 é sanável se arguida até ao
termo da audiência, pois tal entendimento não viola nem o princípio do
contraditório nem o das garantias de defesa, constantes dos n.ºs 1 e 5 do artigo
32.º da Constituição da República.”
No Acórdão n.º 208/2003, confrontado com a questão de saber
“se é materialmente inconstitucional, designadamente por violação do princípio
das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a
interpretação normativa dos artigos 123.º e 363.º do Código de Processo Penal,
que se traduz em considerar que a omissão de documentação das declarações orais
prestadas em audiência perante o tribunal colectivo constitui mera
irregularidade, que deve ser arguida até ao final da audiência”, o Tribunal
Constitucional, após recordar a sua jurisprudência sobre o sentido e alcance do
artigo 32.º, n.º 1, da CRP, consignou:
“Do que antecede decorre que a resposta à questão de constitucionalidade que
agora vem colocada depende da questão de saber se a imposição ao arguido de que
suscitasse, durante a audiência perante o tribunal colectivo, o vício
procedimental nela verificado e traduzido na omissão de documentação das
declarações orais nela prestadas, traduz ou não uma «diminuição inadmissível,
um prejuízo insuportável e injustificável» (para usar as palavras do citado
Acórdão n.º 61/88), das suas garantias de defesa.
Julgamos, efectivamente, que não.
Desde logo haverá que referir que a solução se justifica, manifestamente,
por evidentes razões de celeridade e economia processuais. Na realidade, não se
perceberia que, agindo o arguido ou o seu defensor com a devida diligência e boa
fé e tendo detectado o vício procedimental, ou tendo obrigação de o detectar,
nessa fase processual, pudessem deixar que a audiência continuasse a decorrer
como se nada de irregular se passasse, para só mais tarde, já em fase de
recurso, o virem então invocar.
Acresce – como, bem, evidencia o Ex.mo Procurador‑Geral Adjunto na sua
alegação – que a imposição ao arguido, necessariamente assistido no processo
por um defensor, do ónus de invocar no decurso da audiência – que, no caso dos
presentes autos, até se prolongou por vários meses – um vício procedimental que
nela está precisamente a acontecer – e, que, portanto, não deveria passar
despercebido a um acompanhamento diligente dessa fase processual –
manifestamente não implica um cerceamento inadmissível ou insuportável das suas
possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou
intolerável, em termos de consubstanciar solução constitucionalmente
censurável, na perspectiva do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Não poderá, por isso, sequer afirmar‑se que aqueles objectivos de
celeridade e economia processuais sejam, neste caso, alcançados à custa de uma
intolerável diminuição das garantias de defesa do arguido.”
Finalmente, no Acórdão n.º 203/2004, o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
CRP, a norma constante do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, interpretada no sentido
de ela impor a arguição, no próprio acto, de irregularidade cometida em
audiência de julgamento (no caso, a falta de documentação da prova produzida em
julgamento por deficiência técnica de videoconferência), perante tribunal
singular, independentemente de se apurar da cognoscibilidade do vício pelo
arguido, agindo com a diligência devida. Começando por recordar a anterior
jurisprudência do Tribunal, terminando com a citação do Acórdão n.º 208/2003,
ponderou‑se:
“Atendendo, em particular, a este último acórdão [o Acórdão n.º 208/2003],
importa salientar que decisivo para o juízo de não inconstitucionalidade ali
formulado foi o entendimento de que impende sobre o arguido ou seu defensor,
agindo com a devida diligência e boa fé, a obrigação de detectar o vício
procedimental que ocorre no decurso da audiência de julgamento perante tribunal
colectivo e consistente na omissão de documentação das declarações orais nela
prestadas.
É diversa a situação no caso em que a omissão se traduz, como se disse, na
não gravação de depoimento oral prestado em videoconferência durante uma
audiência de julgamento que decorre perante juiz singular e onde não ocorreu
renúncia ao recurso em matéria de facto.
E vale para iluminar essa mesma situação que dos autos resulta ter o
defensor do recorrente solicitado – e com insistência – à Juíza que presidia ao
julgamento a verificação do efectivo registo da gravação em perfeitas condições
técnicas, o que sempre foi recusado.
Ora, se a qualificação como «irregularidade», para efeitos do disposto no
artigo 123.º, n.º 1, do CPP, pressupõe, como se diz no acórdão do STJ de fixação
de jurisprudência n.º 5/2002, in Diário da República, I Série‑A, de 17 de Julho
de 2002, uma «violação de lei processual» que se reporta «a uma norma que tutela
interesses de menor gravidade», tal não significa que seja sempre assim, podendo
até a «irregularidade» pôr em causa a validade do acto processual, caso em que o
n.º 2 do preceito permite a sua reparação oficiosa.
Não se quer com isto dizer que, no caso, a «irregularidade» afectasse a
validade do julgamento. De todo o modo, ela pode afectar interesses ou direitos
constitucionalmente protegidos dos arguidos.
O caso é, aliás, disso exemplo, pois, segundo o recorrente – que não tinha
renunciado ao recurso em matéria de facto – era importante para a sua defesa,
por via de recurso, o depoimento que não foi registado na gravação da
videoconferência.
Mas, sendo assim, não pode deixar de se reconhecer que prescindir da
indagação sobre a diligência e zelo do interessado no conhecimento da omissão
verificada, tida como irregularidade, para decretar a intempestividade da
arguição por não ter sido feita no acto, é modelar o processo penal com um
unfair process, não equitativo, e, como tal, lesivo dos direitos de defesa do
arguido garantidos pelo artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
Mesmo que a exigência de arguição de irregularidade no próprio acto seja
eventualmente justificada por estarem em jogo «interesses de menor gravidade»,
sempre será desproporcionada a restrição daqueles direitos quando se considera
irrelevante a cognoscibilidade do vício em causa.”
2.6. No presente caso, diferentemente da situação sobre que
recaiu o Acórdão n.º 203/2004, é patente e não vem sequer questionada a
cognoscibilidade da irregularidade cometida e, por outro lado, está assente que
o arguido, assistido pelo mandatário constituído, esteve presente no acto em
que foi proferido o decretamento da prisão preventiva, sem que previamente,
sobre a promoção do Ministério Público nesse sentido, tivesse sido ouvida a
defesa nem invocada qualquer razão para considerar impossível ou inconveniente
essa audição.
Saliente‑se que defensor do arguido era um advogado por ele
constituído, o que indicia uma relação de confiança pessoal e de reconhecimento
de competência técnica por parte do arguido, e não um defensor oficioso,
designadamente defensor nomeado ad hoc para o acto.
Tratando‑se de um vício de fácil detecção, directa e
imediata, e encontrando‑se o arguido pessoalmente assistido no acto por
profissional forense por ele constituído, não se afigura que constitua um ónus
excessivo, intolerável ou desproporcionado a imposição da arguição, no próprio
acto, da irregularidade efectivamente cometida, em termos de fulminar a
interpretação normativa seguida no acórdão recorrido com um juízo de
inconstitucionalidade, por violação das garantias de defesa e dos princípios do
contraditório e da proporcionalidade.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação das normas
dos artigos 61.º, n.º 1, alínea b), 118.º, n.ºs 1 e 2, 119.º, 120.º, 123.º, n.º
1, e 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que constitui
irregularidade, a arguir no próprio acto, a prolação de despacho judicial a
determinar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva do arguido, na
sequência de promoção do Ministério Público formulada após o termo do primeiro
interrogatório judicial de arguido detido, sem que este, assistido por
mandatário por ele constituído, presente ao acto, tenha sido ouvido sobre essa
promoção, sem invocação fundamentada de impossibilidade ou inconveniência dessa
audição; e, em consequência,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 31 de Maio de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060350.html ]