Imprimir acórdão
Processo n.º 198/03
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas b)
e h) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, dos acórdãos
daquele Tribunal da Relação de Guimarães, de 21 de Outubro e de 18 de Dezembro
de 2002. São recorridos o Ministério Público e B., constituído assistente nos
autos.
Naquele primeiro acórdão, o Tribunal da Relação de Guimarães,
apreciando recurso interposto pelo ora recorrente de sentença do Tribunal
Judicial da Comarca de Vila Verde que o condenara em pena de multa e
indemnização ao assistente pela autoria de um crime de denúncia caluniosa
previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 365.º do Código Penal, decidiu julgar
manifestamente improcedente o recurso sobre a matéria de facto e confirmar a
sentença recorrida, excepto quanto aos termos da publicitação da sentença, em
que concedeu parcial provimento ao recurso. No segundo acórdão, foram apreciadas
e indeferidos o pedido de aclaração e a arguição de nulidades do primeiro.
Considera o recorrente que os referidos acórdãos:
a)-“interpretaram e aplicaram a norma do artigo 379.º, n.º 1,
alínea c) do CPP em violação dos Princípios do Estado de Direito Democrático e
do Direito de Defesa e, em especial, as normas dos artigos 2.º e 32.º, n.º 5, da
Constituição da República Portuguesa”;
b)-“interpretaram e aplicaram as normas dos artigos 412.º, n.º
4, e 420.º, n.º 1, (ambos em conjugação com o disposto no artigo 364.º [...]
todos do CPP, também em violação dos Princípios do Estado de Direito
Democrático, da Proporcionalidade, do Acesso à Justiça e do Direito de Defesa e,
em especial, as normas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º e 32.º da Constituição
da República Portuguesa”.
2. Na sequência da informação de que o recorrente não havia
respondido ao convite do relator para especificar o objecto do recurso,
constante da cota de fls. 1225, foi proferida a decisão sumária de fls. 1226 a
1229, julgando deserto o recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e não tomando conhecimento do
objecto do recurso com fundamento na alínea h) do n.º 1 do mesmo artigo 70º.
Porém, por despacho de fls. 1245, constatando-se o lapso da
informação prestada (cfr. cota de fls. 1233), anulou-se a decisão sumária e o
processado subsequente dela dependente, e, após trânsito, prosseguiram os autos
para alegações.
3. O recorrente apresentou as suas alegações que, após convite,
finalizou com as seguintes conclusões:
«1ª. Os acórdãos recorridos interpretaram e aplicaram as normas dos art.ºs
412°, n.ºs 4 (por referência à alínea b) do seu n.º 3), e 420°, n.º 1, do CPP,
no sentido de que impõem a rejeição do conhecimento do recurso da matéria de
facto, se, nas alegações, faltar a especificação, por referência às cassetes,
respectiva pista (A ou B) e contador de medição da fita, [d]os excertos dos
depoimentos gravados que, em seu entender impõem decisão diversa da recorrida.
2.ª - Conforme o parágrafo 3° do item 6, a fls. 4 do acórdão de 18-12-2002, o
Tribunal da Relação interpretou e aplicou aquelas normas do CPP no sentido de
que impõem aquela mesma rejeição, se faltar a aludida especificação referida às
cassetes, ainda nas alegações se especifiquem os depoimentos que impõem decisão
(da matéria de facto) diversa da recorrida por referência à página e linha da
transcrição integral feita pelo Tribunal e já incorporada nos autos.
3ª - Os acórdãos recorridos interpretaram e aplicaram a norma da al. c) do seu
n° 1 o art.º 379° do CPP no sentido de que as questões prévias por eventual
vício de forma que impõe a rejeição do conhecimento do recurso podem ser
decididas, de surpresa, sem que seja dada oportunidade ao recorrente de sobre
elas se pronunciar.
ORA:
4.ª- Se a razão da exigência da referência das provas aos suportes técnicos tem
por objectivo 'determinar, com precisão, qual a transcrição que deve ser
efectuada ou o que deve ser transcrito', como o referiram os acórdãos recorridos
na parte em que buscaram apoio no Ac. do STJ de 26-012001, in CJ, Ano IX, II,
235, tal exigência mostra-se despropositada ou, pelo menos, contrária ao
Princípio da Proporcionalidade, quando o Tribunal já transcreveu todas as provas
nos autos.
5ª- Tendo o Tribunal Constitucional, pelo acórdão 320/02, de 9/6, publicado no
DR, 1ª Série, de 7-10-2002, declarado a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma do art.º 412°, n.º 2 do CPP, interpretada no sentido
de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das
menções contidas nas suas als. a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do
recurso, por maioria de razão deverá de declarar-se a inconstitucionalidade da
norma do n° 4 do mesmo artigo, por referência à alínea b) do n° 3, se
interpretada no sentido de que tem o mesmo efeito de rejeição a falta de
referência aos suportes técnicos das provas que impõem decisão diversa da
recorrida. De facto, como sustentou o STJ no acórdão de 24-04-01, Proc.º 225/00,
como se vê do teor dos termos utilizados, o legislador qualificou como mais
graves aquelas faltas do n.º 2.
6ª - No caso em análise, em que as alegações do recorrente não referem as provas
aos suportes técnicos, mas as referem pelos pontos concretos da respectiva
transcrição integral já então feita pelo Tribunal nos autos, a interpretação
daquelas normas do artº 412°, n.º 4, e 420°, n.º 1, do CPP, viola ainda por
reforçada maioria de razão os Princípios Constitucionais do Estado de Direito
(que abarca o da Proporcionalidade) e do Direito de Defesa Arguido.
(Afinal, conforme a parte final do referido n° 4 a referência ao suporte da
gravação visa identificar a parte a transcrever, mas no caso a transcrição já
existe; e lógico é que o autor da transcrição refira o respectivo suporte
técnico)
7ª- A norma do art.º 379°, n.º 1, al. c) do CPP na interpretação que delas
fizeram os acórdãos recorridos, de serem permitidas decisões surpresa, em
matéria de questões prévias formais que obstam ao conhecimento do mérito, é
contrária ao nosso sistema jurídico (art.ºs 3°, n.º 3 (parte final), 265°, n.º
2, 508°, n.º 1, e 704°, n.º 1, do CPC, e 87°, n.º 1-a), 88°, n.ºs 1 e 2, e 116°
do Cód. de Proc. dos Trib. Administrativos, que plasmam os Princípios
Constitucionais do Estado de Direito e do Direito de Defesa, assim violados.»
Nas contra-alegações o Ministério Público suscitou a questão
prévia do não conhecimento do objecto do recurso, concluindo que:
«A decisão recorrida não aplicou as normas dos artigos 379º, n.º1, alínea c),
412º, n.º4, e 420º, n.º1, todos do Código de Processo Penal na dimensão
interpretativa invocada pelo recorrente ...»
O recorrente respondeu, nos termos de fls. 1277, considerado
que não procede a pretensão do Ministério Público, afirmando que:
“Quanto ao art.º 379.º, nº 1, al. c), porque, de facto, a decisão recorrida foi
de rejeição do recurso por falta de referência às provas nas cassetes.
E quanto aos artigos 412º, nº 4, e 420º, n.º 1, por ser manifesto que se
pretendeu a declaração da sua inconstitucionalidade enquanto interpretadas no
sentido da exigibilidade de referenciar nas cassetes as passagens das provas já
transcritas em papel, tal como já haviam sido declaradas inconstitucionais (e
até por maioria de razão) pela exigibilidade daquela transcrição.
É que acresce:
Que os numeradores métricos dos aparelhos de gravação por norma não coincidem –
o que torna quase inútil a referência às passagens da gravação; e
Se a transcrição fosse bem feita, ela mesma deveria incorporar, de onde a onde,
a referência ao numerador métrico do aparelho de gravação.”
Cumpre decidir.
II
4. Quanto ao fundamento de interposição do recurso para o Tribunal
Constitucional
No requerimento de interposição do recurso, o recorrente disse recorrer ao
abrigo do disposto nas alíneas b) e h) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Depois,
no requerimento em que respondeu ao convite que lhe foi formulado nos termos do
artigo 75.º-A da LTC, o recorrente requereu “lhe seja admitido corrigir o lapso
de escrita de ter indicado que recorria ao abrigo da al. h) (além da b)) do artº
70º, pois que em vez de h) quis escrever g) (sendo o erro por vizinhança daquela
no teclado), pois considera que a aplicação extensiva do disposto no artº 420º
do CPP feita no acórdão recorrido (que só no artº 420º - não o 412º - se
encontra a comunicação da rejeição) já foi julgada inconstitucional no acórdão
deste Tribunal n.º 97-173-2, de 11.03.1997, em dgsi.pt, nº convencional
ACTC0007434”.
É esta a primeira questão que importa resolver, porque ainda não foi objecto de
apreciação.
Na verdade, o despacho de fls. 1245, que revogou, sem reservas, a inicial
decisão sumária de não conhecimento do recurso, não tem o efeito de admissão
implícita da correcção pretendida. O que motivou esse despacho foi, tão somente,
a constatação de que a decisão por ele revogada fora proferida no pressuposto,
que veio a revelar-se errado, de que o recorrente não respondera ao convite
formulado nos termos do artigo 75.º-A da LTC. Não contém qualquer referência ao
pedido de rectificação do requerimento de interposição do recurso que permita a
extensão do julgado.
A correcção das peças processuais sob invocação de lapso de escrita apenas é
possível quando a divergência entre o que foi declarado e o que se pretendia
declarar seja revelada pelo próprio contexto da declaração ou através das
circunstâncias em que a declaração é feita (cfr. artigo 249.º do Código Civil,
aplicável como contendo um princípio geral; cfr. v.gr. Ac do STJ de 25-2-97, in
BMJ nº 464, pág 458). Ora, nada se contém no requerimento de interposição do
recurso, ou nos seus antecedentes processuais imediatos, que permita sustentar a
afirmação de que o recorrente pretendia invocar, como fundamento de
admissibilidade do recurso, a aplicação de norma em divergência com anterior
julgamento de inconstitucionalidade que tivesse sido efectuado pelo próprio
Tribunal Constitucional e não pela Comissão Constitucional. Com efeito, a
divergência da decisão recorrida com anterior decisão da Comissão Constitucional
é susceptível de abrir a via de recurso para o Tribunal Constitucional. E essa
invocação da alínea h) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não surge acompanhada de
qualquer outra referência que se apresente como dissonante – v. gr. pela
indicação, que evidenciaria o lapso, da decisão-pretexto ( n.º 3 do art.º 75.º-A
da LTC) - em termos de impor a percepção de que não era essa a alínea, mas
antes a alínea g), a que o recorrente queria acobertar-se.
Assim, a correcção pretendida não é admissível.
De todo o modo, mesmo que assim não fosse, sempre é certo não se verificar o
pressuposto específico de admissibilidade do recurso ao abrigo da alínea g) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Efectivamente, o recorrente invoca como decisão-pretexto, o
acórdão n.º 193/97. (Note-se que, embora o recorrente se lhe refira como tendo o
“n.º 97-173-2”, aqui, sim, há um lapso de escrita que o confronto com os mais
elementos de identificação torna evidente). Neste acórdão o Tribunal
Constitucional decidiu julgar inconstitucionais, por violação do disposto no
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, “os artigos 412.º n.º 1 e 420.º n.º 1 do
Código de Processo Penal quando interpretados no sentido de a falta de concisão
das conclusões da motivação levar à rejeição do recurso interposto pelo
arguido”. Só a aplicação desta dimensão normativa abriria a via de recurso para
o Tribunal Constitucional ao abrigo da referida alínea g) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC. Ora, é manifesto que a decisão recorrida não fez aplicação de tal
entendimento julgado inconstitucional, desde logo porque o não conhecimento da
parte do recurso que versava sobre matéria de facto não se ficou a dever a
qualquer vício das conclusões das alegações (ou da motivação do recurso) mas,
como adiante melhor se verá, ao incumprimento de ónus respeitante à transcrição
das gravações da prova produzida oralmente em audiência.
Consequentemente, o recurso apenas poderá ser apreciado
enquanto interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Pelo
que se passa à apreciação doas objecções ao conhecimento de mérito levantadas
pelo Ministério Público relativamente a cada uma das normas identificadas pelo
recorrente.
5. Quanto ao artigo 379.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Penal
Pretende o recorrente ver julgada inconstitucional, por violação do n.º 5 do
artigo 32.º da Constituição, a norma da alínea c) do n.° 1 o artigo 379.° do
CPP, que diz ter sido interpretada e aplicada pelos acórdãos recorridos no
sentido de que as questões prévias, por eventual vício de forma que imponha a
rejeição do conhecimento do recurso, podem ser decididas, de surpresa, sem que
seja dada oportunidade ao recorrente de sobre elas se pronunciar.
Sucede que, da análise dos acórdãos recorridos, não resulta que o tribunal a quo
tenha aplicado a alínea c) do seu n.° 1 o artigo 379.° do Código de Processo
Penal com tal conteúdo normativo, ou, pelo menos, tal entendimento só poderia
considerar-se extraído da aplicação conjunta deste preceito com os preceitos
dos artigos 412º e 420º, n.º1, do mesmo Código, preceitos estes que o recorrente
não engloba na definição da norma.
Efectivamente, perante a decisão de não apreciar a impugnação da sentença no que
respeitava à matéria de facto, ou melhor, de apenas sindicar essa vertente da
sentença nos limites do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, o
recorrente arguiu a nulidade do acórdão de 21 de Outubro de 2002, argumentando
que, impondo o princípio do contraditório a prévia audição do recorrente sobre
as razões que a tal conduziam e não tendo ele sido ouvido, não era lícito à
Relação conhecer da rejeição ou da manifesta improcedência do recurso nessa
parte, pelo que fora cometida a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do
artigo 379.º do mesmo Código. No acórdão em que apreciou esta arguição de
nulidade, o tribunal a quo disse o seguinte:
“8. Julgamos também, que não há muito a dizer no que concerne a invocada
violação do princípio do contraditório.
De facto, este Tribunal não ouviu o recorrente sobre a rejeição do recurso
quanto á matéria de facto, nem a nosso ver tinha que ouvir.
Como salienta Maia Gonçalves (C.P.P. Anotado e Comentado, 12ª ed., pág.789), a
propósito do art.º 412° do C.P .P . «neste artigo estabelecem-se os requisitos
da motivação, sendo patente que a lei aqui é particularmente exigente, muito
mais até do que a lei anterior quanto à estruturação das alegações. E esta
tomada de posição da lei através desse artigo é secundada por outras
disposições, determinando a não admissão ou a rejeição do recurso, não só quando
falte a motivação mas ainda quando esta for manifestamente improcedente»
Parece-nos, pois, que este Tribunal de recurso não pode apreciar as questões
suscitadas pelo recorrente se este não cumpriu o ónus de apresentar esse recurso
nos termos legalmente exigidos.
Daí que ao não se ter ouvido o recorrente nos termos apontados pelo arguido, tal
não envolve qualquer violação de princípios consagrados na Lei Fundamental e
designadamente do princípio do contraditório.
Do mesmo passo que não se verifica a subsidiariamente impetrada nulidade do
art.º 379°, 1, c) do C.P.P.”
Daqui decorre que o tribunal a quo conclui que não tinha sido cometida qualquer
nulidade por se ter rejeitado o conhecimento do recurso quanto à matéria de
facto sem prévia audição do recorrente sobre o incumprimento dos ónus
estabelecidos pelo artigo 412.º do CPP, mas não extraiu a norma que legitimava o
modo de proceder julgado correcto e, consequentemente, a validade do acórdão,
directamente da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º, mas do artigo 412.º, n.º 4 e
do artigo 420.º, n.º 1, norma esta que servira de fundamento à rejeição do
recurso decidida no acórdão principal.
Assim, a única conclusão que legitimamente se pode tirar da afirmação do acórdão
de 18 de Dezembro de 2002 no sentido de que o acórdão anterior não incorrera na
nulidade prevista na alínea c) do n.° 1 do artigo 379.° é a de que não constitui
nulidade da sentença a falta de audição do recorrente antes de o tribunal
superior julgar improcedente o recurso em matéria de facto, ao abrigo do n.º 1
do artigo 420.º por incumprimento dos ónus estabelecidos no artigo 412.º, todos
do Código de Processo Penal, e não o de que daquela primeira norma, por si só,
decorre que o tribunal pode decidir uma questão prévia sem antes ter dado
oportunidade ao recorrente de sobre tal questão se pronunciar.
Assim, só podendo o Tribunal julgar inconstitucional a norma que a decisão
recorrida tiver aplicado (artigo 79.º-C da LTC) e tendo o recorrente o ónus de
identificação precisa dessa norma, não pode o Tribunal substituir-se à definição
do objecto do recurso e, consequentemente, não pode conhecer-se do recurso nesta
parte.
6. Quanto à norma dos artigos 412.º, n.º 4, 420.º e 364.º do
Código de Processo Penal
No requerimento em que especificaram o sentido normativo, extraído dos preceitos
em epígrafe, cuja constitucionalidade querem ver apreciada, os recorrentes
disseram que “[c]onforme resulta do capítulo II do acórdão 21.10.2002 e dos
pontos 9 e 10 do acórdão de 18. 12.2002, o Tribunal da Relação interpretou os
comandos dos artigos 412°, n.º 4, e 420º do CPP no sentido de que, mesmo nos
casos – como o presente – em que a documentação das declarações na audiência é
exigida nos termos do artigo 364.° do CPC (e não apenas para memória – como no
artigo 363.°) e estando já feita na acta a transcrição das gravações, mesmo
assim, para além da referência das provas concretizadas nos pontos determinados
daquela transcrição, é exigível ao recorrente que cumule àquela a referência das
mesmas provas nas cassetes e numeração respectiva (que deverá constar da própria
transcrição, se feita com zelo) e tudo sob pena da irremediável rejeição do
recurso”. Nas alegações, sustentam que devem julgar-se inconstitucionais as
normas “dos artigos 412.°, n.ºs 4 (por referência à alínea b) do seu n.º 3), e
420.°, n.º 1, do CPP, no sentido de que impõem a rejeição do conhecimento do
recurso da matéria de facto, se, nas alegações, faltar a especificação, por
referência às cassetes, respectiva pista (A ou B) e contador de medição da fita,
[d]os excertos dos depoimentos gravados que, em seu entender impõem decisão
diversa da recorrida”.
O Ministério Público contrapõe que essa não foi a ratio decidendi do não
conhecimento do recurso em matéria de facto por parte da Relação e que, por
isso, também nesta parte não pode conhecer-se do recurso de constitucionalidade.
E, na verdade, há uma irremediável falta de coincidência entre
a norma cuja constitucionalidade o recorrente pede ao Tribunal que aprecie e
aquela que o Tribunal da Relação assume como tendo constituído a ratio decidendi
da não apreciação do recurso em matéria de facto.
Efectivamente, a determinação de qual foi a razão para essa restrição do âmbito
do conhecimento dos fundamentos do recurso poderia ser duvidosa face ao primeiro
acórdão. Porém, o recorrente pediu a aclaração dessa parte do acórdão,
interrogando os juízes que o proferiram nos seguintes termos:
“5. Conforme acima transcrito, o acórdão considerou que o recorrente não cumpriu
o disposto na alínea b) do n° 3 e n° 4 do Artº 412° do CPP.
6. Mas fica-se na dúvida sobre se o acórdão assim concluiu:
a) Porque entendeu que o recorrente não especificou as provas que deveriam à
pretendida decisão;
b) Ou só porque não se apercebeu que as provas gravadas já se encontravam
transcritas nos autos;
c) Ou porque entendeu que o recorrente não fez referência aos suportes técnicos
(como, numa interpretação estritamente literal, o impunha o disposto no n° 4 do
artº 412º do CPP) e, em vez disso, fez referência à localização das transcrições
interessantes nos autos (por indicação numérica das folhas e também ordenação
numérica das respostas fundamento);
d) Ou ainda porque o recorrente não duplicou, nas alegações ou em suporte a elas
anexo (como, antes do DL 183/2000, de 10/8, era expressamente exigido em recurso
cível pelo nº 2 do artº 690-A do CPC) a transcrições das provas fundamento.
7. É que (quanto a 6.a)) não parece sustentável a conclusão de que o recorrente
não especificou as provas. Na verdade, o próprio acórdão, conforme acima se
transcreveu ajuizou o seguinte: 'no caso vertente, cremos que o recorrente
...concretizou as provas em que baseia tal apreciação. Por isso se conclui que
nesta parte deu integral satisfação às exigências contidas nas alíneas a) e b)
do n° 3 do artº 412º do C.P.P”
8. Em segundo lugar (quanto a 6.b) supra), a hipótese de Vs. ExªS não se terem
apercebido de que as provas orais prestadas em audiência já se encontravam
transcritas nos autos tem de colocar-se, pois que o acórdão não refere que tais
transcrições houvessem sido vistas e, sendo o constituído por vários volumes, é
de admitir que aquele que as continha não tivesse sido presente no julgamento da
Relação.
9. Só que, em terceiro lugar (quanto a 6.c) supra), também tem de admitir-se que
V.s Exªs houvessem visto as provas transcritas, mas perfilhem a interpretação
mais literal do n° 4 do artº 412º do CPP, qual seja a de que, mesmo na hipótese
de as provas orais já se encontrarem transcritas nos autos, o recorrente sempre
terá de referenciar as provas pelo seu suporte anterior ao papel – ao da fita
magnética, por referência ao numerador (que, nem sempre é uniforme nos vários
leitores de cassetes!)
10. Finalmente (hipótese 6.d) supra), tem ainda de admitir-se que o acórdão
considerou que o recorrente violou o nº 4 do artº 412º do CPP não apenas por
deixar de referenciar as provas pelo numerador na fita magnética (na
interpretação literal da 1ª parte do dito nº 4), mas ainda porque deveria ter
repetido a transcrição, inserida nas alegações ou em apenso às mesmas, das
provas orais fundamento.
11. Mas, até esta última hipótese da rejeição total do recurso da matéria de
facto resulta algo incompreensível, porque, no capitulo d' AS RAZÕES DO RECURSO,
nas alegações do recorrente, em discurso directo (ponto 32) ou indirecto (ponto
37), encontram-se re-transcritas vários excertos de depoimentos, que, para além
disso, se referiram à inserção na transcrição integral constante dos autos”.
A este pedido de esclarecimento respondeu o Tribunal da Relação
nos seguintes termos [destaques no original]:
“6. Como se afigura com meridiana clareza em face do teor do segmento
acabado de transcrever, dúvidas não existem de que o fundamento que justificou o
decidido quanto à matéria de facto, foi justamente o facto de o recorrente não
haver dado cumprimento ao disposto no n° 4 do citado art.º 412° do C.P.P .
E tal conclusão em nada é abalada pelo facto de a prova produzida em audiência
de julgamento haver sido gravada e se encontrar integralmente transcrita nos
autos.
É que conforme se observou no acórdão, citando-se o Ac. do STJ de 26.01.2001,
«compete ao recorrente apresentar a transcrição das passagens da gravação em que
se baseia na impugnação de decisão da matéria de facto, uma vez que devendo
essa transcrição respeitar apenas às provas que impõem decisão diversa da
recorrida e na parte respeitante aos pontos de facto que o recorrente considera
incorrectamente julgados, só ele sabe e está em condições de determinar, com
precisão, qual a transcrição que deve ser efectuada ou o que deve ser
transcrito».
Daí o entendimento defendido na decisão em referência de que não basta a
transcrição integral da prova produzida, é necessário que o recorrente apresente
a transcrição das passagens da gravação em que se baseia na impugnação da
decisão da matéria de facto.”
E, mais adiante, repetiu:
“Relativamente à arguida nulidade do acórdão em referência, por o mesmo não
fazer referência a uma única razão no sentido da irrelevância da transcrição da
prova produzida em audiência, importa desde já dizer que a mesma não se
verifica.
Como já anteriormente referimos, acolheu-se no acórdão a tese de que, mesmo que
haja sido efectuada a transcrição integral dos depoimentos prestados em
audiência, recai sobre o recorrente o ónus de apresentar a transcrição das
passagens da gravação em que se baseia na impugnação da decisão da matéria de
facto.”
Tornou-se indiscutível, porque expressamente assumido e
reafirmado pelo tribunal que proferiu a decisão, que a razão determinante para
que a Relação se tenha abstido de reapreciar a prova e julgado manifestamente
improcedente o recurso sobre a matéria de facto consistiu em o recorrente não
ter apresentado a transcrição das passagens da gravação em que se baseava na
impugnação da decisão de 1ª instância. Foi, afinal, o incumprimento desse ónus
de transcrição – que, havendo transcrição integral, se converte numa espécie de
“ónus de separata” – e não o de especificação da localização do registo das
provas relevantes por referência aos suportes técnicos da gravação que conduziu
a esse desfecho do recurso.
Trata-se, efectivamente, de imposições correspondentes a
segmentos normativos do n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal
diferentes quanto ao conteúdo e com função ou racionalidade específica
autónomas. A exigência de especificação das provas por referência ao suporte
técnico da gravação destina-se, não só a permitir o controlo da transcrição, mas
também a facilitar a tarefa de audição da gravação pelos juízes que compõem o
tribunal superior. A transcrição – a cujo propósito não pode deixar de
referir-se, por um lado, que o Tribunal Constitucional entendeu que não era
inconstitucional a imposição de tal ónus ao recorrente (cfr. Acórdão n.º 677/99,
Diário da República, II Série, de 28 de Outubro de 2000) e, por outro, que o
Assento n.º 2/2003, do Supremo Tribunal de Justiça (Diário da República, I Série
A, de 30 de Janeiro de 2003) veio fixar jurisprudência no sentido de que compete
ao tribunal efectuá-la – destina-se a permitir que o tribunal de recurso, quando
lhe seja pedida o reexame do julgamento da matéria de facto, possa
predominantemente concentrar-se na análise da reprodução escrita das passagens
relevantes da prova oralmente produzida. São exigências que não se confundem,
nem se englobam uma na outra, tendo o tribunal a quo deixado inteiramente claro
que fora o incumprimento do ónus de transcrição, tal como entendia impender
sobre o recorrente, que motivou a decisão.
Deste modo, não integrando a norma que o recorrente submete a
apreciação do Tribunal a ratio decidendi dos acórdãos recorridos quanto à não
apreciação do recurso em matéria de facto, não pode, também nesta parte,
conhecer-se do presente recurso de constitucionalidade.
7. Decisão
Nestes termos, julgando procedente a questão suscitada pelo Ministério Público
decide-se não conhecer do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas,
fixando a taxa de justiça em 10 (dez) unidades de conta.
Lisboa, 12 de Julho de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Gil Galvão
Artur Maurício