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Processo nº 536/2006
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência,
na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Por sentença da 15ª Vara Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi
indeferida a providência cautelar de arresto requerida por A. contra B., SA.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de Agosto de 2005, de fls. 60,
foi negado provimento ao recurso interposto pelo requerente, e confirmada a
decisão da 1ª instância. Para o que agora releva, o Tribunal da Relação de
Lisboa, após ter afirmado que 'há que decidir se podem considerar-se verificados
os requisitos para que seja decretada a providência' e ter transcrito o n.º 1 do
artigo 406º e o n.º 1 do artigo 407º do Código de Processo Civil, pronunciou-se
nos seguintes termos:
'O crédito invocado pelo requerente resulta, de acordo com a sua alegação, do
incumprimento do contrato promessa de compra e venda. Esquece o requerente que o
incumprimento só originará um crédito a seu favor se o incumprimento for
imputável à requerida. Ora ficou assente, nos autos principais – alíneas U e V
da Base instrutória –, que o requerente não compareceu para a realização da
escritura nem efectuou a marcação da mesma. Significa isto que não resulta claro
quem é o responsável pelo incumprimento uma vez que ambas as partes imputam o
incumprimento à contraparte. Daqui tem de se concluir que os factos invocados
pelo requerente no seu recurso não são suficientes para se fazer um juízo de
probabilidade sobre a existência do seu crédito. A aceitar-se a tese do
requerente, bastaria propor uma acção judicial, com base em fundamentos falsos,
a pedir uma indemnização para ser muito provável a existência do crédito a essa
indemnização. Não se pode aceitar tal interpretação.
Aliás, a providência nunca poderia ser decretada porque o requerente também não
provou o justo receio de perda da garantia patrimonial. O facto de a requerida
não ter contas registadas há vários anos não quer dizer que esteja em má
situação financeira ou à beira da falência. Tal irregularidade – falta de
apresentação de contas – não pode ser interpretada como existência duma situação
de dificuldades económicas. E uma notícia de jornal, por mais 'idóneo' que seja
o periódico, não pode constituir prova da situação financeira da requerida.
Em resumo, o requerente não demonstrou a probabilidade do seu crédito nem logrou
provar que o seu receio de perda da garantia patrimonial para esse hipotético
crédito se justifique. Não podia, por isso, a providência deixar de ser
indeferida'.
2. Inconformado, o requerente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça,
alegando contradição com jurisprudência anterior e sustentando, para o que agora
interessa, que ' (…) l. a interpretação da norma contida no referido n.º 1 do
art. 407º do Código de Processo Civil que resulta da interpretação expandida no
Acórdão recorrido é inconstitucional por violação dos imperativos estampados nos
art.s 20º, n.º 5, e 202º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa,
considerando-se correcta a que subjaz ao acórdão fundamento no sentido de que só
a prova indiciária exigida em sede de providência cautelar assegura aos cidadãos
o direito a procedimento judicial célere e eficaz para obter a tutela efectiva e
atempada contra as ameaças aos seus direitos patrimoniais e que incumbe aos
tribunais assegurar os reais e efectivos interesses dos cidadãos protegidos por
lei, como é o caso do arresto preventivo'.
O recurso não foi admitido. Por acórdão de 7 de Março de 2006, de fls. 32, o
Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido de que '(…) não há qualquer
oposição entre os acórdãos sobre a questão de direito, fundamentos da
providência e ónus da prova.
Os acórdãos em confronto partilham a mesma doutrina sobre a questão jurídica,
tendo o acórdão recorrido julgado não estarem minimamente provados os
pressupostos acima referenciados.
É deste julgamento, feito pelo Tribunal recorrido sobre os meios de prova
produzidos, que o recorrente discorda, o que nada tem a ver com a alegada
oposição de acórdãos, situação que justificaria a excepcional admissibilidade do
presente recurso, no sentido de uniformizar a jurisprudência'.
3. A. veio então recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro,
pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade 'da norma contida no n.º 1 do
artigo 407º do Código de Processo Civil, com a interpretação emergente do texto
da decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de que não basta a prova
indiciária resultante da inexistência do legalmente exigido registo
conservatório da apresentação de contas e a pública declaração em periódico de
nível nacional por mandatário judicial bastante de confissão de liquidação da
sociedade requerida, para ser suficiente, de forma necessariamente sumária e
indiciária, e decretar o Arresto preventivo de bens em valor suficiente para
garantir o crédito reclamado em acção declarativa de sentença condenatória que
exige o ressarcimento dos prejuízos causados pelo incumprimento de contrato de
promessa de compra e venda, quando a simples inexistência de registo obrigatório
de contas anuais e de registo de liquidação constituem presunção legal de receio
de perda da garantia do crédito invocado em juízo o qual emerge de um
reconhecimento liminar em sede de instrução da acção civil principal'.
Considera, para o efeito, que 'uma tal interpretação desta norma cerceia o
direito do Recorrente à defesa efectiva em tempo útil dos seus legítimos
interesses, segundo os padrões estabelecidos na própria Lei, violando os
imperativos dos artigos 20º, n.º 5, e 202º, da Constituição da República
Portuguesa, questão suscitada previamente em sede de recurso no Tribunal da
Relação de Lisboa, a línea l), corolário das demais, sendo considerada correcta
a interpretação que nessa mesma conclusão está plasmada'.
O recurso também não foi admitido. O despacho de fls. 35 entendeu que, não tendo
suscitado a inconstitucionalidade perante o tribunal que proferiu o acórdão
recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa, o recorrente não tinha legitimidade
para interpor o recurso de constitucionalidade, nos termos do n.º 2 do artigo
72º da Lei nº 28/82.
4. Finalmente, A. veio reclamar deste despacho para o Tribunal Constitucional,
nos termos do n.º 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82.
Considera ter sido 'erro grave' a decisão de não admissão do recurso porque,
tendo o Tribunal da Relação de Lisboa decidido 'em sentido contrário de
jurisprudência dada a confronto no texto recursivo perante o Supremo Tribunal de
Justiça, a sua arguição seria extemporânea, mesmo que ad cautelam, em instância
inferior', a sua 'inusitada a absolutamente imprevisível' decisão 'deu lugar à
extrema necessidade de arguir a inconstitucionalidade interpretativa (…) ante o
Supremo Tribunal de Justiça'.
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da
manifesta improcedência da reclamação, porque, 'para além de o reclamante não
ter suscitado, antes da prolação do acórdão proferido pela Relação, qualquer
questão de inconstitucionalidade, verifica-se que a questão suscitada no
requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional,
exclusivamente ligada à livre apreciação das provas atinentes à demonstração da
existência do alegado justo receio de perda da garantia patrimonial, é
obviamente desprovido de natureza normativa.'
Para além disso, seria inútil o conhecimento do recurso de constitucionalidade,
porque a 'ratio decidendi do acórdão recorrido assenta identicamente na
insuficiência das provas produzidas para a adequada demonstração do outro
pressuposto da providência cautelar requerida, a séria probabilidade de
existência do crédito do requerente.'
5. Com efeito, a presente reclamação é improcedente, por vários motivos.
Em primeiro lugar, por absoluta falta de idoneidade do objecto definido no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, acima
transcrito.
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de
normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei nº 28/82, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie a
conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que
foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido
suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b) citada), e
não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da
lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de
exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da
República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de
1995 e 16 de Maio de 1996).
Ora, do requerimento de interposição de recurso resulta tão somente que o
reclamante discorda da forma como foram valoradas as provas que apresentou para
demonstrar 'o receio invocado' (n.º 1 do artigo 407º do Código de Processo
Civil) de perda da garantia patrimonial, e que em seu entender deveriam ter sido
consideradas suficientes para que o referido requisito se considerasse
preenchido.
A apreciação de tal questão está, pois, manifestamente fora do âmbito possível
do recurso de constitucionalidade interposto.
Em segundo lugar, porque não foi realmente invocada qualquer
inconstitucionalidade perante o Tribunal da Relação de Lisboa, referida ao n.º 1
do artigo 407º do Código de Processo Civil. Os termos com que o reclamante
discorda do despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade só se
explicam pela circunstância de estar a pretender que o Tribunal Constitucional
julgue a constitucionalidade da respectiva decisão.
Finalmente, e em terceiro lugar, porque, como observou o Ministério Público, o
acórdão recorrido assentou em dois fundamentos para negar o arresto pretendido,
pois considerou não preenchidos dois dos requisitos necessários para o efeito: o
justo receio de perda da garantia patrimonial e a probabilidade séria da
existência do crédito alegado pelo recorrente.
Sendo certo que a falta de qualquer um destes requisitos é, por si só,
suficiente para que não possa ser decretado o arresto, nenhuma utilidade teria o
julgamento de um recurso de constitucionalidade em que se apreciasse uma questão
(normativa) apenas respeitante a um deles, pois sempre subsistiria a falta do
outro.
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recurso de
constitucionalidade tem natureza instrumental, o que implica, como se sabe, que
é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade de repercussão
do julgamento que nele vier a ser efectuado na decisão recorrida (ver, por
exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº nº 463/94, publicado no Diário da
República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
Nestes termos, indefere-se a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 12 de Julho de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício