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Processo n.º 490/06
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 889 foi proferida a seguinte decisão sumária :
«1. A. e B., Lda., requereram, como incidente de recurso
contencioso de anulação, providência cautelar contra o MUNICÍPIO DE ÁGUEDA e a
interessada particular C., Lda., pretendendo a suspensão da eficácia da
deliberação da Assembleia Municipal de Águeda, proferida em 30 de Abril de 2002,
que declarou a utilidade pública da expropriação de um prédio identificado nos
autos.
Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra de 21
de Setembro de 2005, de fls. 543, as requeridas foram absolvidas da instância,
por se ter julgado verificada a excepção de caso julgado, nos seguintes termos:
“Ora, no caso em análise, verifica-se que o pedido efectivamente
formulado nesta providência cautelar e na anterior suspensão de eficácia é na
sua essência o mesmo – suspensão da deliberação que declarou a expropriação; os
sujeitos são os mesmos, dado que a assembleia se integra no órgão colectivo
Município (artigo 10.º do CPTA); e, também a causa de pedir é literalmente a
mesma, sendo irrelevante a qualificação ou valoração jurídicas agora efectuadas
pelos requerentes.”
Inconformados, os requerentes da providência vieram interpor
recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Norte, tribunal
que, por acórdão de 23 de Fevereiro de 2006, de fls. 680 e seguintes, decidiu
“conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional, com a consequente
revogação da sentença recorrida; negar a tutela cautelar requerida com base na
alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, com a consequente absolvição do
pedido de ambos os requeridos”.
Na parte que agora releva, afirmou-se no acórdão o seguinte:
“ Todavia, o requisito autónomo previsto na sua alínea a), que, no
nosso caso, se traduz na invocação da manifesta ilegalidade do acto impugnado,
não foi, nem podia ter sido, invocado no processo acessório n.º 477/02.
(...) Impõe-se concluir, pois, que o caso julgado formado no
processo urgente n.º 477/02 não se poderá estender a esta nova causa de pedir,
tornando-se possível que, com base nela, seja repetida idêntica pretensão
cautelar entre os mesmos sujeitos.
Na interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 15/02, de 22 de
Fevereiro, dever-se-á ter em consideração, portanto, o limite do caso julgado
material: podem ser requeridas providências cautelares ao abrigo do novo código,
como incidentes de acções já pendentes à data da sua entrada em vigor, desde que
sobre a respectiva pretensão não exista caso julgado.
Neste âmbito, e só neste âmbito, teremos de negar razão à sentença
recorrida, pois não ocorre caso julgado material no tocante à pretensão de
suspensão de eficácia do acto enquanto alicerçada no requisito previsto na
alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA.
(…) É duvidoso, desde logo, que um vício desta natureza possa apresentar-se de
forma manifesta, ou seja, de forma a não deixar quaisquer dúvidas sobre a sua
ocorrência, pois este é o alcance da evidência exigida pela alínea a) do n.º 1
do artigo 120.º do CPTA.
Certo é, porém, que a ocorrência do vício de desvio de poder não
resulta evidente da prova documental apresentada pelos recorrentes. Na verdade,
e atendo-nos particularmente ao que eles invocam nos artigos 79.º a 141.º da sua
petição inicial, é patente a necessidade de sujeitar ao fogo da prova pessoal a
interpretação que vão fazendo da actuação – a montante do acto de declaração de
utilidade pública do prédio em causa – dos órgãos do Município de Águeda.
Esta prova deverá ter lugar no âmbito do processo principal, onde a
averiguação dos vícios imputados ao acto impugnado não fica limitada pela
evidência de ilegalidade, mas vai fundo na senda de demonstrar a sua eventual
ocorrência.
Ressuma do exposto, sem mais delongas, não ser manifesta a invocada
ilegalidade do acto impugnado.
Deve, por conseguinte, ser julgado improcedente o pedido de
suspensão de eficácia do acto de declaração de utilidade pública em causa, com
ele caindo os restantes pedidos formulados, porque dele dependentes.”
Os requerentes vieram ainda pedir a aclaração do acórdão do
Tribunal Central Administrativo Norte, o que foi indeferido por acórdão de 23 de
Março de 2006, de fls. 724.
2. Ainda inconformados, A. e B., Lda. vieram, a fls. 784, recorrer
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Convidados, pelo despacho de fls. 805, a dar cumprimento ao
disposto no n.º 1 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, os recorrentes a fls. 871
esclareceram que
'pretendem ver apreciada a constitucionalidade da alínea a) do n.º
1 do artigo 120.º do CPTA, com o sentido interpretativo que lhe foi atribuído
por este Digno Tribunal Central, ou seja, nos casos em que seja alegado desvio
de poder (que se sustente ser evidente e que, por isso, se sustente encerrar uma
ilegalidade manifesta) que necessite da produção de prova para se ter por
verificado (naturalmente de uma forma sumária) não é possível, no fundo, a
tutela cautelar, posto que essa prova só poderia ser levada a efeito no processo
principal.
Em guisa de conclusão, temos que a norma sobre que impende o juízo de censura
constitucional é a alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, quando referida
ao direito à tutela jurisdicional efectiva e ao direito a uma tutela cautelar
adequada, constantes dos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da
República – dimensões que integram, como é pacífico, o direito à tutela
cautelar.”
No entender dos recorrentes, a decisão recorrida
“revelou-se uma verdadeira decisão surpresa.
Nessa medida, vêem-se os recorrentes na contingência de ter que
lançar mão da doutrina firmada por aquele Tribunal no sentido de que só é
possível conhecer inconstitucionalidade não suscitada durante o processo quando
a decisão seja de todo em todo inusitada e imprevista – citando, ipsis verbis, a
jurisprudência mais apertada que conhecemos deste alto tribunal.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal
(nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de
normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal
aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações
normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante
ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante o processo” (al. b)
citada), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da
Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal
(cfr. a título de exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no
Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de
Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário e que tal norma tenha sido aplicada com o sentido acusado
de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os acórdãos
nºs 313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série,
respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996); e que a inconstitucionalidade haja sido “suscitada durante o processo”
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa que há-de
ter sido colocada “de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
Conforme o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, o recorrente só
pode ser dispensado do ónus de invocar a inconstitucionalidade ”durante o
processo” nos casos excepcionais e anómalos em que não tenha disposto
processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em
momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com
os nºs 62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II,
de 28 de Maio de 1994).
4. Resulta da síntese acabada de fazer que o Tribunal Constitucional não pode
conhecer do recurso interposto.
Em primeiro lugar, porque não é definido um objecto susceptível de ser apreciado
neste recurso, tal como ele é configurado pela Constituição e pela Lei nº 28/82.
Como resulta da transcrição atrás efectuada, para negar provimento ao recurso
então em julgamento o acórdão recorrido chegou à conclusão de que não se
verificava o requisito da manifesta ilegalidade do acto impugnado, requisito
esse exigido pela alínea a) do n.º 1 do artigo 120º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos para ser decretada uma providência cautelar.
Essa conclusão assentou na falta de prova da evidência do vício invocado:
'Certo é, porém, que a ocorrência do vício de desvio de poder não resulta
evidente da prova documental apresentada pelos recorrentes'. É verdade que esta
afirmação – e que é claramente a ratio decidendi do acórdão – se segue a uma
manifestação de dúvida quanto à possibilidade de que 'um vício desta natureza
[se] possa(…) apresentar de forma evidente (..,)' e que, seguidamente, o acórdão
afirma que, não resultando da prova documental a evidência da ilegalidade, terá
de haver lugar a 'prova pessoal', a realizar no processo principal.
O acórdão não assentou a decisão proferida na impossibilidade de, em abstracto,
ser decretada uma providência cautelar acessória a um processo em que se peça a
anulação de um acto administrativo com fundamento em desvio de poder, por apenas
ser possível, em abstracto também, provar tal vício, ainda que sumariamente, no
processo principal.
Diferentemente, assentou-a na falta de demonstração da ilegalidade manifesta,
tendo em conta os meios de prova que entendeu ser de considerar.
Assim, ainda que o Tribunal Constitucional pudesse retirar da questão definida
pelos recorrentes uma norma, teria de concluir também pela impossibilidade de
conhecimento do recurso, por não corresponder ao sentido com que o acórdão
recorrido aplicou a al. a) do n.º 1 do artigo 120º do Código de Processo nos
Tribunais Administrativos.
Com efeito, o acórdão recorrido não interpretou tal preceito, como se disse já,
com o sentido de que não é possível tutela cautelar quando se invoque desvio de
poder, por só ser admissível a sua prova, ainda que sumária, no processo
principal.
5. Em segundo lugar, porque também se não poderia considerar que, no presente
recurso, se verificam as condições que o Tribunal Constitucional tem apontado
como justificando a dispensa do ónus de invocar, 'durante o processo', a
inconstitucionalidade que se pretende seja apreciada.
Afirmam os recorrentes nunca terem discutido “a questão como o
tribunal a colocou, discuti[ram] apenas que no caso vertente se tivesse
verificado caso julgado, como pretendia o Município e decidiu o TAF de Coimbra.
Nesta medida, os AA. foram verdadeiramente surpreendidos pela
interpretação que, em violação dos preceitos constitucionais infra citados, foi
conferida ao estatuído no artigo 120.º, n.º 1, alínea a) do CPTA.
Não era crível ou razoável prever, não era algo que se pudesse de
todo em todo cogitar, que o tribunal não visse a ilegalidade evidente que emerge
da documentação junta; não podia o mais abnegado dos juristas antecipar ou de
todo em todo prognosticar que o Tribunal viesse a proceder à infra mencionada
interpretação, em moldes tão restritivos, do estatuído no artigo 120.º, n.º 1,
alínea a), do CPTA.” (requerimento de interposição de recurso, fls. 790).
Esta transcrição confirma, note-se, que os recorrentes não estão a colocar ao
Tribunal Constitucional uma questão de constitucionalidade normativa, mas a
pretender que o Tribunal aprecie a decisão do caso concreto.
Só isso explica, aliás, que invoquem a surpresa quanto ao modo como o acórdão
recorrido apreciou a prova documental que juntaram, não concluindo pela
evidência da ilegalidade que apontam, para pretender justificar a razão pela
qual só suscitaram a inconstitucionalidade quando recorreram para o Tribunal
Constitucional.
Ora a surpresa que justifica a dispensa do ónus de suscitar oportunamente a
inconstitucionalidade é a surpresa respeitante à interpretação (abstracta)
adoptada para a norma aplicada pela decisão recorrida como ratio decidendi.
No caso, o acórdão recorrido retirou da al. a) do n.º 1 do artigo 120º do Código
de Processo nos Tribunais Administrativos o requisito da manifesta ilegalidade
do acto impugnado. Ora os recorrentes, como, nomeadamente, se pode verificar na
conclusão 21.ª das alegações apresentadas no âmbito do recurso jurisdicional
interposto para o Tribunal Central Administrativo Norte, sustentaram “a
procedência da presente suspensão de eficácia de acordo com o parâmetro
decisório previsto no artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do CPTA” (cfr. fls. 594).
Não podiam, pois, ignorar que uma das questões principais a discutir no âmbito
do recurso por eles próprios interposto se prendia com o carácter manifesto da
ilegalidade por eles invocada.
6. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão
sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82.
Nestes termos, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs., em conjunto.»
2. Inconformados, os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do
disposto no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da
decisão sumária.
Começando por realçar a gravidade da situação do caso, os reclamantes
manifestaram a sua discordância quanto aos fundamentos apontados para o não
conhecimento do objecto do recurso.
Assim, e no essencial, observaram que 'a prática ou um mínimo de conhecimento da
realidade jurídico-administrativa confirma' que a Administração 'não escreve
jamais que decidiu uma determinada pretensão por razões distintas das que a lei
refere', sendo 'muito raro que o vício de desvio de poder possa ser retirado da
prova documental apresentada – embora na situação concreta tal devesse suceder';
que o acórdão do Tribunal Central Administrativo aplicou efectivamente a alínea
a) do n.º 1 do artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
'no sentido de que a prova do desvio de poder só pode ser feita no processo
principal', não sendo possível no âmbito de uma providência cautelar, e que é
esse sentido que, a seu ver, é inconstitucional; que, segundo o acórdão
recorrido, quando esteja em causa a manifesta ilegalidade (obviamente referida
ao art. 120 n.º 1 ali.) a) do CPTA ), nos casos em que esteja também em causa um
vício de desvio de poder que seja carente de produção de prova testemunhal (como
dissemos quase 99% dos casos, esta é a verdadeira dimensão da questão), de
acordo com o julgamento que se pretende ver sancionado não é possível a tutela
cautelar'.
Quanto à oportunidade de suscitar a inconstitucionalidade, observam que 'basta
ler e bem interpretar o que se escreveu para concluir que a par da surpresa
relativa à errónea interpretação da documentação (porque não dizê-lo), está a
inusitada e surpreendente interpretação que pretendemos seja conhecida por este
tribunal '.
Notificada para o efeito, a Câmara Municipal de Águeda
sustentou o indeferimento da reclamação.
3. A reclamação é, todavia, improcedente.
Com efeito, a decisão recorrida é clara quanto à razão que a
levou a indeferir a providência cautelar requerida: contrariamente ao que os
requerentes sustentaram no recurso então julgado, a prova oferecida não logrou
convencer o tribunal da manifesta ilegalidade do acto impugnado, no caso
concreto. Como se viu, escreveu-se no acórdão recorrido que 'certo é, porém, que
a ocorrência do vício de desvio de poder não resulta evidente da prova
documental apresentada pelos recorrentes.'
Como se disse na decisão reclamada, é exacto que o Tribunal
Central Administrativo manifestou a opinião de que é duvidoso que um vício como
o desvio de poder se apresente como manifesto; afirmação que, naturalmente, se
compreende, desde que se saiba o que está em causa numa acusação desta natureza.
Mas é igualmente exacto, como também ali se observou, que o
Tribunal Central Administrativo foi bem claro quando afirmou que foi a falta de
prova suficiente que, no caso, determinou o indeferimento da providência.
Nenhuma utilidade teria, pois, a apreciação, por este Tribunal,
da questão de saber se seria ou não conforme com a Constituição uma norma
segundo a qual não seria admissível a tutela cautelar 'nos casos em que seja
alegado desvio de poder', por impossibilidade de prova, ainda que sumária,
naquele procedimento, por não ter sido determinante para o julgamento proferido
no acórdão recorrido.
Torna-se, assim, desnecessário apreciar o segundo fundamento
apresentado na reclamação.
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a
decisão de não conhecimento do recurso.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20
ucs., em conjunto.
Lisboa, 12 de Julho de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício