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Processo n.º 721/04
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
Na execução fiscal instaurada, no 4.º Serviço
de Finanças do Concelho de Santa Maria da Feira, contra A., L.da, foi penhorado,
em 30 de Maio de 2001, o edifício destinado à unidade industrial da executada,
tendo sido designado o dia 26 de Novembro de 2003 para se proceder à venda do
mesmo, por meio de propostas em carta fechada.
Em 14 de Novembro de 2003, B., L.da, invocando
a qualidade de credora da executada, veio requerer a suspensão da execução
fiscal, nos termos do artigo 870.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável
ex vi artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado
pelo Decreto‑Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro (CPPT), com fundamento em estar
pendente, no Tribunal Judicial da Comarca de Santa Maria da Feira, processo de
falência da executada.
Na sequência de informação de que a executada
ainda não fora declarada falida, encontrando‑se o processo de falência a
aguardar o decurso do prazo para dedução de oposição, o Chefe de Finanças do
4.º Serviço de Finanças da Feira, por despacho de 24 de Novembro de 2003,
indeferiu a requerida suspensão da execução fiscal, por, nos termos do artigo
180.º do CPPT, só haver lugar a sustação dos processos de execução fiscal após a
declaração da falência, que, no caso, ainda não ocorrera.
Deste despacho reclamou a credora B., L.da,
para o Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Aveiro, mas, por sentença de 2
de Março de 2004 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu (que sucedeu
àquele Tribunal), foi negado provimento à reclamação, por se entender ser
inaplicável à execução fiscal o preceituado no artigo 870.º do CPC, por colidir
com as estatuições dos artigos 85.º, n.º 3, e 180.º do CPPT. Mais se entendeu
que, contrariamente ao sustentado pela reclamante, não ocorria violação do
princípio da igualdade por as realidades que a lei pretendia acautelar com a
execução comum e com a execução fiscal serem diversas e justificarem soluções
diferentes, sendo certo que, mesmo assim, no âmbito da execução fiscal, os
trabalhadores da executada podiam, como na execução comum, reclamar os seus
créditos, nos termos dos artigos 239.º a 242.º do CPPT.
A mesma credora interpôs recurso desta sentença
para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo
(STA), tendo, nas respectivas alegações, suscitado a questão da
inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, consagrado no
artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), da interpretação
normativa que considera inaplicável o disposto no artigo 870.º do CPC às
execuções fiscais, por representar uma vantagem injustificada para o Estado
credor face aos demais credores da empresa, designadamente os seus
trabalhadores.
Por acórdão do STA, de 12 de Maio de 2004, foi
negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:
“3 – O objecto do presente recurso consiste em saber se, tendo sido requerida a
falência da executada, a recorrente, na sua qualidade de credora, pode pedir a
suspensão da execução fiscal com esse fundamento, nos termos do disposto no
artigo 870.º do CPC, aqui aplicável ex vi do estabelecido no artigo 2.º, alínea
e), do CPPT, uma vez que este preceito legal não colide com o disposto no artigo
180.º do CPPT.
Dispõe o artigo 85.º, n.º 3, do CPPT que «a
concessão de moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos
previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade
subsidiária».
Por sua vez, estabelece o artigo 180.º, n.º 1,
do mesmo diploma legal que «proferido o despacho judicial de prosseguimento da
acção de recuperação da empresa ou declarada falência, serão sustados os
processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e todos os que de novo
vierem a ser instaurados contra a mesma empresa, logo após a sua instauração».
Ora, da simples leitura destes normativos
legais resulta, desde logo, que a recorrente não tem razão na sua pretensão.
Com efeito, proibindo aquela primeira norma a
suspensão da execução fiscal fora dos casos previstos na lei e estabelecendo
aquele segundo preceito legal que esta mesma suspensão só é possível depois de
ter sido decretada a falência da executada – o que não está provado (vide elenco
probatório) –, é evidente que o entendimento propugnado pela recorrente da
possibilidade de ser solicitada essa suspensão, por ter sido requerida a
falência da executada, carece de base legal, por ausência dos seus fundamentos.
4 – Alega, porém, a recorrente que ao caso em
apreço se aplicaria, não os citados preceitos legais, mas sim o estabelecido no
artigo 870.º do CPC, ex vi do disposto no artigo 2.º, alínea e), do CPPT, já
que, e por um lado, não colide com aqueles, na medida em que sustação e
suspensão são, não só conceitos juridicamente distintos, como o seu significado
em termos linguísticos são diferentes e, por outro, enquanto a norma contida no
artigo 180.º, n.º 1, do CPPT impõe um determinado comportamento à Administração
Fiscal, já a regra do artigo 870.º do CPC consagra uma faculdade concedida a
qualquer credor da executada a fim de impedir os pagamentos.
Mas carece de razão.
Estabelece o citado artigo 870.º do CPC que
«qualquer credor pode obter a suspensão da execução, a fim de impedir os
pagamentos, mostrando que foi requerido processo especial de recuperação da
empresa ou de falência do executado».
Todavia e como vimos, restringindo o predito
artigo 85.º, n.º 3, a possibilidade de suspensão da execução fiscal aos casos
especialmente previstos na lei, tem o alcance prático de afastar a possibilidade
de aplicar aqui as regras previstas para o efeito no processo executivo comum.
«Aponta nesse sentido a referência aos ‘casos
especialmente previstos neste Código e noutras leis’ que é utilizada naquele n.º
3 do artigo 108.º para referenciar os casos em que se admite a suspensão.
Por isso, só nos casos em que exista norma
especial que preveja a possibilidade de suspensão da execução fiscal, seria de
aceitar que ela possa ocorrer.
Esta não aplicabilidade ao processo de execução
fiscal das normas do processo de execução comum que prevêem a sua suspensão
explica‑se pelo interesse público ínsito na cobrança de créditos cobrados
através do processo de execução fiscal, que recomenda que não se coloque na
disponibilidade das partes ou da entidade que a dirige a possibilidade de
suspensão do processo, que tem como corolário um prejuízo para aqueles
interesses.
No n.º 3 do presente artigo 85.º, introduzem‑se
alterações ao que constava do referido n.º 3 do artigo 108.º do CPT,
omitindo‑se a referência ao carácter especial das normas que podem relevar para
efeito de determinar a suspensão da execução fiscal.
Mas, por outro lado, em vez de se fazer
referência apenas a ‘suspensão da execução’, como acontece no CPT, alude‑se
agora a ‘suspensão da execução fiscal’, o que inculca que as normas que prevêem
casos de suspensão se devem reportar a este tipo especial de execução,
afastando, assim, a aplicabilidade das normas que prevêem situações de
suspensão da execução comum.» (Conselheiro Jorge Sousa, in Código de
Procedimento e de Processo Tributário Anotado, 4.ª edição, págs. 381 e 382).
E mais adiante escreve ainda este Ilustre
Conselheiro que:
«(...) é necessário que seja proferido o despacho decidindo o prosseguimento da
acção de recuperação da empresa ou seja declarada a falência para que sejam
sustados os processos de execução fiscal.
Assim, não basta para tal sustação que tenha
sido requerida a falência do executado, mesmo que o processo de execução esteja
em fase de pagamentos, como se prevê no artigo 870.º do CPC.
Aliás, a possibilidade de suspensão da execução
com base na apresentação de um requerimento de processo especial de recuperação
de empresa ou de falência é incompaginável com o interesse público subjacente ao
processo de execução fiscal, que exige que não seja suspensa a execução, com o
consequente diferimento da satisfação dos créditos, cuja cobrança é de interesse
público, sem uma comprovação da existência real de razões que possam justificar
a suspensão. O n.º 1 deste artigo 180.º, ao exigir, para possibilitar a
suspensão da execução fiscal, a existência de um despacho judicial que,
determinando o prosseguimento do processo de recuperação de empresa ou
declarando a falência, dê garantias de que há razões reais para suspender a
execução, vem confirmar a prevalência deste interesse público.» (ob. cit., pág.
817).
Por outro lado, não pode ser aqui acolhido o
argumento que a recorrente pretende retirar dos conceitos de «suspensão» e de
«sustação».
É que estas expressões, embora etimologicamente
diferentes, têm necessariamente o mesmo significado do ponto de vista
linguístico e são conceitos jurídicos idênticos.
Com efeito, «sustar» significa «fazer com que
alguma coisa deixe de se efectuar; interromper o curso de um processo; cessar;
suspender» (vide Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das
Ciências de Lisboa).
Por outro lado e apesar de o processo de
execução fiscal se encontrar sustado, a sua interrupção é também temporária, já
que pode prosseguir após a verificação de determinado facto.
Atente‑se no disposto no n.º 5 do artigo 180.º
do CPPT. Aí se estabelece que «se a empresa, o falido ou os responsáveis
subsidiários vierem a adquirir bens em qualquer altura, o processo de execução
fiscal prossegue para cobrança do que se mostre em dívida à Fazenda Pública, sem
prejuízo das obrigações contraídas por esta no âmbito do processo de
recuperação, bem como sem prejuízo da prescrição».
Deste modo, sendo o regime da execução fiscal o
aqui aplicável, para que a recorrente possa cobrar os seus créditos, não pode
deixar de estar submetida a esse mesmo regime.
E, assim sendo, não pode requerer a suspensão
da execução fiscal com fundamento, apenas, no facto de ter sido requerida a
falência da executada.
No mesmo sentido se pronunciou já esta Secção
do STA, no acórdão datado de 8 de Julho de 1999, rec. n.º 23 345.
5 – Por último, é também patente que não se
verifica o alegado vício de violação do princípio constitucional da igualdade
consagrado no artigo 13.º da CRP, a que a Administração Fiscal se encontra
vinculada, o qual decorreria, por um lado, do facto de a não suspensão da
execução requerida representar uma vantagem para o Estado credor face aos demais
credores da empresa executada e, por outro, afastarem‑se as execuções fiscais
da aplicação do artigo 870.º do CPC, enquanto que os credores privilegiados,
como os trabalhadores, não o podem ser, é manifesto que existe um desequilíbrio
notório e ostensivo a favor do Estado.
Como é sabido, o princípio da igualdade
processual ou de armas, cuja ratio entronca nos artigos 13.º e 20.º da CRP,
demanda que as partes sejam colocadas no processo judicial em perfeita paridade
de condições para obter a justiça que reclamam (neste sentido, Manuel de
Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1963, pág. 353).
Ora, no caso em apreço e como bem anota o Ex.mo
Procurador‑Geral Adjunto no seu douto parecer, «o prosseguimento da execução
fiscal não impede a recorrente de reclamar oportunamente o seu crédito sobre os
bens penhorados, se dispuser de garantia real (artigo 240.º, n.º 1, do CPPT)»,
pelo que não sairia prejudicada em relação ao Estado.
Por outro lado, nem mesmo o afastamento da
aplicação do artigo 870.º do CPC às execuções fiscais traz, também, qualquer
vantagem para o Estado em relação aos trabalhadores, credores privilegiados, na
medida em que e nessa qualidade, estes podem reclamar os seus créditos no âmbito
da execução fiscal, nos termos do disposto nos artigos 239.º a 242.º do CPPT.
Sendo assim, a sentença a quo não merece
qualquer censura.”
Notificada deste acórdão, a recorrente veio
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por
último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 1.º, 13.°, 58.° e
59.° da CRP, das normas constantes dos artigos 180.º, n.º 1, e 85.º, n.º 3, do
CPPT: (i) “na interpretação segundo a qual a aplicação do disposto no artigo
180.°, n.º 1, do CPPT colide com a norma constante do disposto no artigo 870.°
do CPC porque as situações a ela subsumíveis afastam, por contrárias, a
aplicação do disposto no artigo 870.° do CPC (afastando a sua aplicação
subsidiária) e em virtude de o disposto no artigo 85.°, n.º 3, do CPPT
restringir a possibilidade de suspensão da execução fiscal aos casos
especialmente previstos na lei, com o alcance prático de afastar a
possibilidade de aplicação à execução fiscal das regras de suspensão de
execução constantes do processo executivo comum, em nome do interesse público
ínsito na cobrança de créditos através do processo de execução fiscal (mesmo
estando em causa créditos privilegiados, como são os dos trabalhadores, também
com interesses públicos inerentes) e, deste modo, representando o artigo 180.°,
n.º 1, do CPPT norma especial em relação ao artigo 870.° do CPC”; e (ii) “na
interpretação segundo a qual o afastamento da aplicação do artigo 870.° do CPC
às execuções fiscais não representa uma vantagem para o Estado em relação aos
trabalhadores, credores privilegiados, não constituindo um desequilíbrio
notório e ostensivo a favor do Estado, em detrimento do pensamento legislativo
subjacente ao nosso sistema jurídico”.
No Tribunal Constitucional, a recorrente
apresentou alegações, no termo das quais formulou as seguintes conclusões:
“1 – São inconstitucionais as normas constantes dos artigos 180.º, n.º 1, e
85.º, n.º 3, ambos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, na
interpretação segundo a qual a aplicação do disposto no artigo 180.°, n.º 1, do
CPPT colide com a norma constante do disposto no artigo 870.° do Código de
Processo Civil porque as situações a ela subsumíveis afastam, por contrárias, a
aplicação do disposto no artigo 870.° do CPC (afastando a sua aplicação
subsidiária) e em virtude de o disposto no artigo 85.°, n.º 3, do CPPT
restringir a possibilidade de suspensão da execução fiscal aos casos
especialmente previstos na lei, com o alcance prático de afastar a
possibilidade de aplicação à execução fiscal das regras de suspensão de
execução constantes do processo executivo comum, em nome do interesse público
ínsito na cobrança de créditos através do processo de execução fiscal (mesmo
estando em causa créditos privilegiados, como são os dos trabalhadores, também
com interesses públicos inerentes) e, deste modo, representando o artigo 180.°,
n.º 1, do CPPT norma especial em relação ao artigo 870.° do CPC, considerando‑se
violadas as normas constantes dos artigos 1.º, 13.°, 58.° e 59.° da
Constituição da República Portuguesa.
2 – São inconstitucionais as normas constantes dos artigos
180.°, n.º 1, e 85.°, n.º 3, ambos do Código de Procedimento e de Processo
Tributário, na interpretação segundo a qual o afastamento da aplicação do
artigo 870.° do Código de Processo Civil às execuções fiscais não representa
uma vantagem para o Estado em relação aos trabalhadores, credores privilegiados,
não constituindo um desequilíbrio notório e ostensivo a favor do Estado, em
detrimento do pensamento legislativo subjacente ao nosso sistema jurídico,
considerando‑se violados os artigos 1.°, 13.°, 58.° e 59.° da Constituição da
República Portuguesa.
3 – As interpretações em causa violam o disposto no artigo 1.°
da CRP pois são objectivamente ofensivas deste princípio constitucional por
resultar das mesmas uma situação injusta (impossibilidade de um credor fazer
suspender uma execução, por a mesma ter natureza fiscal e resultar de um
crédito do Estado propriamente dito), que se consubstancia no oferecimento da
possibilidade de satisfação de interesses estaduais face ao da recorrente e
cuja possibilidade surge de uma interpretação ilegítima.
4 – Na situação de uma empresa executada ter vários credores e
entre eles figurar o Estado, a impossibilidade de qualquer um deles suspender a
execução fiscal nos termos do disposto no artigo 870.° do CPC e com a
interpretação dada (cuja inconstitucionalidade se suscita) representará uma
vantagem para o Estado credor face aos demais credores da empresa, em violação
do artigo 13.° da CRP.
5 – Ao afastar as execuções fiscais da aplicação do artigo
870.° do CPP, enquanto que as de credores privilegiados, como os trabalhadores,
não o podem ser (por serem credores privilegiados, face à lei – Lei n.º
96/2001, de 20 de Agosto, e Código do Trabalho – e em razão de princípios
constitucionais – artigos 1.°, 58.° e 59.° da CRP), é manifesto que existe um
desequilíbrio notório e ostensivo a favor do Estado, em detrimento do
pensamento legislativo subjacente ao nosso sistema jurídico, e violador de
princípios constitucionais, encontrando‑se, assim, com a interpretação em causa,
também violados os princípios contidos nos artigos 58.º e 59.º da CRP.”
A recorrida Fazenda Pública contra‑alegou,
propugnando o improvimento do recurso com a argumentação de que da
interpretação acolhida no acórdão recorrido não decorre qualquer vantagem para o
Estado em relação aos credores privilegiados, que podem reclamar os seus
créditos no âmbito da execução fiscal, e de que tal interpretação está em
consonância com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, “que vem
considerando que o princípio da igualdade implica tratamento conforme às
diferenças de situações de facto e de direito”, concluindo que “sendo concedido
pela lei uma via de acesso ao direito e à justiça adequada à protecção do
direito de reclamação do crédito da recorrente, este não foi, pela via da
aplicação do n.º 1 do artigo 180.º e n.º 3 do artigo 85.º, ambos do CPPT, alvo
de qualquer discriminação susceptível de pôr em causa o princípio da igualdade
consagrado no artigo 13.º da CRP”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A questão suscitada no presente recurso
prende‑se essencialmente com a admissibilidade constitucional da diferenciação
dos regimes que, na interpretação acolhida pelas instâncias, vigoram na execução
“comum”, para a qual vale o artigo 870.º do CPC, que dispõe que “Qualquer credor
pode obter a suspensão da execução, a fim de impedir os pagamentos, mostrando
que foi requerido processo especial de recuperação da empresa ou de falência do
executado”, e na execução fiscal, para a qual da conjugação dos 85.º, n.º 3 (“A
concessão de moratória ou a suspensão da execução fiscal fora dos casos
previstos na lei, quando dolosas, são fundamento de responsabilidade tributária
subsidiária”), e 180.º, n.º 1 (“Proferido o despacho judicial de prosseguimento
da acção de recuperação da empresa ou declarada falência, serão sustados os
processos de execução fiscal que se encontrem pendentes e todos os que de novo
vierem a ser instaurados contra a mesma empresa, logo após a sua instauração”),
do CPPT resulta que a sustação da execução só ocorre após prolação de despacho
judicial de prosseguimento da acção de recuperação da empresa ou de decisão
judicial de declaração de falência.
Para a recorrente, esta diferenciação de
regimes viola o princípio da igualdade, quer enquanto privilegia
injustificadamente o Estado face à generalidade dos credores, quer, em especial,
enquanto confere uma situação de vantagem injusta ao Estado face aos
trabalhadores da empresa que sejam seus credores privilegiados.
Anote‑se, desde já, que não se justifica, no
presente caso, a apreciação da constitucionalidade desta última dimensão
normativa, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, de
que decorre só existir interesse relevante no seu conhecimento quando o juízo a
emitir pelo Tribunal Constitucional se mostre susceptível de ter repercussão no
sentido da decisão recorrida. Ora, não sendo a recorrente (que é uma sociedade
comercial) “trabalhadora” da empresa executada, e admitindo, por mera hipótese,
que o Tribunal Constitucional viesse a emitir juízo de inconstitucionalidade da
norma questionada, enquanto não consente aos trabalhadores da empresa executada,
seus credores privilegiados, a possibilidade de requererem a sustação da
execução fiscal com a mera demonstração de que haviam requerido processo
especial de recuperação da empresa ou de falência da executada, tal juízo de
nada aproveitaria à ora recorrente.
Resta, assim, a comparação entre o regime da
sustação da execução fiscal e o regime da suspensão da execução “comum” quando
requerida por credores comuns, para se aferir da alegada violação do princípio
da igualdade.
Como se referenciou no Acórdão n.º 302/97 e
traduz jurisprudência deste Tribunal:
“É sabido que o princípio constitucional da igualdade,
entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à
lei a realização de distinções. Proíbe‑lhe, antes, a adopção de medidas que
estabeleçam distinções discriminatórias – desde logo, diferenciações de
tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as
indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental (…)
–, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer
fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva
e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto
princípio vinculativo da lei, traduz‑se na ideia geral de proibição do arbítrio
(Willkürverbot).”
A esta luz, atento o interesse público
subjacente à actividade da cobrança dos impostos, cuja eficiência é essencial
para o regular funcionamento dos serviços públicos, vocacionados à satisfação de
necessidades colectivas, não surge como inadequada, irracional ou desajustada a
solução de só consentir a sustação da execução fiscal perante um despacho
judicial que ou determine o prosseguimento do processo de recuperação da empresa
executada ou decrete a sua falência, não deixando o normal andamento da
execução fiscal inteiramente dependente do mero requerimento por um credor
desse tipo de processos, sem prévio controlo judicial, por mais perfunctório que
seja, da sustentabilidade desse requerimento.
A não aplicabilidade do regime do artigo 870.º
do CPC ao processo de execução fiscal explica‑se, assim, pelo interesse público
ínsito na cobrança de créditos através do processo de execução fiscal, que
recomenda que não se coloque na disponibilidade das partes, independentemente de
qualquer intervenção judicial, a possibilidade de suspensão do processo, que
tem como corolário um prejuízo para aqueles interesses.
A razoabilidade de diferenciação de regimes com
base na relevância do interesse público subjacente à eficiência do sistema
fiscal, revelado quer em normas de natureza substantiva, quer de índole
adjectiva, tem sido reiteradamente salientada por este Tribunal. Assim, no
Acórdão n.º 153/2002, que não julgou inconstitucional a norma da primeira parte
do n.º 1 do artigo 736.º do Código Civil, que outorga ao Estado um privilégio
mobiliário geral, para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e
respectivos juros compensatórios, considerou‑se não ser “arbitrária, irrazoável
ou infundada – e, como tal, violadora do princípio da igualdade consagrado no
artigo 13.º da Constituição – a consagração de tal privilégio a favor do
Estado”, pois se trata “de uma medida legislativa justificável atentas as
múltiplas funções do Estado – económicas, sociais e culturais –, funções estas
que exigem uma cobrança, rápida e segura, das receitas provenientes das
contribuições e impostos para cobrir as despesas públicas com aumento
constante”, que “atentas as finalidades subjacentes ao sistema fiscal”, torna
“justificável a quebra da regra da par conditio creditorum, a que a norma ora em
causa procede”. Ou nos Acórdãos n.ºs 302/97, 303/97, 213/98, 251/98 e 355/98,
que não julgaram inconstitucional a norma do artigo 35.º, n.º 1, do Código de
Processo Tributário, que estabelecera um prazo prescricional de 5 anos para as
contra‑ordenações fiscais, superior ao do regime geral, consignando‑se que a
aludida diferenciação de prazos não “encerra uma desigualdade de tratamento
arbitrária, sem fundamento razoável ou material bastante dos arguidos em
processos de contra‑ordenação fiscal em comparação com os arguidos em outros
processos de contra‑ordenação”, considerando‑se, além do mais, que “a relevância
das funções cometidas pela Lei Fundamental ao «sistema fiscal» (artigos 106.º e
107.º da Constituição da República Portuguesa) constituirá suporte material
bastante para legitimar o estabelecimento de um regime especial de prescrição
do procedimento contra‑ordenacional fiscal menos favorável aos infractores,
dificultando e desincentivando a fuga ao cumprimento dos deveres fiscais –
essenciais à satisfação das necessidades financeiras do Estado e demais
entidades públicas e à realização de relevantes objectivos de justiça social”.
Idênticos valores justificam que, no presente
caso, se considere não arbitrário que, para a sustação da execução fiscal, o
legislador tenha considerado insuficiente a mera apresentação por um qualquer
credor de requerimento de processo de recuperação de empresa ou de declaração de
falência, exigindo, para que tal sustação tenha lugar, uma intervenção judicial
no sentido do prosseguimento daquele processo ou do decretamento da falência.
No sentido da razoabilidade da solução
legislativa em causa ainda se poderá invocar a diferença de consistência das
diversas categorias de crédito em causa: enquanto nos processos comuns (de
execução e de falência), os créditos dos credores comuns ainda demandam, em
regra, uma actividade de reconhecimento judicial ou da assembleia de credores,
já os créditos do Estado, advindos de impostos ou de contribuições para a
Segurança Social, têm‑se, à partida, por definitivos, certos e exigíveis com o
acto de liquidação, que tem a natureza de um título formal, de fonte legal, de
reconhecimento da existência dos créditos, sem prejuízo, obviamente, de
superveniência de anulação judicial perante impugnação da liquidação. Sendo
assim, compreende‑se que, quando estejam em causa créditos dependentes de
reconhecimento, a sustação da execução apenas ocorra após prolação de despacho
judicial de prosseguimento da acção de recuperação da empresa ou de decretação
da falência.
Não ocorre, pois, a alegada violação das normas
e princípios constitucionais invocados pela recorrente.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucionais as normas dos
artigos 180.°, n.º 1, e 85.°, n.º 3, do Código de Procedimento e de Processo
Tributário, na interpretação segundo a qual afastam a aplicação do artigo 870.°
do Código de Processo Civil às execuções fiscais; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a
decisão recorrida, na parte impugnada.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 23 de Maio de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos