Imprimir acórdão
Processo n.º 126/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A Companhia de Seguros A., SA, requereu, em 26
de Outubro de 2005, ao Tribunal do Trabalho de Bragança, a remição da pensão de
que é titular a beneficiária B., viúva do sinistrado C., alegando
que a pensão, com início em 6 de Setembro de 1986, cujo valor foi actualizado
para € 1386,80 em 1 de Dezembro de 2004, se tornou obrigatoriamente remível a
partir de 1 de Janeiro de 2003, com base nas disposições conjugadas dos artigos
41.º, n.º 2, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e 56.º e 74.º do Decreto‑Lei
n.º 143/99, de 30 de Abril, na redacção do artigo 3.º do Decreto‑Lei n.º
382‑A/99, de 23 de Setembro.
O representante do Ministério Público junto do
referido Tribunal pronunciou‑se, em 16 de Novembro de 2005, no sentido do
deferimento do pedido.
Por despacho judicial de 18 de Novembro de 2005
foi determinado a notificação da beneficiária para, no prazo de 10 dias, vir
aos autos declarar se se opunha à remição da sua pensão, com a expressa
advertência de que, nada dizendo, seria o seu silêncio havido como oposição.
A beneficiária nada disse.
Por despacho do Juiz do Tribunal do Trabalho de
Bragança, de 21 de Dezembro de 2005, a remição da pensão foi indeferida, com a
seguinte fundamentação:
“2. Nos termos dos artigos 33.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, e
56.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril,
aplicável às pensões resultantes de acidentes ocorridos antes da sua entrada em
vigor, por força do disposto no artigos 41.º, n.º 2, alínea a), da Lei, passaram
a ser obrigatoriamente remíveis as pensões anuais devidas a sinistrados e a
beneficiários legais de pensões vitalícias que não sejam superiores a seis
vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da
pensão e as devidas a sinistrados, independentemente do valor da pensão anual,
por incapacidade permanente e parcial inferior a 30%.
Alinhamos com a posição expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
13 de Julho de 2004 (n.º convencional JSTJ000, in http://www.dgsi.pt), no
sentido de que a data da fixação da pensão não pode ser entendida como a data da
decisão judicial que a fixou, mas antes a data a partir da qual a pensão é
devida. Esta tese não colide, salvo melhor entendimento, com a uniformização de
jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão n.°
4/2005, publicado no Diário da República, I Série‑A, de 2 de Maio de 2005.
Ora, a pensão em causa é devida à beneficiária desde 6 de Setembro de 1986. Por
sua vez, o seu valor inicial era de 81 720$00 (€ 407,62), ou seja, era inferior
a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada estabelecida
pelo Decreto‑Lei n.º 10/86, de 17 de Janeiro, que era de 22 500$00 (€ 112,23).
Estariam, pois, à partida, reunidos os pressupostos necessários à remição
obrigatória da pensão.
3. Contudo, tal como vem sendo entendido pelo Tribunal Constitucional
relativamente às pensões emergentes de incapacidades parciais permanentes
superiores a 30%, também no caso de pensões vitalícias por morte devidas aos
beneficiários legais, as normas dos artigos 56.º, n.º 1, alínea a), e 74.º do
Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, estão feridas de inconstitucionalidade
por violação do direito à justa reparação por acidente de trabalho ou doença
profissional, consagrado no artigo 59.°, n.° 1, alínea f), da Constituição,
quando interpretadas no sentido de imporem a remição obrigatória total dessas
pensões vitalícias, independentemente da vontade do pensionista.
Transcreve‑se, por elucidativa, parte da fundamentação do Acórdão n.° 56/2005 do
Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, II Série, n.° 44, de
3 de Maio de 2005, doutamente relatado pelo Ex.mo Conselheiro Paulo Mota Pinto,
no qual se apreciou a inconstitucionalidade material do citado artigo 74.º do
Decreto‑Lei n.º 143/99, quando interpretado no sentido de abranger no conceito
de pensões de reduzido montante todas as pensões infortunísticas laborais,
incluindo nelas as situações de total ou elevada incapacidade permanente:
«5. No Acórdão n.° 379/2002 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 54.º, págs. 313‑321) escreveu‑se, a propósito, então, do artigo 56.° do
Decreto‑Lei n.° 143/99, que a ‘filosofia subjacente’ à remição obrigatória de
pensões prevista no seu n.º 1, segundo dois diferentes critérios – o do montante
diminuto da pensão, segundo a alínea a), e o do grau de incapacidade laboral,
nos termos da alínea b) – e à remição facultativa de pensões, prevista no seu
n.º 2, era:
‘[...] a de permitir que a compensação correspondente à pensão fixada ao
trabalhador vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional, não
impeditivos de posterior exercício da sua actividade, possa converter‑se em
capital e, assim, ser aplicada porventura de modo mais rentável do que a
permitida pela mera percepção de uma renda anual.
Se a via que o legislador encontrou é válida perante uma incapacidade diminuta,
a que corresponda montante de pensão reduzido, já não o será em casos de maior
gravidade, de modo a colocar, porventura, em causa, dada a álea inerente, a
aplicação do capital. Daí o não se aceitar que, nos casos de incapacidade de
trabalho fixada em maior percentagem, com natural repercussão no montante da
pensão, se estabeleça uma limitação ao poder de o trabalhador pedir ou não a
remição, reflectida na obrigatoriedade de a esta se proceder.’
Tal interpretação da teleologia das normas é corroborada pela salvaguarda, no
n.° 2 do artigo 33.° da Lei n.° 100/97, de 13 de Setembro, de um limite máximo à
remição parcial em situações de ‘incapacidade igual ou superior a 30%’ (‘desde
que a pensão sobrante seja igual ou superior a 50% do valor da remuneração
mínima mensal garantida mais elevada’), e pela inexistência de previsão de ‘um
capital de remição’, no artigo 17.° da Lei n.º 100/97, para situações em que a
incapacidade fosse superior a 30%. (...).
Em todo o caso, o argumento mais relevante apresentado pela decisão recorrida
contra a conformidade constitucional da norma do artigo 74.° do Decreto‑Lei n.º
143/99 (na redacção dada pelo artigo 2.° do Decreto‑Lei n.º 382-A/99, e na
interpretação que foi efectuada pela decisão recorrida, que o Tribunal
Constitucional tem de aceitar como um dado no presente recurso) foi, justamente,
o dos limites à teleologia da remição: nesses casos de incapacidade elevada,
‘só a subsistência de uma pensão vitalícia poderá precaver o sinistrado contra
o destino, eventualmente aleatório, do capital resultante da remição
obrigatória, em casos como o sub judice’.
Neste ponto, a decisão recorrida foi também ao encontro da ponderação reiterada
pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 302/99 (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 43.º, págs. 597‑603), no qual se pode ler:
‘o estabelecimento de pensões por incapacidade tem em vista a compensação pela
perda da capacidade de trabalho dos trabalhadores devida a infortúnios de que
foram alvo no ou por causa do desempenho do respectivo labor.
E, por isso, compreende‑se que, se uma tal perda não foi por demais acentuada, o
que o mesmo é dizer que o acidente de trabalho ou a doença profissional não
implicou a futura continuação do desempenho de labor por parte do trabalhador
(ainda que tenha reflexo, mesmo em medida não muito relevante, na retribuição
por aquele desempenho, justamente pela circunstância de não apresentar uma total
capacidade de trabalho), se permita que a compensação correspondente à pensão
que lhe foi fixada – e sabido que é que, de uma banda, o montante das pensões é
de pouco relevo e, de outra, que o quantitativo fixado se degrada com o passar
do tempo – possa ser “transformada” em capital, a fim de ser aplicada em
finalidades económicas porventura mais úteis e rentáveis do que a mera percepção
de uma “renda” anual cujo quantitativo não pode permitir qualquer subsistência
digna a quem quer que seja.
Transformação essa que ocorrerá a requerimento do trabalhador ou da entidade
responsável pelo pagamento da pensão, ou, até, obrigatoriamente, por força da
própria lei, neste último caso quando a incapacidade for diminuta (até 10%) e o
montante da pensão for reduzido.
Outro tanto se não passará quando em causa se postarem acidentes de trabalho ou
doenças profissionais cuja gravidade seja de tal sorte que vá acentuadamente
diminuir a capacidade laboral do trabalhador e, reflexamente, a possibilidade
de auferir salário condigno com, ao menos, a sua digna subsistência. Nestas
situações, e porque a pensão é, necessariamente, de mais elevado montante,
servirá ela de complemento à parca (e por vezes nula) remuneração que aufere em
consequência da reduzida capacidade de trabalho.
Se o montante dessas pensões se perspectivar como algo que actua (ou actuaria
desejavelmente) como um mínimo de asseguramento de subsistência então
compreende‑se que o legislador pretenda, como assinala o Ex.mo Procurador‑Geral
Adjunto na sua alegação, “colocar o trabalhador a coberto dos riscos de
aplicação do capital de remição”.
Efectivamente, a aplicação de um capital – ainda que no momento em que essa
intenção é formulada se apresente como um investimento adequado, porquanto
proporcionador de um rendimento mais satisfatório do que o correspondente à
percepção da pensão anual – é sempre alguma coisa que, em virtude de ser
aleatória, comporta riscos.
E daí se aceitar que, nos casos em que a incapacidade de trabalho se situa em
maior percentagem (com o consequente maior montante da pensão), o legislador,
para ressalva do próprio trabalhador que dessa incapacidade padece, não autorize
a remição das respectivas pensões, desta sorte estabelecendo uma limitação ao
poder do trabalhador de pedir ou não a remição.’
Neste Acórdão n.º 302/99 (bem como no Acórdão n.º 482/99, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional pronunciou‑se sobre a
conformidade constitucional de disposições que vedam a remição de certas pensões
‘a requerimento dos pensionistas ou das entidades responsáveis’, e julgou‑as
inconstitucionais por violação das disposições conjugadas dos artigos 13.°, n.º
1, 59.°, n.º 1, alínea f), e 63.°, n.º 3, da Constituição.
No presente caso, o problema é de certa forma inverso, pois não está em causa a
limitação ao poder de o trabalhador ponderar se, atento o diminuto quantitativo
da pensão, não seria mais compensador a efectivação da remição (que redundava –
disse-se –, ‘verdadeiramente, na consagração de uma discriminação materialmente
infundada, actuando como um obstáculo a que o sistema de segurança social
proteja adequadamente [...] o direito dos trabalhadores à justa reparação,
quando vítimas de acidentes de trabalho ou de doença profissional [artigo 59.°,
n.° 1, alínea f), do diploma básico]’}, mas antes a limitação a continuar a
receber a pensão, pela imposição de uma remição obrigatória, para todas as
pensões infortunísticas laborais, mesmo que por incapacidades parciais
permanentes que excedam 30%.
Todavia, também no presente caso a interpretação em causa redunda numa limitação
do poder de o trabalhador ponderar se é menos arriscado continuar a receber a
pensão e recusar a remição – numa imposição do risco do capital a receber –, a
qual, com a extensão que a dimensão normativa admite, tornaria precário e
limitaria o direito dos trabalhadores a uma justa reparação, quando vítimas de
acidente de trabalho ou doença profissional.
6. (…)
Pode, assim, concluir‑se, como nos acórdãos citados, que a remição total
obrigatória – isto é, independentemente da vontade do beneficiário – de uma
pensão vitalícia atribuída por uma incapacidade parcial permanente superior a
30% é inconstitucional por violação do direito à justa reparação por acidente de
trabalho ou doença profissional, consagrado no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da
Constituição.»
4. Os ensinamentos resultantes da jurisprudência constitucional citada, embora
se refiram ao artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, valem
igualmente para o artigo 56.º, n.° 1, alínea a), quando interpretado no sentido
de impor a remição obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do
titular, de pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes
superiores a 30%, na medida em que, ao impor uma limitação ao direito do
sinistrado poder optar, ou pela remição, ou, antes, pelo recebimento da sua
pensão sob a forma de renda anual, tal interpretação põe em causa o princípio
constitucional do direito à justa reparação por acidente de trabalho ou doença
profissional estabelecido no artigo 59.º, n.° 1, alínea f), da Constituição.
E valem também, salvo melhor entendimento, nos casos em que o pensionista não é
o trabalhador sinistrado, mas antes um seu beneficiário legal.
Com efeito, a lei estende o regime especial da reparação dos acidentes de
trabalho aos familiares dos trabalhadores, como decorre do disposto no artigo
1.º da Lei n.º 100/97, o que se justifica, na medida em que aqueles familiares
beneficiam, se não mesmo dependem, dos rendimentos do trabalho por estes
auferidos. Como decorre do disposto no artigo 20.º da referida lei, o direito
desses familiares é reconhecido, nuns casos, independentemente de estes terem ou
não rendimentos próprios (cônjuge ou pessoa em união de facto e filhos até aos
25 anos enquanto frequentarem ensino médio ou superior ou quando afectados de
doença física ou mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho) e,
noutros casos, porque o trabalhador contribuía regularmente para o seu sustento
(ascendentes ou quaisquer parentes sucessíveis à data da morte até aos 25 anos
enquanto frequentarem ensino médio ou superior ou quando afectados de doença
física ou mental que os incapacite sensivelmente para o trabalho). Em todas as
situações, o pressuposto da atribuição ao beneficiário legal de uma pensão por
morte do trabalhador sinistrado é o da contribuição deste, presumida ou
efectiva, para o sustento daquele. Daí que a pensão por morte atribuída aos
beneficiários legais tenha a natureza de uma prestação de carácter alimentício,
que, se para uns funcionará como um complemento aos seus meios de subsistência,
para outros será o principal, se não mesmo o único meio de assegurar uma
subsistência condigna.
Em qualquer caso, o direito constitucional à justa reparação dos danos
emergentes de acidente de trabalho postula que, à semelhança do que sucede no
caso do pensionista ser o próprio trabalhador sinistrado, seja o beneficiário
legal, no seu livre arbítrio, a decidir qual a forma de reparação que melhor lhe
convém, isto é, a optar entre o recebimento da sua pensão em duodécimos e o
recebimento de um capital de remição, ponderando os riscos inerentes à sua
aplicação.
Em abono de tal entendimento, transcreve‑se uma passagem do douto Acórdão do
Tribunal Constitucional n.º 379/2002, proc. n.º 172/02, de 26 de Fevereiro de
2002., publicado no Diário da República, II Série, n.º 290, de 16 de Janeiro de
2002 (citado, aliás, no Acórdão n.º 56/2003 supra referido), que, embora se
tivesse pronunciado pela conformidade constitucional da remição de pensões por
morte de reduzido montante perspectivada sob o prisma do princípio da igualdade
quando comparadas com outras pensões por morte que não sejam consideradas de
reduzido montante, não deixou de adiantar a desconformidade constitucional da
remição das mesmas pensões à luz do principio da justa reparação dos acidentes
de trabalho:
«5. (...).
No caso sub judice o beneficiário da pensão não é o próprio sinistrado, uma vez
que este morreu, mas poder‑se‑á defender que, também aqui, haverá que proceder a
idêntica ponderação: se, face a um quadro em que as pensões tendem
inevitavelmente a degradar‑se, se consideraram inconstitucionais as normas que
estabelecem ‘uma limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a remição’,
justificar‑se‑ia também um juízo de inconstitucionalidade para uma
interpretação normativa que, por morte do trabalhador, impõe a remição
obrigatória das pensões, sujeitas a actualizações anuais e ajustes por idade dos
beneficiários, para assim se salvaguardar a liberdade de o beneficiário correr
os riscos do capital de remição (...).»
A mesma ponderação é feita, num caso semelhante, no Acórdão n.º 21/2003, do
Tribunal Constitucional, de 15 de Janeiro de 2003, publicado no Diário da
República, II Série, n.º 42, de 19 de Fevereiro de 2003, no qual se refere, a
dado passo, que «tal como naquelas [Acórdãos n.ºs 302/99 e 482/99] anteriores
decisões (face a um quadro em que as pensões tendiam inevitavelmente a
degradar‑se) se consideraram inconstitucionais as normas que estabeleciam ‘uma
limitação ao poder do trabalhador de pedir ou não a remição’, dir‑se‑ia que
haveria que chegar agora a um juízo de inconstitucionalidade da interpretação da
norma (...) que impõe a remição obrigatória de pensões, por morte do
trabalhador, sujeitas a actualizações anuais e reajustes por idade dos
beneficiários, desde que tenham a oposição destes, para se salvaguardar a
liberdade de o beneficiário ‘correr os riscos de aplicação do capital de
remição’, como naquelas decisões.»
Conclui‑se, pois, que a interpretação do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, no sentido de impor a remição
obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do titular, de pensões
vitalícias atribuídas por morte aos beneficiários legais do sinistrado
falecido, defendida pela seguradora responsável e pela Digna Procuradora da
República, põe em causa o princípio constitucional do direito à justa reparação
por acidente de trabalho ou doença profissional, estabelecido no artigo 59.º,
n.º 1, alínea f), da Constituição, na medida em que impõe uma limitação ao
direito do beneficiário‑pensionista poder optar, ou pela remição, ou, antes,
pelo recebimento da sua pensão sob a forma de renda anual.
5. Pelo exposto, considerando que a beneficiária nestes autos, pelo seu
silêncio, se opôs à remição da sua pensão, decide-se não aplicar, porque
inconstitucional, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da
Constituição, a norma resultante do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do
Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, quando interpretada no sentido de impor
a remição obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do titular,
de pensões atribuídas por incapacidades parciais permanentes superiores a 30%
ou por morte, e, consequentemente, indeferir a requerida remição obrigatória
da pensão fixada nestes autos à beneficiária Sofia Graça Silva Morais.”
É desta decisão que vem obrigatoriamente
interposto, pelo Ministério Público, o presente recurso, nos termos do artigos
70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei
n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), visando a apreciação da
constitucionalidade da norma do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei
n.º 143/99, de 30 de Abril, “quando interpretada por forma a impor a remição
obrigatória total, isto é, independentemente da vontade do titular, de pensões
atribuídas por incapacidades parciais permanentes superiores a 30% ou por
morte”.
O representante do Ministério Público no
Tribunal Constitucional apresentou alegações, no termo das quais formulou as
seguintes conclusões:
“1 – Face à firme corrente jurisprudencial, formada na esteira
do decidido no Acórdão n.º 56/2005, não se conforma com o princípio
constitucional da justa reparação dos danos emergentes de acidentes laborais,
estabelecido no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República
Portuguesa o regime que se traduz em impor ao trabalhador/sinistrado ou, no caso
de morte, ao familiar/beneficiário – contra a sua vontade expressa no processo
– a obrigatória remição das pensões vitalícias que – independentemente do seu
montante pecuniário – visam compensar graus elevados – superiores a 30% – de
incapacidade laboral.
2 – Tal entendimento tanto se justifica quanto às pensões
fixadas anteriormente à vigência do Decreto‑Lei n.º 143/99 (previstas no
artigo 74.°), como às pensões decorrentes de acidentes já ocorridos após vigorar
este diploma legal, cuja remição obrigatória está prevista e regulada no artigo
56.º
3 – Não viola o princípio da igualdade a circunstância de – em
consequência da remição da pensão – certos trabalhadores ou beneficiários
receberem um capital indemnizatório, que passam a administrar livremente,
enquanto os restantes continuam a receber uma indemnização expressa em pensão
ou renda vitalícia, não objecto de remição.
4 – Porém, a norma constante do artigo 56.º, n.º 1, alínea a),
do Decreto‑Lei n.º 143/99, ao impor, independentemente da vontade do
trabalhador ou beneficiário, a remição obrigatória total de pensões atribuídas
por incapacidades parciais permanentes superiores a 30%, ou por morte do
sinistrado, ofende o princípio constitucional da justa reparação de danos
causados por acidentes laborais.
5 – Termos em que deverá confirmar‑se o juízo de
inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.”
A recorrida não contra‑alegou.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Conforme se refere nas alegações do Ministério
Público, era sustentável – face à situação de facto subjacente à decisão
recorrida, reportada a acidente de trabalho ocorrido em 1986 – que se
considerasse aplicável o disposto no artigo 74.º, e não directamente o
estatuído no artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de
Abril.
No entanto, foi esta última a norma cuja
aplicação foi expressamente recusada, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, pela decisão recorrida, pelo que é a questão da sua
conformidade constitucional que constitui objecto do presente recurso, embora
circunscrita à dimensão delimitada pela situação subjacente à decisão. Isto é:
constitui objecto do presente recurso a norma constante do artigo 56.º, n.º 1,
alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, interpretada no sentido de
impor a remição obrigatória de pensões devidas por acidentes de trabalho,
ocorridos anteriormente à data da entrada em vigor desse diploma, de que haja
resultado a morte do sinistrado, que não sejam superiores a seis vezes a
remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da fixação da pensão,
opondo‑se o beneficiário à remição.
São numerosas as decisões deste Tribunal sobre
a presente problemática, embora incidindo em casos em que beneficiário da pensão
é o próprio sinistrado e do acidente haja resultado incapacidade parcial
permanente superior a 30%.
Pelo Acórdão n.º 34/2006, na sequência do
Acórdão n.º 56/2005 e das Decisões Sumárias n.ºs 234/2005 e 247/2005, foi
declarada “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma
constante do artigo 74.º do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, na redacção
dada pelo Decreto‑Lei n.º 382‑A/99, de 22 de Setembro, interpretado no sentido
de impor a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por
incapacidades parciais permanentes do trabalhador/sinistrado, nos casos em que
estas incapacidades excedam 30%, por violação do artigo 59.º, n.º 1, alínea f),
da Constituição da República Portuguesa”. Esse juízo de inconstitucionalidade
foi reiterado no Acórdão n.º 73/2006 e da aludida declaração de
inconstitucionalidade foi feita aplicação nos Acórdãos n.ºs 82/2006 e 112/2006 e
nas Decisões Sumárias n.ºs 34/2006, 36/2006, 38/2006, 39/2006, 48/2006, 76/2006,
180/2006, 219/2006 e 234/2006.
E, relativamente à norma, ora em causa, do
artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, cuja aplicação fora
recusada, com fundamento em inconstitucionalidade, pelas decisões recorridas
(embora se tratasse de acidentes ocorridos antes da entrada em vigor desse
diploma), o Tribunal Constitucional, considerando transponível a fundamentação
desenvolvida a propósito do artigo 74.º, julgou‑a inconstitucional nos Acórdãos
n.ºs 58/2006, 118/2006, 204/2006, 292/2006, 322/2006 e 323/2006. Este juízo de
inconstitucionalidade foi reiterado nas Decisões Sumárias n.ºs 87/2006,
102/2006, 110/2006, 111/2006, 128/2006, 129/2006, 131/2006, 144/2006, 145/2006,
148/2006, 159/2006, 160/2006, 195/2006, 207/2006, 261/2006 e 262/2006, na
generalidade das quais nenhuma alusão se faz à data do acidente. Constituiu
fundamento do juízo de inconstitucionalidade constante de todos os Acórdãos e
Decisões Sumárias acabados de citar a violação do artigo 59, n.º 1, alínea f),
da Constituição da República Portuguesa, e, nos Acórdãos n.ºs 322/2006 e
323/2006 (embora com votos dissidentes quanto a este fundamento), ainda a
violação do princípio da confiança.
Recentemente, pelo Acórdão n.º 438/2006, o
Tribunal Constitucional apreciou, pela primeira vez, embora reportada ao artigo
74.º do citado diploma, a mesma questão de inconstitucionalidade ora em causa,
em que beneficiário da pensão não era o sinistrado, já que do acidente resultou
a sua morte, mas sim a sua viúva, e decidiu “julgar inconstitucional, por
violação conjugada do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 59.º da
Constituição e do princípio da confiança, inerente ao princípio do Estado de
Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, a norma constante do artigo
74.º do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (na redacção emergente do
Decreto‑Lei n.º 382‑A/99, de 22 de Setembro), interpretada no sentido de impor
a remição obrigatória total de pensões vitalícias atribuídas por morte,
opondo‑se o titular à remição, pretendida pela seguradora”.
Como nesse Acórdão se reconhece, “pese embora a
circunstância de o titular (por direito próprio, não por sucessão) do direito à
pensão não ser, aqui, o trabalhador, não se afasta o critério da tutela
constitucional do direito à «assistência e justa reparação» por «acidentes de
trabalho» para aferir a validade constitucional da norma em apreciação, já que o
direito a pensão desempenha, no fundo, uma função de substituição da
contribuição que o vencimento do trabalhador significava para a subsistência do
beneficiário”.
Na verdade, apesar da formulação literal do
preceito constitucional (“1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade,
sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, têm direito: (…) f) A assistência e justa reparação, quando vítimas
de acidente de trabalho ou de doença profissional.”), não parece sustentável que
o direito à justa reparação de acidente de trabalho fique circunscrito à pessoa
do trabalhador. Nenhuma razão material justificaria que, exactamente nos casos
em que o sinistro laboral teve mais graves consequências – a morte do
trabalhador –, se tornasse mais ténue a exigência constitucional da justiça da
reparação.
É certo que para as situações em que o
beneficiário da pensão não é o trabalhador sinistrado não valem todos os
argumentos aduzidos na jurisprudência deste Tribunal atrás citada, em especial o
que apela à maior ou menor valia do salário que o trabalhador poderá continuar a
auferir de acordo com a sua capacidade residual de trabalho.
No entanto, o cerne do juízo de
inconstitucionalidade radica em que a imposição da remição de pensões, que o
beneficiário já vinha auferindo e que não são de reduzido montante, apesar da
oposição desse beneficiário a essa remição (e, assim, com desrespeito da
autonomia da sua vontade), atenta a maior aleatoriedade dos proventos que se
poderão obter com a aplicação do capital face à percepção regular da pensão, não
assegura a “justa reparação” constitucionalmente imposta.
Neste contexto, assume relevância a
consideração, exposta na passagem transcrita do Acórdão n.º 438/2006, da
função, que a pensão tem, de substituição da contribuição que o vencimento do
trabalhador significava para a subsistência do beneficiário.
Consideração que é assim desenvolvida:
“Essa função é, aliás, revelada pelos termos em que o artigo
20.º da Lei n.º 100/97 define, quer o círculo dos titulares, quer as condições
da sua atribuição.
Basta verificar que o direito é reconhecido a pessoas a quem o
sinistrado, em vida, estava legalmente obrigado a prestar alimentos ou, em
certos casos, os prestava de facto: cônjuge (cfr. artigos 1672.º, 1675.º,
2009.º, n.º 1, alínea a), e 2015.º do Código Civil), ex‑cônjuge ou cônjuge
judicialmente separado de pessoas e bens com direito a alimentos (cfr. artigos
2009.º, n.º 1, alínea a), e 2016.º do Código Civil), filhos (cfr. artigos
1874.º, 1880.º, 2009.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil), ascendentes (cfr.
artigo 2009.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil) e quaisquer parentes
sucessíveis, desde que o sinistrado «contribuísse com regularidade para o seu
sustento». No último caso, há um alargamento (subjectivo) em relação ao que
consta do artigo 2009.º, alíneas d) e e), do Código Civil, todavia
contrabalançado com a exigência acabada de referir.
Quanto ao direito a pensão reconhecido ao unido de facto, há
que ter em conta que o artigo 6.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, exige, como
condição de atribuição da pensão, a reunião das condições constantes do artigo
2020.º do Código Civil, ou seja, para que o agora interessa, a titularidade do
«direito a exigir alimentos da herança do falecido».”
Concluindo‑se, como se conclui, que a dimensão
normativa ora em apreço viola o disposto no artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da
CRP, torna‑se desnecessário apreciar se também ocorre violação do princípio da
confiança.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do
artigo 59.º, n.º 1, alínea f), da Constituição da República Portuguesa, a norma
do artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei n.º 143/99, de 30 de Abril,
interpretada no sentido de impor a remição obrigatória de pensões devidas por
acidentes de trabalho, ocorridos anteriormente à data da entrada em vigor desse
diploma, de que haja resultado a morte do sinistrado, que não sejam superiores
a seis vezes a remuneração mínima mensal garantida mais elevada à data da
fixação da pensão, opondo‑se o beneficiário à remição; e, consequentemente,
b) Confirmar a decisão recorrida, na parte
impugnada.
Sem custas.
Lisboa, 18 de Julho de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos