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Processo nº 322/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso, foi o ora
recorrente, A., condenado, como autor material de três crimes de abuso de
confiança fiscal contra a segurança social, em cúmulo jurídico, na pena única de
200 dias de multa à taxa diária de € 10 (dez), a que correspondem 133 (cento e
trinta e três) dias de prisão subsidiária, bem como a pagar ao Instituto de
Gestão Financeira da Segurança Social (ora recorrido), a quantia de € 73.003,56,
acrescido dos respectivos juros legais. Inconformado, o arguido recorreu para o
Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 19 de Outubro de 2005, negou
provimento ao recurso.
2. Desta última decisão foi interposto recurso de constitucionalidade, através
do seguinte requerimento:
“[...] vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos
seguintes termos:
a)- o recurso é interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do art.º 70.º, em
conformidade com o n.º 2 do mesmo preceito e, bem assim, com as disposições dos
art.ºs 43.º, n.º 1, 71.º, art.º 72°, n.º 1, alínea b) e n.º 2, art.º 75.º, n.º
1, e art.º 75.º-A, n.º 1 e n.º 2, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (
com as alterações introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei
ao 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º
13- A/98, de 26 de Fevereiro);
b)- pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma jurídica que
tipifica o crime de abuso de confiança contra a segurança social, ou seja o que
aprovou o Regime Geral das Infracções Tributárias, de per si e quando conjugada
com os art.ºs 205° do Código Penal, 1.º, 18.º, nºs 1 e 3, 20.º, nºs 1 e 2, 28.º,
n.º 1, 30.º, n.º 1, alínea a), 31.º, n.º 1 e 34.º, estes da Lei Geral
Tributária; e, ainda, com os art.ºs 1.º, 5.º, n.º 2 e 13.º, estes do Decreto-Lei
n.º 103/80, de 9 de Maio, que aprovou o Regime Jurídico das Contribuições para a
Previdência; e também com o art.º 10.º n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 199/99,
de 8 de Junho; e, bem assim, apreciada a inconstitucionalidade da norma legal do
art° 129.º, quando conjugada com o disposto no art° 24.º, n.º 1, da Lei Geral
Tributária, com o art.º único do Decreto-Lei n.º 68/87, de 9 de Fevereiro e com
o art.º 78.º do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
262/86, de Setembro;
c)- a referida norma jurídica do mencionado art.º 107° que tipifica o crime de
abuso de confiança contra a segurança social, de per si e a dita norma do
mencionado art.º 129° do Cód. Penal, quando conjugadas com as demais normas
atrás enunciadas, violam os:
- art° 2°, art.º 3.º, n.º 2 e n.º 3, art.º 8°, n.º 1 e n.º 2, art.º 18.º, n.º 2,
art.º 27.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, bem como o
art° 1º do Protocolo n.° 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem
( cuja interpretação diferirá do que tem explanado pelo Tribunal Constitucional)
e, consequentemente, os princípios constitucionais da legalidade, da proibição
do excesso e da proporcionalidade (com os seus respectivos corolários princípios
da adequação e da necessidade), e, bem assim, o princípio transconstitucional da
unidade da ordem jurídica, e respectivo corolário princípio de justiça,
subjacente ao Estado de Direito em sentido material;
Sem conceder sobre o supra exposto, se assim não se entender - hipótese que se
formula por mero raciocínio:
d)- pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da aludida norma jurídica que
tipifica o crime de abuso de confiança contra a segurança social com a
interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida quando conjugada com o
art.º 36.º do Código Penal, com os art.ºs 19.º e 25.º do Decreto-Lei n.º 49 408,
de 24 de Novembro de 1969, que estabelece o regime jurídico do Contrato de
Trabalho, com o art.º 12.º, n.º l da Lei n.º 17/86, de 14/06, que define o
regime jurídico dos salários em atraso, com o art.º 4 da Lei n.º 96/01, com os
artigos 1.º, n.º 2, 6.º, 8.º e 152.º do Código dos Processos Especiais de
Recuperação da Empresa e Falência, e com o art.º 11.º da Convenção 95 da
Organização Internacional do Trabalho, interpretação essa constante da passagem
da sentença que a seguir se reproduz:
“Estando em confronto interesses de natureza patrimonial, o mais que se pode
conceder é que um e outro são igualmente relevantes, admitindo-se até, num plano
interpretativo mais rigoroso, que o interesse protegido do Estado, de natureza
pública, supera o interesse particular da sociedade arguida, tendo em conta a
força com que a lei protege os bens jurídicos, critério este relacionado com o
princípio ético-social vigente na sociedade, a conferir prevalência aos
interesses de carácter público.
Assim sendo, não estão reunidos quer os pressupostos quer os requisitos do
conflito de deveres (art.º 36, n.1, do C.P.) e não pode ter-se por excluída a
ilicitude dos factos praticados pelo arguido.”
e)- a referida norma jurídica que tipifica o crime de abuso de confiança contra
a segurança social quando conjugada com os mencionados preceitos normativos e
aplicada com a supra interpretação transcrita, viola outrossim o: - art° 2°,
art.º 3.º, n.º 2 e n.º 3, art° 8°, n° 1 e n° 2, art.º 18.º, n.º 2, art.º 27.º,
n.º 1, 29.º, n.º l, 58.º e 59.º, n.º l, alínea a) e n.º 3, todos da Constituição
da República Portuguesa, e, consequentemente, os princípios constitucionais da
legalidade, da proibição do excesso e da proporcionalidade ( com os seus
respectivos corolários princípios da adequação e da necessidade ), e, bem assim,
o princípio transconstitucional da unidade da ordem jurídica, e respectivo
corolário princípio de justiça, subjacente ao Estado de Direito em sentido
material;
f)- a questão da inconstitucionalidade que pretende ver apreciada nos termos
expostos foi suscitada nos autos de processo crime comum n.º 606/00.8TASTAS,
mais precisamente nas alegações e conclusões, ou seja itens 11 a 14.4 da
referida alegação, e nas alíneas J) a P) e S) das referidas conclusões.
3. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na
parte agora relevante, o seu teor:
“[...] 3. Cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do objecto do
presente recurso, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal
Constitucional (cfr. art. 76º, n.º 3 da LTC).
Na verdade, o recurso de constitucionalidade que vem interposto, o previsto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, pressupõe,
nomeadamente, que o recorrente tenha suscitado a questão de constitucionalidade
normativa que pretende ver apreciada “de modo processualmente adequado perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida” (cfr. artigo 72º, n.º 2, do mesmo
diploma). Ora, como vai sumariamente ver-se já de seguida, é manifesto que, nos
presentes autos, tal não aconteceu. Vejamos.
4. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade afirma o
recorrente que “a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada
nos termos expostos foi suscitada nos autos do processo crime comum nº
606/00.8TASTAS, mais precisamente nas alegações e conclusões, ou seja itens 11 a
14.4 da referida alegação, e nas alíneas J) a P) e S) das referidas conclusões”.
A verdade, porém, é que, ao contrário do que afirma, não está ali colocada, de
modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade normativa
susceptível de integrar o recurso para este Tribunal. Para o demonstrar,
recorda-se agora o teor daquelas passagens da alegação do recurso apresentada
pelo recorrente:
«11.- A problemática deste conflito surge no acórdão recorrido com referência à
posição do arguido expressa na sua contestação, quando confessa ter optado por
prioritariamente pagar aos trabalhadores apenas os montantes líquidos dos
respectivos salários, na expectativa de conseguir que a sociedade co-arguida
realizasse dinheiro e, consequentemente, pudesse pagar as prestações tributárias
devidas à segurança social, o que de outra forma não conseguiria. Acrescentou,
ainda, na sua contestação que, subjacente à opção de pagamentos adoptada, a sua
intenção foi sempre a de assegurar os postos de trabalho e de regularizar a
situação fiscal da sociedade, querendo o arguido que, com a sua actuação,
observava, na forma que lhe era possível, o cumprimento das suas obrigações
legais.
12.- Nesta problemática, para aferir da justeza do comportamento do arguido, é
desprezível o interesse dos pagamentos feitos com a água, luz e telefone, já que
representam quantias menores, pondo-se fundamentalmente a questão do conflito
entre o dever de pagar o salário aos trabalhadores e o dever de pagar as
contribuições à segurança social.
Quer dizer, no essencial, a questão pode enunciar-se da seguinte forma: havendo
apenas dinheiro para pagar os salários aos trabalhadores, devia o arguido ter
feito, como fez, esse pagamento ou ter pago à segurança social em detrimento
daquele pagamento ou, ainda, ter rateado as importâncias por forma a pagar
àqueles e a esta, na devida proporção.
13.- O douto acórdão recorrido entende que, naquela encruzilhada de carência de
meios, ao arguido era vedado fazer opções de pagamento, pois na impossibilidade
de cumprir os seus compromissos por inteiro tinha o dever de apresentar à
falência a empresa que geria.
E que, por outro lado, mesmo que houvesse conflito de interesses, o arguido não
tinha satisfeito aquele de valor igual ou superior do de pagar a segurança
social, não ficando, assim, ao abrigo do disposto no art.° 36°, n.° 1, do Cód.
Penal.
14.- Importa fazer análise mais detalhada a estes aspectos.
14.1- Em primeiro lugar, o dever de apresentação à falência referida no art.° 6°
do CPEREF não se apresenta com a singeleza com que o acórdão recorrido o
caracteriza.
E que o dever de apresentação à falência imposto naquele preceito legal não
decorre de qualquer falta de cumprimento das obrigações da entidade devedora,
mas apenas no caso de tal incumprimento ocorrer nas circunstâncias descritas na
al. a) do n.° 1 do art.° 8° do mesmo diploma legal, ou seja, que essa falta de
cumprimento, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem
a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas
obrigações.
A situação falimentar, para o ser, exige que seja patológica, na medida em que
deva traduzir uma situação sem esperança justificada de se viabilizar
economicamente ou de conseguir a sua recuperação financeira.
Só assim o decretamento da falência obedece aos parâmetros que lhe são fixados
no art.° 1º, n.° 2, do mesmo Código.
14.1.1- Pode dizer-se que é unânime, na doutrina o entendimento que se deixa
exposto (cfr., entre outros, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código dos
Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, 3ª ed., notas aos
art°s. 3°, 6° e 8°; António Mota Salgado, Falência e Insolvência, Editorial
Notícias, 2ª ed., pág. 12; Maria do Rosário Epifánio, Os Efeitos Substantivos da
Falência, Publicações Universidade Católica, Porto 2000, págs. 32 e 33).
14.2- Em segundo lugar, não se afigura correcto a prevalência que, embora por
boas razões, o acórdão recorrido dá ao dever do pagamento das contribuições à
segurança social frente a todos os outros deveres, nomeadamente ao dever do
pagamento dos salários aos trabalhadores.
14.2.1- Numa coisa está-se de acordo com o douto acórdão recorrido: é que está
na lei o critério da licitude do cumprimento dos deveres jurídicos em caso de
conflito entre eles.
14.2.2- Reduzindo a questão à antinomia essencial do conflito em causa -
pagamento de salários ou pagamento de contribuições à segurança social, parece
não oferecer dúvida que a lei, a começar pela nossa Lei Fundamental, dá
preferência ao cumprimento dos salários.
Assim é que a C.R.P., além de consagrar no seu art.° 58° o direito do trabalho
como incumbência do Estado, proclama no seu art.° 59° o direito dos
trabalhadores à retribuição do seu trabalho (n.° 1, al. a)), indo ao ponto de,
no n.º 3 do mesmo art.°, assegurar o pagamento dos salários através da
retribuição de garantias especiais.
Por outro lado, o art.° 120° do actual Cód. do Trabalho, a exemplo do que
sucedia no art.° 19° da. LCT, impõe, na sua alínea b ), como deveres do
empregador o de pagar pontualmente a retribuição sob pena de, não o fazendo,
cair na alçada das coimas impostas pelos art°s. 614° e ss. do mesmo Código.
14.3.3- Esta questão da prevalência do pagamento dos salários encontra a sua
afirmação mais determinada quando o legislador concede ao direito aos salários o
privilégio creditório que não reconhece - e antes se sobrepõe - ao direito da
segurança social às contribuições que lhe são devidas (cfr. art.° 377° do Cód.
do Trabalho, que corresponde, com as devidas alterações, aos art°s. 25° da LCT ,
12°, n.° 1, da LSA - Lei dos Salários em Atraso (Lei 17/86, de 14/06) - e 4°,
n.° 1, da Lei 96/01, e art.° 152° do CPEREF).
Tal prevalência representou, afinal, a consagração no plano interno do art.° 11º
da Convenção 95 da OIT.
14.3.4- O desmerecimento de tal prevalência constitui, salvo melhor opinião, o
desrespeito pelos referidos preceitos constitucionais e legais.
14.4- E, pois, natural e crível que o recorrente, ao proceder como procedeu,
estivesse - como ainda está - convencido da licitude da sua actuação ao
privilegiar o pagamento dos salários.
[...]
Conclusões [...]
J) - Não é, salvo melhor opinião, lícito o entendimento perfilhado no acórdão
recorrido no sentido de que não existe conflito de interesses no cumprimento de
deveres por parte do arguido, enquanto administrador da: sociedade arguida, nos
termos do art.º 36°, n.º 1, do C6d. Penal, por forma a que tenha sido legal a
opção de pagamento dos salários líquidos aos trabalhadores daquela sociedade em
detrimento do pagamento das contribuições devidas à segurança social.
K) - Diferentemente do que defende a decisão recorrida, ambos aqueles deveres
dimanam expressamente da: lei, sendo certo que o dever de pagar os salários
mereceu ao legislador consagração constitucional na alínea a) do n.º 1 do seu
art.º 59, reforçando-a com garantias especiais de protecção aos salários (cfr.
n.º 3 do mesmo artigo).
L) - Por outro lado, o art. 120º do actual Cód. do Trabalho impõe, tal como já
sucedia no domínio da LCT (art. 19°), na sua alínea b), o dever do empregador
pagar pontualmente a retribuição devida ao trabalhador, sob pena de cair na
alçada: das coimas impostas pelos art.º 614 ° e ss. do mesmo Cód.
M) A prevalência do pagamento dos salários em relação ao pagamento das
contribuições à segurança social encontra a sua mais significativa afirmação,
quando o legislador, na sequência do comando constitucional, concede privilégio
creditório ao direito aos créditos salariais, privilégio que não reconhece aos
créditos da segurança social (cfr. art.º 377º do Cód. do Trabalho, que
corresponde, com as devidas alterações, aos artºs 25° da LCT, 12°, n.° 1, da LSA
- Lei dos Salários em Atraso (Lei 17/86, de 14/06) - e 4°, n.° 1, da Lei 96/01,
de 20/08, e art.º 152° do CPEREF, que expressamente sobrepunha os créditos
salariais aos créditos do Estado e da segurança social; - prevalência aquela que
representou, afinal, a consagração, no plano interno, no art.º 11º da Convenção
95 da 0IT .
N) -O não acatamento de tal prevalência implica, necessariamente e sempre salvo
melhor opinião, o desrespeito pelos referidos preceitos constitucionais e
1egais.
O) - Também diferentemente do entendimento adoptado no acórdão recorrido, não há
o dever de uma empresa se apresentar à falência sempre que lhe surge a
impossibilidade de um ou de vários pagamentos, desde que tal falta de
cumprimento, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, não
revelem a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade
das suas obrigações, conforme tudo resulta das disposições combinadas dos artºs
6° e 8º, n.° 1, do CPEREF (cfr.as opiniões concordantes de Carvalho Fernandes e
João Labareda. Cód. dos Proc. Esp. de Recup. de Emp. e de Falência, 3.ª edição,
notas aos artºs 3°, 6° e 8°; António Mota Salgado, Falências e Insolvência,
Editorial Notícias, 2ª edição, pág. 12; e Maria do Rosário Epifânio, Os Efeitos
Substantivos da Falência, Publicações da Universidade Católica, Porto,
2000,págs. 32 e 33).
P) - No contexto do seu comportamento como administrador da DE MELO, o arguido
sempre esteve convencido da legalidade do seu procedimento, legalidade que se vê
alicerçada nos entendimentos atrás referidos, agindo com a convicção de que o
seu procedimento era não só o mais adequado mas também o mais conforme com os
princípios e dispositivos legais e constitucionais atinentes.
[...]
S)- Salvo também melhor opinião, sobressai do acórdão recorrido a ideia da
criminalidade confundida com obrigação civil, na medida em que perfilha o
entendimento que há crime de abuso de confiança em relação à segurança social
sempre que existe um dever de pagamento em relação à mesma, ainda que tal
pagamento não respeite a importância realmente deduzida no salário do
trabalhador, mas apenas exista o dever jurídico desse pagamento, entendimento
que ofende o princípio da legalidade na definição dos crimes (nullum crimen sine
lege) consignado no art. 29° da CRP e no art.º 1° do Cód. Penal».
Ora, como facilmente se constata, apenas no ponto 14.2.2. da alegação de recurso
e nas conclusões K) e S) da mesma peça processual o recorrente se refere a
preceitos constitucionais, sem que, contudo, alguma vez impute a eventual
violação desses preceitos a um qualquer artigo do ordenamento
infraconstitucional. Tal modo de proceder é, porém, como é sabido e resulta de
jurisprudência constante deste Tribunal, manifestamente insuficiente para que se
possa considerar suscitada, de modo processualmente adequado, uma questão de
constitucionalidade normativa, em termos de permitir o recurso de fiscalização
concreta da constitucionalidade que o recorrente pretende interpor, sendo certo
que a mera imputação da violação da Constituição a uma decisão judicial não
abre, em caso algum, essa via de recurso para este Tribunal.
Acresce que, no caso, parece resultar do requerimento de interposição do recurso
que a inconstitucionalidade vem reportada a uma determinada conjugação de
preceitos ou a uma determinada interpretação dos mesmos. Ora, como o Tribunal
Constitucional tem afirmado repetidamente, nada obsta a que seja questionada
apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito.
Porém, nesses casos, recai sobre o recorrente o ónus de suscitar perante o
Tribunal que proferiu a decisão recorrida, de forma clara e perceptível, o
exacto sentido normativo do preceito que considera inconstitucional. Como se
disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
30º vol., p.1118.) “tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de
forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, Diário da
República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona
apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse
sentido (essa interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar
desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por
forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros
destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido
da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei
Fundamental”. Ora, basta ler a alegação de recurso que o recorrente apresentou
perante o Tribunal da Relação do Porto e de que se transcreveram supra as
passagens onde entende ter suscitado a questão de constitucionalidade, para
verificar que, manifestamente, nada disto foi feito.
5. Assim sendo, como efectivamente é, e sem necessidade de mais considerações,
há que concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do recurso de
fiscalização concreta da constitucionalidade que o recorrente pretendeu interpor
ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, por manifesta falta dos seus pressupostos de admissibilidade”.
4. Inconformado com esta decisão o recorrente veio, ao abrigo do disposto no
artigo 78º-A, nº 3, da LTC, reclamar para a Conferência, nos seguintes termos:
“1.- O ora reclamante, no requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal, pretendeu ver apreciada duas questões de constitucionalidade
normativa:
1.1- A inconstitucionalidade da norma jurídica que tipifica o crime de abuso de
confiança em relação à segurança social — art° 107° do Regime Geral das
Infracções Tributárias — de per si e quando conjugada com as demais normas
jurídicas [vide alíneas a) e b) do requerimento de interposição de recurso para
o Tribunal Constitucional}; e, no caso de, assim, não se entender,
1.2- a inconstitucionalidade da aludida norma jurídica que tipifica o crime de
abuso de confiança contra a segurança social com a interpretação com que foi
aplicada na decisão recorrida, quando conjugada com o art.º 36° do Código Penal,
com os art°s 19° e 25° do Decreto-Lei n.° 49 408, de 24 de Novembro de 1969, que
estabelece o regime jurídico do Contrato de Trabalho, com o art.º 12°, n.°1 da
Lei n.° 17/86, de 14/06, que define o regime jurídico dos salários em atraso,
com o art.º 4 da Lei n.° 96/01, com os artigos 1.°, n.° 2, 6.°, 8.° e 152.° do
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e Falência, e com o
art.º 11.º da Convenção 95 da Organização Internacional do Trabalho (vide
alíneas d) e e) do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional).
2.- A presente reclamação circunscreve-se à questão da constitucionalidade da
referida norma jurídica que tipifica o crime de abuso de confiança contra a
segurança social com a interpretação com que foi aplicada pelo Tribunal a quo.
3.- Assim, quanto a esta questão da constitucionalidade suscitada, o
Excelentíssimo Conselheiro Relator decidiu não tomar conhecimento do recurso
interposto, por entender não ter sido colocado pelo ora reclamante, de forma
clara e perceptível, o exacto sentido normativo do preceito que considera
inconstitucional perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida.
4.- Sucede que, salvo melhor opinião, ao contrário do que veicula a decisão
reclamada, não obstante não ter indicado o exacto sentido da interpretação com
que foi aplicada aquela norma jurídica que tipifica o crime de abuso de
confiança perante o Tribunal a quo, tal como o fez perante este Tribunal,
transcrevendo-a, o ora reclamante suscitou a referida questão de forma clara e
perceptível, ou seja em conformidade com a ratio legis subjacente ao
entendimento jurisprudencial unânime deste Tribunal.
5.- Conforme, Guilherme da Fonseca e Inês Domingos, in Breviário de Direito
Processual Constitucional, 2ª edição, Coimbra editora, pág. 47, a ratio legis
subjacente à exigência de a questão dever ser colocada de forma clara e
perceptível perante o Tribunal a quo é a “...de evitar que o Tribunal
Constitucional, ao conhecer da questão sem a certeza de a mesma ter sido pelo
menos implicitamente ponderada por aquele, se substitua à instância recorrida,
desta forma ultrapassando os seus poderes.”
6.- Pelo que o ónus de indicar o exacto sentido da interpretação impõe-se,
quando muito, apenas perante este Tribunal.
[...]
8. Assim é que a aludida questão foi clara e perceptivelmente suscitada perante
o Tribunal a quo, como o foi perante este Tribunal.
8.1 – Veja-se com efeito as alíneas J) e Q) das conclusões da motivação de
recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto e que ora se transcreve:
[...]
8.2- E, bem assim, a alínea d) do requerimento de interposição de recurso para
este Tribunal:
[...]
9.- Se o não tivesse sido o Tribunal a quo jamais teria decidido no sentido que
decidiu e teria invocado a jurisprudência que invocou destinada a fixar o
sentido e alcance da interpretação que perfilhou, cujas passagens, ora se
transcrevem: «Inexiste conflito de deveres, logo causa de exclusão da culpa, se
o arguido descaminhou quantias relativas a IVA, liquidadas por terceiros,
pertencentes ao Estado, a quem as deveria ter entregue oportunamente, afirmando
que tais importâncias foram empregues no pagamento de salários devidos a
trabalhadores, à luz do direito à retribuição, do trabalho constitucionalmente
consagrado.” (Ac. do STJ de 19-11-2003, Proc.° n.° 3285/03 - 3. secção -
relator: Cons. Pires Salpico).»
«“Tendo ficado apenas provado que a sociedade arguida atravessava dificuldades
financeiras e que o arguido, gerente daquela, não entregou ao Estado os valores
referentes ao IVA, despendendo-as para manter a sociedade em funcionamento,
designadamente em salários dos trabalhadores, pagamento de água e electricidade,
não permite tal acervo factológico sustentar a existência de uma situação de
perigo, traduzida na própria subsistência dos trabalhadores da arguida e das
respectivas famílias. Ao dar-se este destino àqueles valores, não pode
considerar-se que se salvaguardou um interesse superior, relativamente ao
interesse do Estado.
Estando em confronto interesses de natureza patrimonial, o mais que se pode
conceder é que um e outro são igualmente relevantes, admitindo-se até num plano
interpretativo mais rigoroso, que o interesse protegido do Estado, de natureza
pública, supera o interesse particular da sociedade, tendo em conta a força com
que a lei protege os bens jurídicos, critério este relacionado com o princípio
ético-social vigente na sociedade, a conferir prevalência aos interesses de
carácter público.
(...) (Ac. do STJ de 28-02-2002, Proc.° n.° 4234/01 - 5•a secção — relator:
Cons. Dinis Alves).»
9.1- Termos em que se conclui que a questão da constitucionalidade sobre que se
debruça a presente reclamação, não só foi implicitamente ponderada pelo Tribunal
a quo como o foi expressamente.
10.- Acresce que não só aquele pressuposto foi escrupulosamente observado, como
todos os restantes inerentes à clareza e perceptibilidade com que a questão da
constitucionalidade, seja ele qual for, deve ser colocada perante o tribunal a
quo.
11.- Com efeito, não só o ora reclamante indicou as normas jurídicas
constitucionais que foram infringidas, como indicou as normas jurídicas do
direito ordinário de cuja conjugação resulta que a norma jurídica que tipifica o
crime de abuso de confiança em relação à segurança social, com a interpretação
com que foi aplicada, infringe aquelas normas jurídico-constitucionais, bem como
indicou também as razões dessa incompatibilidade com a Lei fundamental — vide
alíneas L), M), O) e P) das conclusões que ora se transcrevem:
[...]
12.- Sendo certo que as conclusões não mais veiculam que uma expressão sintética
de tudo aquilo que consubstanciou o real motivo do recurso interposto para o
Tribunal a quo.
13.- O mesmo se diga quanto ao requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal, designadamente quanto a interpretação perfilhada pelo Tribunal a quo,
cujo sentido e alcance só se depreende no seio dos vários acórdãos que chamou à
colação.
[...]
14.- Não desconhecendo o reclamante quão inúmeras têm sido as decisões do
Tribunal Constitucional sobre a questão da constitucionalidade das normas
tipificadoras do crime de abuso de confiança contra segurança social. Daí
compreender-se a tendência para o uso da faculdade concedida no n.º 1 do art.°
78°-A da LTC, ou seja a tendência da rejeição do conhecimento do recurso sobre
questão que alegadamente já foi objecto de decisões anteriores do Tribunal.
15.- Todavia - perdoe-se a imodéstia - afigura-se que a jurisprudência
constitucional anterior não atentou suficientemente nas incoerências
intrasistemáticas que contextualizam a incriminação do chamado crime de abuso de
confiança contra a segurança social.
16.- O recurso interposto pelo ora reclamante visa que o Tribunal Constitucional
não deixe de pronunciar-se sobre tal matéria e defina — também nesta vertente -
a sua posição legitimadora do respeito pela legalidade constitucional. [...]”.
5. Notificado para se pronunciar, querendo, sobre reclamação do recorrente, o
Ministério Público veio responder-lhe nos seguintes termos:
“1º A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º Na verdade, o reclamante não cumpriu o ónus de suscitar, durante o processo e
em termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, susceptível de servir de base ao recurso interposto para este
Tribunal Constitucional.
3º E sendo incontroverso que tal ónus – de delinear, em termos claros e
plenamente perceptíveis, numa questão de inconstitucionalidade de “normas”,
especificando o preciso sentido ou interpelação que se tem por inconstitucional
– se coloca à parte “durante o processo”, e não apenas no momento da
interposição do recurso de constitucionalidade”.
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
III – Fundamentação
6. Na decisão sumária reclamada concluiu-se no sentido da impossibilidade de
conhecer do objecto do recurso que o recorrente, ao abrigo do disposto na alínea
b) do nº 1, do art. 70º da LTC, interpôs para este Tribunal. Para assim
concluir, considerou-se que o mesmo nunca teria suscitado, de modo
processualmente adequado e perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
como exige o n.º 2 do art. 72º da Lei do Tribunal Constitucional, qualquer
questão de constitucionalidade susceptível de integrar o aludido recurso. Com a
presente reclamação o reclamante pretende contestar que assim seja. Alega, no
essencial, que “não obstante não ter indicado o exacto sentido da interpretação
com que foi aplicada aquela norma jurídica que tipifica o crime de abuso de
confiança perante o Tribunal a quo, tal como o fez perante este Tribunal,
transcrevendo-a, o ora reclamante suscitou a referida questão de forma clara e
perceptível, ou seja em conformidade com a ratio legis subjacente ao
entendimento jurisprudencial unânime deste Tribunal”. E, para o demonstrar,
transcreve algumas das passagens da alegação e conclusões do recurso que
apresentou perante o Tribunal da Relação do Porto de onde entende que se retira
a suscitação, em termos claros e perceptíveis, das questões de
constitucionalidade normativa que agora pretendia ver apreciadas por este
Tribunal, bem como alguma da jurisprudência do Tribunal Constitucional em que se
concretizou o conteúdo daquela exigência. Acrescenta, além disso, que “o ónus de
indicar o exacto sentido da interpretação [se impõe], quando muito, apenas
perante este Tribunal.”
Não tem, porém, razão.
Por um lado, como se demonstrou suficientemente na decisão sumária reclamada,
basta ler as passagens daquela peça processual que cita e que já tinham sido
consideradas naquela decisão, para concluir ser evidente que não está aí
adequadamente colocada qualquer questão de constitucionalidade normativa em
termos de permitir o recurso para este Tribunal. Por outro, é indiscutível que o
ónus de indicar, de forma clara e plenamente perceptível, o exacto sentido da
norma que se tem por inconstitucional, tem de ser cumprido pela parte “perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida”, e não apenas no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade”
Agora apenas se acrescentam, porque o reclamante expressamente refere tais
pontos, duas notas. A primeira é a de que “não desconhecendo o reclamante quão
inúmeras têm sido as decisões do Tribunal Constitucional sobre a questão da
constitucionalidade das normas tipificadoras do crime de abuso de confiança
contra segurança social”, dificilmente se poderá compreender que, como afirma,
haja uma “tendência da rejeição do conhecimento do recurso sobre questão que
alegadamente já foi objecto de decisões anteriores do Tribunal” Na verdade,
muito mais simples seria, não fosse a ostensiva falta de pressupostos
processuais, a decisão da questão de constitucionalidade por remissão pura e
simples para a jurisprudência anterior, onde, como é sabido do reclamante,
sistematicamente se tem concluído pela não desconformidade constitucional da
norma em causa. A segunda é a de que a impossibilidade de conhecer do objecto do
recurso, por manifesta falta de um dos seus pressupostos legais de
admissibilidade, inviabiliza, precisamente, a discussão da questão de saber se,
no caso de dele se conhecer, seria de remeter para a anterior jurisprudência do
Tribunal Constitucional sobre a questão ou, se como alega o reclamante,
“perdoe-se a imodéstia - a jurisprudência constitucional anterior não atentou
suficientemente nas incoerências intrasistemáticas que contextualizam a
incriminação do chamado crime de abuso de confiança contra a segurança social”.
7. Em face do exposto, apenas resta, reiterando igualmente as razões constantes
da decisão reclamada, que em nada são abaladas pela reclamação apresentada,
confirmar o julgamento que ali se formulou no sentido da impossibilidade de
conhecer do objecto do recurso.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 22 de Junho de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Rui Manuel Moura Ramos