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Processo nº 319/06
1ª Secção
Relatora: Conselheiro Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que
é recorrente A. e recorrida B., foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele Supremo Tribunal, de 14 de Março de 2006.
Proferida decisão sumária (artigo 78º-A, nº 1, da LTC), vem agora o recorrente
reclamar para a conferência (artigo 78º-A, nº 3, da LTC).
2. Em 23 de Maio de 2006, foi proferida a decisão agora reclamada, com os
seguintes fundamentos:
«1. Segundo o consagrado no artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição da
República Portuguesa e no artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, cabe recurso para
o Tribunal Constitucional de decisões dos tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Conforme
jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional, a este cabe,
então, conhecer o objecto de “recursos de decisões dos outros tribunais que
apliquem normas cuja constitucionalidade foi suscitada durante o processo (...),
identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do
objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as
decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso” (cf. Acórdão nº
361/98, não publicado e, entre outros, os Acórdãos nºs 286/93, não publicado,
178/95, 20/96, Diário da República, II Série de 21 de Junho de 1995 e de 16 de
Maio de 1996, 702/96, 27/98 e 223/03, não publicados).
Ora, das passagens que agora se transcrevem resulta que o recorrente,
verdadeiramente, não suscitou a inconstitucionalidade de norma constante do
artigo 712º do Código de Processo Civil, mas sim da decisão que,
recorrentemente, acusa de não ter aplicado tal artigo:
«(…) o Tribunal da Relação no seu acórdão em análise contrariou manifestamente a
lei ao balizar ao recurso da matéria de facto um campo de incidência tão
estreito e exíguo que corresponde, no fundo, a recusar a aplicação da lei»;
«Aceitar-se que esse critério - mesmo que, como no caso, nem sequer se saiba se
a mímica ocorreu ou funcionou pois o tribunal da primeira instância não
fundamentou nenhuma resposta na “mímica” - seria o mesmo que permitir questionar
o acerto da lei, em vez de a aplicar.
Ora, tal discussão é vedada ao juíz.
A lei é para aplicar, e quando se não aplica, como no caso sub judice viola-se o
princípio constitucional do acesso ao direito (artº. 20° da CRP), da legalidade
e da sujeição à lei (artº. 203° e 204° da CRP)»;
«(…) A interpretação assim dada ao artº. 712° do Código de Processo Civil
implica na prática a recusa de aplicação desse normativo, violando esse
normativo e os artºs. 20°, 203° e 205° da Constituição».
Aponta também no sentido de o recorrente questionar a decisão e não a norma a
seguinte passagem do requerimento de interposição de recurso:
«(…) A apontada interpretação do artº. 712° do Código de Processo Civil implica
– como sem sucesso se procurou demonstrar ante o STJ – a recusa de aplicação
desse normativo quanto à reanálise da matéria de facto, em violação do princípio
de um efectivo segundo grau de plena jurisdição em matéria de facto consagrado
no artigo 690-A do Código de Processo Civil».
Na verdade, o que resulta dos autos é que, na perspectiva do recorrente, há
hoje, nomeadamente depois da introdução do artigo 690º-A daquele Código, uma
“verdadeira segunda instância de reapreciação da matéria de facto decidida na 1ª
instância”, não tendo sido aplicadas as disposições que a consagram, em violação
da Constituição da República Portuguesa.
Na medida em que o “Tribunal Constitucional português é concebido essencialmente
como um órgão jurisdicional de controlo normativo” e não de controlo das
decisões judiciais (Cardoso da Costa, “A jurisdição constitucional em Portugal”,
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 223), não pode conhecer-se
do objecto do presente recurso, justificando-se a prolação da presente decisão
sumária (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).
2. Note-se, por último, que se o recorrente tivesse suscitado a
inconstitucionalidade do artigo 712º do Código de Processo Civil, na
interpretação que lhe foi dada pelo acórdão recorrido, sempre seria de concluir
que tal questão é manifestamente infundada, face à jurisprudência do Tribunal
Constitucional (artigo 78º-A, nº 1, da LTC), considerando, designadamente, o
Acórdão nº 15/2001 [415] (Diário da República, II Série, de 30 de Novembro de
2001) e a jurisprudência aí citada».
3. O recorrente vem agora reclamar desta decisão, pela seguinte forma:
«(…) o recorrente (…) vem, nos termos do art° 78-A n° 3 da mesma LTC, reclamar
para a conferência, para o que:
1°- Reitera todos os argumento já apresentados no sentido da sustentabilidade do
recurso;
2°- Rejeita totalmente qualquer ideia de poder ser interpretado o seu
requerimento como recurso da decisão e não da interpretação dada ao art° 712° do
Código de Processo Civil;
3º- Constata, para já, apenas com surpresa, que num caso claro em que um
Tribunal recusa a aplicação de Lei expressa, que prevê a possibilidade de
recurso da matéria de facto, com o argumento implícito de que o legislador devia
ter legislado de outro modo, e de que tal recurso é impossível por, entre o
mais, os Senhores Desembargadores não conhecerem as reacções da assistência na
1ª Instância (!), tudo leva a supôr que o Tribunal Constitucional se prepara
para cobrir com o manto da indiferença uma situação de tamanha gravidade: “Sic
transit institia mundi”.
Pede, pois, que, em conferência, seja admitido o recurso, ou seja, que seja
feita justiça».
4. Notificada a recorrida, não apresentou qualquer resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Ainda que o ora reclamante tenha suscitado, durante o processo, uma questão de
inconstitucionalidade normativa relativamente ao artigo 712º do Código de
Processo Civil, justifica-se negar provimento ao recurso interposto por se
tratar de questão manifestamente infundada, atenta a jurisprudência do Tribunal
Constitucional.
Escreveu-se no Acórdão nº 415/2001 (Diário da República, II Série, de 30 de
Novembro de 2001), com remissão para jurisprudência anterior, o seguinte:
«Não se tratando de um recurso interposto num processo de natureza penal, caso
em que haveria que tomar em conta o disposto no nº 1 do seu artigo 32º, cabe
começar por determinar se a Constituição garante o direito ao recurso no âmbito
do processo civil em geral ou, em particular, no domínio das providências
cautelares, como é o caso.
Ora a verdade é que, como o Tribunal Constitucional tem afirmado uniforme e
repetidamente, não resulta da Constituição, em geral, nenhuma garantia do duplo
grau de jurisdição, ou seja, nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de
decisões judiciais; nem tal direito faz parte integrante e necessária do
princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente
consagrado no citado artigo 20º da Constituição.
Como, por exemplo, se entendeu expressamente no acórdão nº 638/98 (Diário da
República, II Série, de 15 de Maio de 1999), e ainda recentemente se reafirmou
no acórdão nº 202/99 (Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 2001),
aprovado em plenário, “7. O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos
‘o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de
meios económicos’.
Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei
aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência,
e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz
respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a
insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e
ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes
direitos e interesses legalmente protegidos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele
também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso
para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil;
e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei
Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a
menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando,
aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual
a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida
(mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das
garantias de defesa previstas naquele artigo 32º.
Para além disso, algumas vozes têm considerado como
constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o
direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este
respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António
Vitorino, respectivamente no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol. 16, pág.
505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir
ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro
Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126),
que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o
Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do
Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que ‘o legislador
ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios
recursos’ (cfr., a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol. 17, pág. 349)
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode
concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática.
Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a
existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados
Acórdãos nº 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos nº
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), nº 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e nº 450/89, (Acórdãos
do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307).
(...)
9. Não existe, desta forma, um ilimitado direito de recorrer de todas as
decisões jurisdicionais, nem se pode, consequentemente, afirmar que a garantia
da via judiciária, ou seja, o direito de acesso aos tribunais, envolva sempre,
necessariamente, o direito a um duplo grau de jurisdição (com excepção do
processo penal).”».
É esta jurisprudência que agora se reitera, a qual não foi contrariada pelo ora
reclamante.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso interposto.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ( vinte ) unidades de
conta, Lisboa, 11 de Julho de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício