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Processo n.º 340/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A., melhor identificado nos autos, reclama, ao abrigo do
disposto no artigo 78.º-A, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da
decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso proferida pelo
relator.
2 – A decisão reclamada tem o seguinte teor:
«1 – A., melhor identificado nos autos, recorre para o Tribunal
Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), tendo o recurso por “fundamento a aplicação
de normas jurídicas pelo tribunal a quo em violação do princípio constitucional
ne bis in idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da C.R.P., bem como no artigo
54.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14.07.1985, no artigo
14.º da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de New York e
na Convenção entre os Estados Membros das Comunidades Europeias relativa à
aplicação do Princípio Ne bis in idem, todas parte integrante do direito
português, nos termos do artigo 8.º da C.R.P. e do (ii) princípio da legalidade
das normas penais consagrado, em termos gerais, no artigo 29.º da C.R.P.
2 – Compulsados os autos, cumpre relatar, com interesse para a decisão
do presente recurso, o seguinte:
2.1 – O recorrente, inconformado com a decisão condenatória proferida no
Processo Comum n.º 18851/97.0TDLSB da 2.ª Secção das Varas de Competência Mista
Cível e Criminal do Funchal, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de
Lisboa, onde, em síntese, argumentou que:
“(…)
A) Os presentes autos tiveram origem em diligências de investigação levadas a
cabo pelo UCLAF em vários países, as quais conduziram às conclusões do relatório
de que se juntou cópia como doc. nº 1 ao requerimento do arguido de 4/6/2003,
que refere factos criminosos praticados em vários países da União Europeia,
relativos sempre a crimes de fraude na obtenção de subsídios.
B) O mencionado relatório contém, entre outros, os factos pelos quais o arguido
vem acusado nos presentes autos, tanto mais que esse relatório, ou excertos
desse relatório, se encontram juntos aos presentes autos em diversas línguas
desde há muito tempo.
C) Tal relatório e os factos dele extraídos para os presentes autos, foram já
objecto de procedimento criminal contra o arguido no seu país de origem, i. e,
em Itália.
D) De acordo com o art. 50º do cód. proc. pen. italiano, que é uma norma
imperativa enquanto derivada do art. 112º da constituição italiana, o Ministério
Público (fora daqueles casos em que é necessária queixa particular) está
obrigado a proceder criminalmente sempre que conhecer de factos que possam
importar a responsabilidade criminal de um agente.
E) Conforme resulta do art. 9º do cód. pen. italiano, o dever de acção penal da
Justiça italiana impõe-se mesmo quanto a factos praticados fora do território
italiano desde que o autor dos factos seja cidadão italiano, encontrando-se em
território italiano à data da notícia do crime e que a lei italiana preveja para
os mesmos pena de prisão perpétua ou pena não inferior a três anos, como é o
caso, não tendo podido, pois, o Tribunal italiano sequer ignorar a notícia do
crime praticado em Portugal.
F) Ora, tendo o Tribunal italiano recebido a notícia do crime praticado em
Portugal, bem como muitos outros elementos objecto destes autos, conclui-se que
a sentença proferida no processo que correu termos no Tribunal de Fermo incidiu
sobre os factos que estão agora a ser julgados novamente em Portugal, na medida
em que os Tribunais Italianos conheceram e processaram os factos que originaram
os presentes autos.
G) Apesar de os factos comuns ao presente processo criminal não virem
especificados na sentença, o que é certo é que foram conhecidos e processados em
Itália. Sucedeu, porém, que de acordo com um juízo de mérito feito pela justiça
Italiana, tais factos nem à sentença chegaram. Concluir o contrário seria
admitir que o art. 50º do cód. proc. pen. italiano derivado do preceito
constitucional do art. 112º da constituição italiana, não é uma norma
imperativa, o que não se concebe, nem se concede.
H) De acordo com o artigo 54º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de
14 de Julho de 1985, publicado no D.R. I SÉRIE – A de 25/11/1993, “aquele que
tenha sido definitivamente julgado por um tribunal de uma Parte Contratante não
pode, pelos mesmos factos, ser submetido a uma acção judicial intentada por uma
outra Parte Contratante, desde que, em caso de condenação, a sanção tenha sido
cumprida ou esteja actualmente em curso de execução ou não possa já ser
executada, segundo a legislação da Parte Contratante em que a decisão de
condenação foi proferida”.
I) Igual entendimento resulta do nº 7 do art. 14º da Convenção Internacional
sobre direitos civis e políticos de New York, de que Portugal é signatário,
segundo o qual “no one shall be liable to de tried or punished again for an
offence for which he has already been finally convicted or acquitted in
accordance with the law and penal procedure of each country”.
J) Também na nossa lei ordinária e constitucional encontramos consagração do
princípio ne bis in idem.
L) Assim, tendo já o arguido sido julgado pelos factos dos autos, não o podia
ter sido novamente pelos Tribunais Portugueses.
M) Do facto de o processo italiano ter tido por base o relatório do UCLAF e as
confissões do arguido, que se referem a factos passados em Portugal, resulta
provado que o Tribunal Italiano teve a notícia dos crimes cometidos em Portugal,
conhecendo-os desde o início do processo.
N) Semelhante conclusão resulta ainda de inúmeros documentos produzidos em
língua portuguesa que se encontram também no processo italiano e cujas cópias
foram enviadas para o Tribunal “a quo”.
O) Alguns desses documentos produzidos em língua portuguesa, são referentes a
factos criminosos que estão a ser julgados em Portugal, nestes autos,
demonstrando-se, pela sua inclusão no processo italiano, que, relativamente aos
factos criminosos passados em Portugal, o Tribunal de Fermo não se bastou com o
relatório do UCLAF, tendo obtido mais elementos.
P) O Tribunal “a quo” preferiu concentrar-se nos factos constantes da sentença
do Tribunal de Fermo, onde não chegaram a ser referidos os factos passados em
Portugal, pelos quais o arguido foi julgado em Portugal.
Q) O facto de a sentença do Tribunal italiano não mencionar expressamente os
factos passados em Portugal, não significa que estes factos não tenham sido
objecto do processo.
R) Ora, o Tribunal “a quo” nem se pronunciou acerca do facto de o relatório do
UCLAF constar do processo italiano.
S) Não podia o Tribunal “a quo” não perceber que muitos outros elementos
relativos aos factos passados agora julgados em Portugal constavam do processo
italiano.
T) Não deveria o Tribunal “a quo” ter entendido o sentido das disposições acerca
do princípio ne bis in idem – das quais se referiu apenas à que consta da
Constituição da República Portuguesa, ignorando as fontes convencionais
internacionais alegadas pelo arguido – no sentido restritivo de este princípio
operar apenas em casos em que tenha havido uma absolvição expressa por uma
sentença. Qualquer juízo de absolvição, ainda que consista numa omissão de
condenação, como é o caso, deve ser entendido como suficiente para efeitos de
fazer operar aquele princípio geral de direito.
U) A interpretação extensiva de normas desincriminadoras é obrigatória em
direito penal por força do princípio da legalidade. Com efeito, o que se proíbe
para as normas penais de sentido positivas, torna-se obrigatório para as normas
penais de sentido negativo.
V) Ao condenar o arguido por factos pelos quais este tinha já sido processado
criminalmente num processo findo, o Tribunal “a quo” violou, assim, as referidas
normas constitucionais e convencionais que consagram o princípio fundamental do
ne bis in idem. Violação esta que incidiu directamente sobre as normas e também
sobre a interpretação extensiva que destas deveria ter feito, pelo que o
Tribunal “a quo” violou também o princípio da legalidade.
X) Ao não considerar que os factos criminosos julgados em Portugal tinham sido
objecto do processo que correu termos no Tribunal italiano, o Tribunal “a quo”
errou, também na apreciação da prova.
Z) Tendo em conta tudo quanto exposto, deve o acórdão recorrido ser revogado,
absolvendo-se o arguido da prática dos crimes pelos quais foi condenado.
AA) O arguido agiu sempre instrumentalizado por B., como resulta com clareza dos
elementos constantes dos autos, tais como o próprio relatório do UCLAF, pelo que
o julgamento de onde resultou a decisão recorrida só seria um julgamento justo
se B. tivesse sido julgado ao lado do arguido.
AB) Durante o julgamento muitos foram os elementos que ligavam factos criminosos
sob apreciação a B., conforme resulta da decisão recorrida na enumeração das
provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal e dos nºs. 141 e
142, 173 a 178 e 257 a 260 dos factos considerados provados.
AC) Haver apenas um arguido no presente processo foi uma opção de quem deu
origem a este processo – a Comissão Europeia – pela qual o arguido pagou o preço
da injustiça. Sozinho, não só pareceu o único culpado de tudo quanto sucedido,
como também se viu impedido de procurar reparar a União Europeia dos danos
provocados, o que seria outra atenuante forte a seu favor.
AD) O arguido não tem antecedentes criminais, o que não pode deixar de ser
atendido para efeitos de determinação da medida da pena, como circunstância
atenuante geral.
AE) Outra forte atenuante é o facto de o arguido sempre ter colaborado com a
Justiça, como resulta de ter confessado os factos que lhe eram imputados perante
o UCLAF. O arguido só não fez o mesmo no julgamento de onde resultou a decisão
recorrida por estar impedido de se deslocar a Portugal para esse efeito, por
motivos de saúde, conforme resulta dos vários atestados médicos juntos ao
processo.
AF) O debilitado estado de saúde do arguido aconselha uma ponderação acerca dos
efeitos de uma pena de prisão na sua saúde, uma vez que sofre de um quadro
clínico caracterizado pelo aparecimento de uma sintomatologia isquémica das
coronárias, causada pelo esforço e pela emoção, pela doença de Angor, verificada
por esforços de pequena entidade e pela hipertensão sistémica e com
deslipidemia, tornando necessário que o arguido evite o stress psico-fisíco que
possa agravar a situação clínica particularmente sensível a situações emotivas e
impondo a abstenção de modificações ambientais que possam ter influência sobre a
instabilidade das coronárias.
AG) Também esta circunstância atinente ao arguido foi ignorada pelo Tribunal “a
quo” na determinação da medida da pena, sendo que uma pena da extensão da que
foi aplicada ao arguido pode bem vir a revelar-se uma pena perpétua.
AH) Perante tudo quanto exposto, caso não se decida pela absolvição do arguido,
o que por mera hipótese se admite, sem conceder, deve a pena do arguido ser
reduzida em conformidade com as circunstâncias atenuantes gerais agora referidas
e que foram ignoradas pelo Tribunal “a quo”, revogando-se a decisão recorrida.
(…)”.
2.2 – Por Acórdão de 21 de Fevereiro de 2006, o Tribunal da Relação de
Lisboa decidiu julgar o recurso improcedente, deixando consignado, na parte
relativa à alegada violação do Princípio ne bis in idem, que:
“(…)
«9.2. Do caso julgado:
Quanto a esta questão importa referir que a mesma já havia sido suscitada e
apreciada pelo tribunal recorrido, podendo observar-se a seguinte apreciação
prévia constante da decisão em recurso:
'A fls. 1229 a 1288 o arguido A. veio invocar a questão do ne bis in idem, por
já Terem, o relatório da Comissão e os factos dele extraídos, sido objecto de
procedimento criminal contra o arguido, em Itália, no Tribunal de Fermo,
conforme decisão que juntou aos autos e se encontra traduzida a fls. 1495 a
1499, do 6º volume.
O assistente e o Ministério Público opuseram-se à procedência da questão.
O arguido requereu a junção de documentos para prova da matéria alegada, cuja
admissibilidade foi objecto dos despachos de fls. 1406, 1489 e 1490.
Este último relegou para decisão final o conhecimento da questão do ne bis in
idem.
Cumpre agora decidir.
Do confronto dos documentos de fls. 9 a 15 (que mencionam o projecto X levado a
cabo pela empresa C.), com o depoimento da testemunha D., que participou na
auditoria levada a cabo pela Comissão em vários países além de Portugal e
noutras empresas, além das ora arguidas, e com o teor da decisão de fls. 1495 a
1499, não impugnado resulta que:
O arguido A. é também arguido no processo italiano;
Objecto do processo italiano e da decisão do Tribunal de Fermo são factos que
praticou como gerente de facto e efectivo gestor da empresa C., relativos ao
projecto 92.IT.06.069 C. s.a.s. XX (aprovado pela Comissão n. C (92) 3124 do
3/12/92) denominado XY, apresentando o referido projecto com dados falsos e
previsões exageradas e superiores às necessárias para a realização do projecto,
comunicando a execução dos trabalhos relativos ao projecto e omitindo o facto de
não Ter alcançado os objectivos;
Objecto desse processo foi ainda a emissão de facturas relativas a operações em
tudo ou em parte inexistentes (factura n. 1 de 12/1/93, no total de 600.000.000
liras italianas emitida pela E. e a cargo da sociedade C.; factura n. 22 de
12/12/92, no montante de 66.801.650 liras italianas, emitida pela F. para a C.;
factura n. 12 de 7/9/93, no montante de 53.939.2151iras italianas, emitida pela
F. para a C.).
Ora, de fls. 115 do apenso F2 resulta que a factura da C. objecto dos presentes
autos e mencionada nos arts. 179º e 180º da acusação tem o nº 262, data de
9/5/94, tem o valor de 6.056.000 escudos portugueses e está descrita na
contabilidade da G., sendo diversa das que se mencionam no processo Italiano.
Os projectos comunitários objecto da acusação nos nossos autos têm o nº
93PT06023, o denominado projecto Y, apresentado pela H. e o nº 93PT06002, o
denominado projecto Algarve, apresentado pela G., sendo diversos do projecto e
da empresa referidos na decisão do Tribunal de Fermo (cfr. arts. 188º e 61º da
acusação).
A empresa C. aparece no projecto Algarve como empresa subcontratada, por
referência a uma factura que nada tem a ver com as mencionadas na decisão do
Tribunal de Fermo.
As facturas da F. emitidas à C. e objecto do processo Italiano também não
constituem objecto dos presentes autos.
Pelos fundamentos acabados de expor afigura-se que os factos objecto do processo
Italiano e da decisão do Tribunal de Fermo, supra mencionada, são diferentes dos
factos objecto deste processo e por isso não há lugar à violação do princípio do
ne bis in idem consagrado no art. 29º nº 5 da C.R.P.
Não há outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do
mérito da causa.'
Tudo visto, resulta evidente que o recorrente foi acusado e julgado pelos
tribunais italianos (Tribunal de Fermo) por factos típicos e ilícitos por si
praticados na qualidade de administrador de facto e efectivo gestor de uma
sociedade de direito italiano, com sede nesse mesmo País, denominada C. s.a.s.
(s.r.l.) e relativos ao projecto 92.IT.06.069, denominado XY, aprovado pela
Decisão da Comissão nº C (92) 3124. E somente quanto a tais factos.
Nos presentes autos, o arguido A. veio acusado e condenado pela prática de dois
crimes de fraude na obtenção de subsídio praticados em seu nome e seu interesse
e nos das sociedades de direito português, e com sede no nosso País, denominadas
G., LDA. e H., LDA. Estão em causa o projecto nº 93PT06002 (denominado projecto
ALGARVE), aprovado pela Decisão da Comissão nº C (93) 1606, e o projecto nº
93PT06023 (denominado projecto Y), aprovado pela Decisão da Comissão nº C (93)
3403.
É, pois, evidente a não violação do princípio ne bis in idem por o arguido e
recorrente não ter sido julgado ' [...] mais do que uma vez pela prática do
mesmo crime.' - artigo 29º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa
Tal como o próprio recorrente reconhece:
'O Tribunal 'a quo' preferiu concentrar-se nos factos constantes da sentença do
Tribunal de Fermo, onde não chegaram a ser referidos os factos passados em
Portugal, pelos quais o arguido foi julgado em Portugal.'
O objecto de cada um dos processos é totalmente diverso, pelo que não se pode
questionar sequer a existência de qualquer caso julgado, pelo que o recurso é
nesta parte manifestamente improcedente nos próprios termos alegados».
“
2.3 – Discordando desse entendimento, o arguido interpôs, nos termos
supra descritos, recurso para o Tribunal Constitucional, passando o mesmo a ser
decidido, atento o disposto no artigo 76.º, n.º 3 da LTC, nos termos referidos
no artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma legislativo.
3 – Constitui pressuposto do recurso ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da LTC, que o tribunal a quo haja aplicado, como ratio decidendi, uma
norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo.
Como é consabido, o objecto da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade
são apenas normas jurídicas, não podendo o Tribunal Constitucional pronunciar-se
sobre uma (eventual) “inconstitucionalidade da decisão judicial”, como, de
resto, tem sido unanimemente acentuado pela jurisprudência deste Tribunal – cf.
nesse sentido o Acórdão n.º 199/88 (publicado no Diário da República II Série,
de 28 de Março de 1989), onde se afirmou que “este Tribunal tem decidido de
forma reiterada e uniforme que só lhe cumpre proceder ao controle da
constitucionalidade de ‘normas’ e não de ‘decisões’ –, o que exige que, ao
suscitar-se uma questão de inconstitucionalidade, se deixe claro qual o preceito
legal cuja legitimidade se questiona, ou no caso de se questionar certa
interpretação de uma determinada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa
do preceito que se tem por violador da lei fundamental”.
Nestes termos, em face da delimitação dos poderes assinalados a este Tribunal,
urge reconhecer, semel pro semper, que os recursos de constitucionalidade,
embora interpostos de decisões de outros tribunais, visam controlar o juízo que
nelas se contém sobre a violação ou não violação da Constituição por normas
mobilizadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi, não podendo visar as
próprias decisões jurisdicionais qua tale, identificando-se, nessa medida, o
conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de
constitucionalidade, daí resultando, pois, que apenas as normas e não já as
decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso – cf., nestes exactos
termos, o Acórdão n.º 361/98 e, entre muitos outros, os Acórdãos nºs 286/93,
336/97, 702/96, 336/97, 27/98 e 223/03, todos disponíveis para consulta em
www.tribunalconstitucional.pt/.
E isto porque a Constituição não configurou o recurso de constitucionalidade
como um recurso de amparo no âmbito do qual fosse possível sindicar qualquer
lesão dos direitos fundamentais, aí se incluindo a possibilidade de conhecer,
nesse âmbito, do mérito da própria decisão judicial sindicanda, antes tendo
recortado a competência do Tribunal Constitucional em torno do conhecimento de
questões de constitucionalidade de normas, sendo perante tal conformação do
sistema jurídico-constitucional de recursos que o Tribunal pode actuar em termos
de avaliar da bondade constitucional de critérios normativos aplicados pelos
demais tribunais.
Note-se, porém, que o facto de “não exist[ir], no sistema
jurídico-constitucional português, um processo de «queixa constitucional»
(Verfassungsbeschwerde, staatsrechtliche Beschwerde, recurso de amparo) que
permita aos cidadãos lesados nos seus direitos fundamentais apelarem
directamente para um tribunal constitucional (...)”, não significa uma
“protecção enfraquecida dos direitos fundamentais uma vez que “os particulares
podem, nos feitos submetidos à apreciação de qualquer tribunal e em que sejam
parte, invocar a inconstitucionalidade de qualquer norma (...) fazendo assim
funcionar o sistema de controlo da constitucionalidade (...) numa perspectiva de
controlo subjectivo” – cf. Gomes Canotilho (in “Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, 4.ª edição, Coimbra, 2000, p. 493).
Perscrutando os autos à luz deste entendimento, torna-se bem patente que o
recorrente não suscitou, durante o processo, qualquer questão de
constitucionalidade – normativa, por antonomásia.
De facto, em passo algum do processo – principaliter, nas alegações de recurso
para o Tribunal da Relação de Lisboa, onde se retoma, de forma mais apurada, o
teor do requerimento de fls. 1229, apresentado em 4 de Junho de 2003 – o
recorrente controverte sub species constitutionis a bondade jusfundamental dos
critérios normativos que determinaram a prolação da decisão recorrida,
limitando-se, em vez disso, a sustentar que «o Tribunal “a quo” violou, assim,
as referidas normas constitucionais e convencionais que consagram o princípio
fundamental do ne bis in idem».
Ora, essa “violação”, imputada directamente ao acto de concreta aplicação do
direito, e não aos preceitos legais aplicados pelas instâncias, não densifica
nem traduz um problema de constitucionalidade normativa susceptível de ser
apreciado por este Tribunal.
Na verdade, como se constata pelo teor das alegações transcritas, é manifesto
não ser possível inferir a partir do exposto a suscitação de qualquer questão de
(in)constitucionalidade normativa, sendo certo que, como vem sendo assumido, de
forma reiterada, por este Tribunal, «“Suscitar a inconstitucionalidade de uma
norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é
colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para
decidir. Isto reclama, obviamente, que (...) tal se faça de modo claro e
perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada
interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a
Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa
incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou
princípio constitucional infringido.” Impugnar a constitucionalidade de uma
norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de
aplicação do Direito – concretizado num acto de administração ou numa decisão
dos tribunais – mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada
interpretação que enformou tal acto ou decisão (cfr. Acórdãos nºs 37/97, 680/96,
663/96 e 18/96, este publicado no Diário da República, II Série, de 15-05-1996).
[§] É certo que não existem fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos,
nem sequer para suscitação da questão de constitucionalidade. [§] Esta tem,
porém, de ocorrer de forma que deixe claro que se põe em causa a conformidade à
Constituição de uma norma ou de uma sua interpretação (...)» – cf., inter alia,
o Acórdão n.º 618/98 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt/).
4 – Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar
conhecimento do recurso».
3 – Na reclamação, ora deduzida, o arguido sustenta que:
«(…)
1
No entender do recte., a decisão do Tribunal a quo é inconstitucional porque
aplica normas jurídicas de acordo com interpretações que não respeitam
directamente a Constituição da República Portuguesa, não respeitando ainda
tratados e convenções ratificados pelo Estado Português.
2
O que o recte. pretende é, pois, que seja fiscalizada a constitucionalidade da
interpretação de normas jurídicas, independentemente de ter referido que tal
interpretação provocou a inconstitucionalidade da decisão, o que não é falso.
3
Assim, ao recorrer-se do modo como o Tribunal a quo interpretou o princípio ne
bis in idem, segundo o qual não se consideram como tendo sido julgados os factos
que tenham sido objecto de um juízo absolutório tácito em processos judiciais no
estrangeiro, está-se a suscitar a inconstitucionalidade da norma nessa
interpretação, a qual sempre seria violadora de outro princípio constitucional,
o princípio da legalidade das normas penais.
4
Com efeito, o recte. apresentou a questão da inconstitucionalidade perante o
Tribunal da Relação de Lisboa em termos de pôr em causa a constitucionalidade da
interpretação dada a normas jurídicas, como se depreende da parte suas
conclusões que aqui se transcrevem:
“T) Não deveria o Tribunal “a quo” ter entendido o sentido das disposições
acerca do princípio ne bis in idem (...) no sentido restritivo de este princípio
operar apenas em casos em que tenha havido uma absolvição expressa por uma
sentença. Qualquer juízo de absolvição, ainda que consista numa omissão de
condenação, como é o caso, deve ser entendido como suficiente para efeitos de
fazer operar aquele princípio geral de direito.
U) A interpretação extensiva de normas desincriminadoras é obrigatória em
direito penal por força do princípio da legalidade. Com efeito, o que se proíbe
para as normas penais de sentido positivas, torna-se obrigatória para as normas
penais de sentido negativo
V) Ao condenar o arguido por factos pelos quais este tinha já sido processado
criminalmente num processo findo, o Tribunal “a quo” violou, assim, as referidas
normas constitucionais e convencionais que consagram o princípio fundamental do
ne bis in idem. Violação esta que incidiu directamente sobre as normas e também
sobre a interpretação extensiva que destas deveria ter feito, pelo que o
Tribunal “a quo” violou também o princípio da legalidade”
5
Não existem, de facto, fórmulas sacramentais para formulação dos pedidos, nem
sequer para suscitação da questão da inconstitucionalidade, mas, ao contrário do
que a decisão reclamada sustenta, o recte. suscitou de forma clara e perceptível
questões de constitucionalidade de normas.
6
Assim, o recte. tem direito a que a constitucionalidade da norma que invocou em
sua defesa, seja apreciada por esse Tribunal no sentido da fiscalização da
interpretação que os Tribunais, de primeira Instância e da Relação, fizeram da
mesma.
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências ao exposto, deve ser
dado provimento à presente reclamação, ordenando-se o prosseguimento dos autos,
com as legais consequências».
4 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
pugnou pelo indeferimento da reclamação, dizendo:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, como decorre da argumentação do reclamante este não suscitou, em
termos processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade
normativa, susceptível de integrar objecto idóneo do recurso de fiscalização
concreta interposto”.
Cumpre agora julgar.
B – Fundamentação
5 – A presente reclamação em nada abala os fundamentos com base
nos quais foi proferida a decisão reclamada de não conhecimento do objecto do
recurso, porquanto, como aí se deixou consignado, o reclamante em passo algum do
processo suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Nem mesmo, agora, na sua reclamação esclarece qual o preceito
legal – ou a dimensão normativa dele inferida – que pretendia colocar à
apreciação deste Tribunal.
Por outro lado, a alegada violação do princípio ne bis in idem
não configura uma questão de constitucionalidade normativa, sem que o reclamante
identifique de forma clara e processualmente adequada o critério legal-normativo
que em seu juízo atentava contra o referido princípio.
Não o tendo feito, fica-lhe vedado o recurso para o Tribunal
Constitucional das decisões que apliquem norma cuja constitucionalidade haja
sido suscitada durante o processo – artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
C – Decisão
6 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação.
Custas pelo reclamante, com 20 (vinte) UCs. de taxa de justiça.
Lisboa, 12 de Julho de 2006
Benjamim Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos