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Processo nº 362/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
Acordam, em conferência na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório.
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que
é recorrente A. e recorridos B. e mulher, C., foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b),
da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC).
Do requerimento de interposição foi feito constar o seguinte teor:
«A. […] notificada do douto Acórdão, inconformada, vem dele apresentar recurso
para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
1- O recurso é interposto nos termos da
al.b) do art.70º da lei n.º28/82, de 15 de Novembro, na redacção conferida pela
Lei n.º85/89, de 07 de Setembro e pela Lei n.º13-A/98, de 26 de Fevereiro;
2- Pretende-se ver apreciada a questão da
inconstitucionalidade do art.712º do Cód. de Proc. Civil, na interpretação que
foi aplicada no processo em causa, que confere competência ao Tribunal da
Relação para fixar pela primeira vez nos autos, matéria de facto controvertida,
e com base nela proferir Acórdão, quando a selecção dessa matéria de facto foi
feita sem que tivesse havido produção de prova de qualquer género, quer na
primeira ou na segunda instância, e sem que fosse dada às partes a possibilidade
de reclamar dessa selecção ou de carrearem para o processo meios de prova.
3- De outra forma, pretende-se ver
apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dada ao dispositivo do
art.713º do Cód. de Proc. Civil, no sentido de que a fixação da matéria de facto
pelo Tribunal da Relação não admite a reclamação prevista no art.511º, n.º2, do
mesmo Cód. de Proc. Civil.
4- E ainda, pretende-se ver apreciada a
questão da inconstitucionalidade do art.678º do mesmo diploma legal, quando
interpretado no sentido de impedir que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie em
recurso, mesmo em causas de valor inferior à alçada respectiva, o Acórdão da
Relação que pela primeira vez no processo decide de matéria de facto e em
consequência de mérito.
5- O sentido dado a tais normas violam o
art.20º, n.º1, da Constituição da República e os princípios constitucionais de
justiça, de processo equitativo, de contraditório e de duplo grau de
jurisdição».
2. Por se haver entendido que não podia conhecer-se do objecto do recurso, foi
proferida a decisão sumária ora reclamada.
Da fundamentação aí utilizada, são de destacar, com relevo para a decisão a
proferir, as seguintes as passagens:
«O presente recurso foi interposto ao abrigo da al.b) do art.70º da LTC,
preceito que se refere àqueles que tenham por objecto decisões que apliquem
norma cuja constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Tais recursos, conforme vem sendo pacificamente entendido, encontram-se
sujeitos, quanto à possibilidade da sua admissão, a um conjunto de pressupostos
cumulativos, consistindo um deles na obrigatoriedade de a questão de
inconstitucionalidade suscitada se referir a norma de que a decisão recorrida
haja feito efectiva aplicação.
Daí se segue que a resposta à questão de saber se, no caso em apreço, tal
pressuposto foi ou não observado pela recorrente não dispensará a identificação
prévia da decisão concretamente visada pela interposição do recurso.
Pese embora diferente possa ser o sentido sugerido pela pretensão manifestada
pela recorrente em ver apreciada a questão da inconstitucionalidade do art.712º
do Cód. de Proc. Civil na “interpretação (…) aplicada no processo em causa”, bem
como a questão da “inconstitucionalidade da interpretação dada ao dispositivo do
art.713º do Cód. de Proc. Civil” – sentido esse, de resto, que adiante
igualmente se ponderará - cremos que preponderantes elementos impõem que como
certo se assuma que a decisão recorrida corresponderá ao Acórdão proferido pelo
Supremo Tribunal de Justiça, constante de fls.258 a 263 dos autos.
[…]
Identificada, nos descritos termos, a decisão recorrida a considerar para os
efeitos que se seguem, é altura de verificar se, conforme se disse já
indispensável, tal decisão fez efectiva aplicação das normas em que a recorrente
apoia as questões de inconstitucionalidade suscitadas.
A resposta, sendo embora de idêntico sentido, verá o seu fundamento variar em
função da norma ou normas que concretamente se considerem.
[…]
A conclusão de que a decisão recorrida não aplicou, na respectiva fundamentação
argumentativa, os normativos invocados pela recorrente não pode bastar-se,
porém, com a constatação de que os mesmos não são mencionados no Acórdão.
E isto porque a aplicação da norma, para além de expressa, pode ser implícita, o
que sucederá nos casos em que, embora sem mencionar explicitamente o preceito
que se alega haver sido interpretado em sentido constitucionalmente desconforme,
a decisão recorrida não deixa de nele apoiar os fundamentos que sustentam o
sentido do respectivo pronunciamento.
E, assim sendo, necessário se torna fazer notar que, entre os argumentos
enunciados no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça para confirmar
a não admissibilidade do recurso que se considerou interposto pela ré do Acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa aos 27 de Janeiro de 2005, se conta
o de que o Tribunal da Relação, por ter a incumbência de pronunciar-se em todos
os recursos interpostos das decisões dos tribunais de primeira instancia, é
sempre competente para conhecer quer da matéria de facto, quer da matéria de
direito, razão pela qual, quando adita matéria factual à anteriormente fixada na
primeira instância, mesmo que tenha assente matéria de facto controvertida,
actua sempre no âmbito dos seus poderes de sindicância da decisão recorrida,
podendo, quando muito, incorrer em erro de julgamento ou nulidade. Com a
consequência de o recurso interposto com base na violação das regras da
competência em razão da hierarquia carecer sempre de fundamento.
Pois bem.
Embora em tal passagem seja de reconhecer um pronunciamento implícito sobre o
âmbito dos poderes de cognição atribuídos ao Tribunal da Relação ao nível da
sindicância da matéria de facto e, por lógica decorrência, sobre o uso possível
das faculdades que lhe são conferidas pelo art.712º do Cód. de Proc. Civil, o
certo é que, conforme resulta da natureza ostensivamente subsidiária da
correspondente linha argumentativa, jamais na referida asserção poderia
identificar-se a “ratio decidendi” da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de
Justiça.
Ora, conforme constitui pacífica e consolidada jurisprudência deste Tribunal, o
requisito de admissibilidade de que vimos cuidando pressupõe não apenas que a
norma com que se relaciona a questão de inconstitucionalidade suscitada haja
sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida, como ainda que tal aplicação
constitua a sua ratio decidendi.
E nesta última acepção, o pressuposto assim enunciado encontra-se notoriamente
ausente.
Com efeito, conforme textualmente resulta do Acórdão proferido pelo Supremo
Tribunal de Justiça, a decisão de não admitir o recurso que se considerou
interposto pela ré do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 27 de
Janeiro de 2005 ficou a dever-se ao facto de tal recurso haver sido considerado
intempestivamente apresentado, somente a título subsidiário - ou, na expressão
empregue, “apenas por facilidade de raciocínio” - se tendo solucionado a questão
de saber se, a admitir-se que fora interposto em tempo, o mesmo poderia vir a
ser recebido sem interferência da regra estabelecida no n.º1 do art.678º do Cód.
de Proc. Civil que condiciona tal recebimento ao valor da causa no confronto com
o valor da alçada do Tribunal da Relação.
É, portanto, no suplementar e residual esforço argumentativo assim desenvolvido
que se inscreve o único argumento em que poderia reconhecer-se uma implícita
aplicação do art.712º do Cód. de Proc. Civil e que é, conforme se fez já notar,
o argumento segundo o qual o Tribunal da Relação dispõe sempre de competência
para conhecer da matéria de facto, mesmo nos casos em que, aditando matéria
factual à anteriormente fixada pela primeira instância, tenha assente matéria de
facto controvertida, entendimento este que, na conclusão extraída pelo Acórdão,
tornaria desprovido de fundamento o recurso interposto para o Supremo Tribunal
de Justiça sob alegada violação das regras da competência em razão da
hierarquia, impedindo-o de ser recebido, caso tempestivo fosse, ao abrigo do
regime de excepção previsto no n.º2 do art.678º do Cód. de Proc. Civil.
Idêntica ordem de considerações valerá relativamente à pretensão formulada pela
recorrente em ver apreciada a questão da inconstitucionalidade do art.678º do
Cód. de Proc. Civil, quando interpretado no sentido de impedir que o Supremo
Tribunal de Justiça aprecie em recurso, mesmo em causas de valor inferior à
alçada respectiva, o Acórdão da Relação que pela primeira vez no processo decide
de matéria de facto e, em consequência, de mérito.
A este propósito e por clareza de exposição, é conveniente começar por fazer
notar que, mercê do défice de precisão evidenciado pela recorrente na
identificação do Acórdão concretamente recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça
considerou alternativamente duas possíveis hipóteses: na primeira, assumiu que o
recurso teria por objecto o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa
aos 07 de Abril de 2005, considerando-o seguidamente inadmissível, quer por se
não integrar em qualquer uma das hipóteses que, excepcionando a regra consagrada
no art.678º, n.º1, do Cód. de Processo Civil, tornam, através da previsão dos
respectivos e subsequentes incisos, sempre admissível o recurso
independentemente do valor da causa, quer por, em face do estatuído no art. 670º
do mesmo diploma legal, a decisão sobre a nulidade não ser passível de recurso
quando seja de indeferimento; na segunda, concertando-se com o esclarecimento
feito pela própria recorrente no requerimento para que sobre a matéria do
despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Relator incidisse Acórdão, assumiu que
o recurso teria por objecto o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Lisboa aos 27 de Janeiro de 2005.
Ora, uma vez que, de acordo com próprios termos em que a questão de
inconstitucionalidade é suscitada, só a este último aresto se poderá querer
referir a recorrente quando contesta a conformidade à Constituição da
interpretação dada ao art.678º do Cód. de Proc. Civil no sentido de impedir que
o Supremo Tribunal de Justiça aprecie em recurso, mesmo em causas de valor
inferior á alçada respectiva, o Acórdão da Relação que pela primeira vez no
processo decide de matéria de facto e em consequência de mérito, a questão de
saber se a aplicação do art.678º do Cód. de Proc. Civil constituiu ou não a
“ratio decidendi” da decisão recorrida encontrar-se-á logicamente cingida à
declaração de extinção da instância, pelo não conhecimento do recurso, supondo-o
interposto do Acórdão que julgou procedente a apelação.
E o que se verifica é que, conforme feito já notar, o recurso interposto para o
Supremo Tribunal de Justiça tendo por objecto o Acórdão proferido pelo Tribunal
da Relação de Lisboa aos 27 de Janeiro de 2005 não foi aí recebido por haver
sido considerado extemporaneamente apresentado, razão pela qual a aplicação do
art.678º do Cód. de Proc. Civil, embora tenha ocorrido nos subsidiários termos
acima já referidos, não constituiu a “ratio decidendi” da decisão recorrida,
cujo sentido, por directamente se apoiar na ultrapassagem do prazo previsto no
art.685º, n.º1, do Cód. de Proc. Civil, permaneceria obviamente inalterado,
ainda que, na hipótese de vir a conhecer do objecto do interposto recurso de
constitucionalidade, sufragasse este Tribunal o entendimento que vem defendido
pela recorrente.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 389/00,
“encontrando-se na decisão recorrida outro fundamento, para além da aplicação da
norma impugnada [neste caso, do sentido normativo impugnado] só por si
suficiente para chegar a tal decisão, não existe, pois, interesse processual que
justifique o conhecimento da questão pelo Tribunal Constitucional – seja qual
for o sentido da decisão que recaia sobre a questão, manter-se-á inalterado o
decidido pelo tribunal recorrido” (Diário da República, II Série, de 13 de
Novembro de 2000).
Daí que, conforme a propósito se concluiu ainda no Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 366/96, “não visando os recursos dirimir questões meramente
teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de
constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica
sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse
representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso” (Diário da
República, II Série, de 10 de Maio de 1996).
E uma vez que, em consequência do carácter instrumental do recurso interposto ao
abrigo da al.b) do art.70º da LTC, a decisão sobre a suscitada questão de
constitucionalidade haverá necessariamente de “influir utilmente na decisão da
questão de fundo” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 169/92, Diário da
República, II Série, de 18 de Setembro de 1992), facilmente se percebe que,
tendo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça concluído pela inadmissibilidade
do recurso interposto em razão da sua intempestividade, um eventual juízo de
inconstitucionalidade nos termos preconizados pela recorrente seria sempre
insusceptível de se repercutir proveitosamente na decisão impugnada.
Com efeito, ainda que porventura viesse a ser considerado constitucionalmente
desconforme o entendimento de que à admissibilidade do recurso interposto do
Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa se opõe o disposto no
art.678º do Cód. de Proc. Civil, inalterável permaneceria o sentido da decisão
proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, já que a verificada declaração de
extinção da instância pelo não conhecimento do recurso se bastaria, em quaisquer
circunstâncias, com o reconhecimento da sua intempestiva interposição.
[…]».
2. De tal decisão sumária vem agora a recorrente reclamar para a conferência, o
que faz ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC e através de
fundamentação cujo essencial seguidamente se transcreve:
« […]
7. Para o Ilustre Relator a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça
naquele Acórdão é baseada na intempestividade da sua interposição e não
propriamente na aplicação das normas cuja constitucionalidade é posta em causa.
8. Ou, dizendo de outro modo “tendo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
concluído pela inadmissibilidade do recurso interposto em razão da sua
intempestividade, um eventual juízo de inconstitucionalidade nos termos
preconizados pelo recorrente seria sempre insusceptível de se repercutir
proveitosamente na decisão impugnada (folhas 22).
9. É desta decisão e em especial do seu fundamento que ora se reclama.
[…]
10. De facto, o recurso interposto é do Acórdão proferido a 14 de Março de 2006
pelo Supremo Tribunal de Justiça e que em síntese não admitiu o recurso
interposto e desatendeu à reclamação feita, mantendo-se o despacho do relator
que declarou extinta a instância pelo não conhecimento do seu objecto.
[…]
12. Procurando sistematizar o andamento processual da presente questão temos o
seguinte:
[…]
f) Por se entender que nos termos dos artigos 508º-A e 511º do CPC (aplicável
por força do artigo 787º do CPC) a selecção da matéria de facto assente
pressupõe debate prévio ou pelo menos admite reclamação, e porque o ponto seis
da “especificação” feita não resultava de documento autêntico e pior que isso
foi directa e especificadamente impugnado na contestação apresentada pela ré
[…], não podendo o Tribunal da Relação considerar como facto assente algo que
foi directamente impugnado, a inquilina apresentou em requerimento duas coisas:
- arguiu a nulidade do Acórdão por ter conhecido de questões que não podia tomar
conhecimento;
- reclamou da selecção da matéria de facto feita pelo Tribunal da Relação.
[…]
h) Já sobre a reclamação da selecção da matéria de facto feita, o mesmo Tribunal
da Relação decidiu indeferi-la a 7 de Abril de 2005, o que justificou a 21 de
Abril de 2005 que a inquilina, ora reclamante, interpusesse recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, que embora admitido no Tribunal a quo (folhas 138
dos autos), veio o Supremo Tribunal de Justiça declarar extinta a instância de
recurso por não o admitir nos termos do art.726º e 700º, n.º1, al.e) do CPC,
decisão primeiramente proferida pelo Juiz Relator e depois assumida em Acórdão
desse Supremo Tribunal datado de 14 de Março do corrente ano.
i) Embora se reconheça que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu correctamente a
questão da nulidade do Acórdão porque foi intempestivo o Recurso quanto a essa
matéria, já que só teria possibilidade de ser analisado se tivesse sido
interposto do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 27 de Janeiro
de 2005 porque a arguição da nulidade não suspende os prazos de recurso, já
quanto à Reclamação da matéria de facto não nos parece que a sua decisão tenha
sido clara e legal.
j) De facto a reclamação foi feita nos termos do artigo 511º n.º2 do CPC, e a
decisão quanto a esta só era passível de recurso nos termos do artigo 511º, n.º1
e do artigo 670º, n.º4 e 669º, n.º2, todos do CPC, recurso esse a ser interposto
do último Acórdão que se pronunciou sobre a reclamação feita.
k) Ora, o STJ não admitiu esse recurso e no fundo veio a considerar que a
selecção da matéria de facto feita pelo Tribunal da Relação não era passível de
segunda análise, mesmo quando sobre ela tenha havido reclamação apresentada pela
Recorrente e indeferida pelo próprio Tribunal da Relação.
l) É esta a questão fundamental: será que a decisão do Tribunal da Relação de
Lisboa que considera pela primeira vez que um determinado facto está admitido
por acordo […] não é passível de ser reanalisado em recurso, como entendeu o
Supremo Tribunal de Justiça, é constitucional?
13. Como nos parece resultar do Requerimento de interposição de Recurso para o
Tribunal Constitucional, a primeira questão a suscitar a constitucionalidade é a
de saber se o art.678º do CPC pode ser interpretado no sentido de não ser
admissível recurso mesmo em causas de valor inferior à alçada respectiva, do
Acórdão da Relação, que pela primeira vez decide de matéria de facto e em
consequência de mérito, impossibilitando a reanalise dessa decisão.
14. E essa questão foi exclusivamente colocada e decidida pelo Supremo Tribunal
de Justiça e só nesse Tribunal poderia ser decidida.
15. A questão de constitucionalidade que está a ser levantada neste Tribunal tem
a ver com a inadmissibilidade decidida por Acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça de um Recurso interposto de um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
que não admitiu reclamação quanto à matéria de facto e que assim impediu uma
segunda análise a essa matéria de facto decisiva para a decisão judicial aí
proferida.
16. Dito de outro modo, a interpretação do art.678º do mesmo Código de Processo,
no sentido de impedir que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie em recurso,
mesmo em causas de valor inferior á alçada respectiva, o Acórdão da Relação que
pela primeira vez no processo decide de matéria de facto e em consequência de
mérito, ao abrigo do art.712º do Código de Processo Civil, quando a selecção da
matéria de facto foi aí feita sem que tivesse havido produção de prova de
qualquer género, quer na primeira ou segunda instância, e sem que fosse dada às
partes a possibilidade de reclamar dessa selecção ou de carrearem para o
processo meios de prova (não admitindo a reclamação prevista no art.511º, n.º2,
do mesmo Código de Processo Civil) viola em nosso entendimento, o art.20º, n.º4,
da Constituição da República, e os princípios constitucionais de justiça, de
processo equitativo, de contraditório e de duplo grau de jurisdição.
[…]
18. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça veio interpretar o artigo 678º do
CPC no sentido de que não é admissível recurso mesmo em causas de valor inferior
à alçada respectiva, do Acórdão da Relação que pela primeira vez no processo
decide de matéria de facto e em consequência de mérito, impossibilitando a
reanalise dessa decisão, mesmo que ela esteja em contradição com outros Acórdãos
proferidos sobre a mesma matéria.
19. A questão da intempestividade do recurso foi colocada sobre a questão da
nulidade do Acórdão do Tribunal da Relação e o Supremo decidiu matéria que não
está em análise e que estava de facto definitivamente ausente.
[…]»
II. Fundamentação.
Analisado o teor da presente reclamação verifica-se que as objecções colocadas à
fundamentação seguida na decisão reclamada, mais propriamente ao segmento
argumentativo com que a reclamante se revela particularmente inconformada [
ponto 9 do requerimento de reclamação], relevam da associação à ocorrida
aplicação do art.678º do Código de Processo Civil pela decisão recorrida de uma
dimensão normativa diversa da originariamente enunciada.
Vejamos mais de perto:
Conforme se fez notar na decisão reclamada, no acórdão proferido pelo Supremo
Tribunal de Justiça e objecto do recurso pretendido interpor para este Tribunal,
duas hipóteses foram sucessivamente consideradas quanto à identificação da
decisão sob censura.
Em primeiro lugar, admitiu-se que o recurso dirigido àquele Tribunal viria
interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa aos 07 de
Abril de 2005, através do qual foi decidido desatender a reclamação apresentada
pela aí apelada contra a selecção da matéria de facto imputada ao Acórdão
anteriormente proferido e julgar improcedente a nulidade concomitantemente
arguida.
Pressupondo-o assim interposto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou
inadmissível o recurso, quer por se não integrar em qualquer uma das hipóteses
que, excepcionando a regra consagrada no art.678º, n.º1, do Cód. de Processo
Civil, tornam, através da previsão dos respectivos e subsequentes incisos,
sempre admissível o recurso independentemente do valor da causa, quer por, em
face do estatuído no art. 670º do mesmo diploma legal, a decisão sobre a
nulidade não ser passível de recurso quando seja de indeferimento.
Seguidamente, louvando-se no esclarecimento feito pela própria recorrente no
requerimento para que sobre a matéria do despacho proferido pelo Juiz
Conselheiro Relator incidisse Acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça assumiu que
o recurso teria por objecto o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Lisboa aos 27 de Janeiro de 2005, aresto através do qual havia sido concedido
provimento ao recurso de apelação interposto da decisão proferida em primeira
instância.
Assim figurada a decisão sob censura, o Supremo Tribunal de Justiça considerou
inadmissível o recurso pretendido interpor pela ora reclamante pela
circunstância de o haver considerado apresentado depois de o prazo previsto no
art.685º, n.º1, do Cód. de Proc. Civil para a respectiva interposição.
Aceitando-se, embora apenas por facilidade de raciocínio, que o recurso havia
sido atempadamente deduzido, sustentou-se, todavia, não ocorrer qualquer uma das
circunstâncias em que o recurso, nos termos do art.678º do Cód. de Proc. Civil,
é sempre admissível, já que, de acordo com o entendimento expresso, o Tribunal
da Relação, por ter a incumbência de pronunciar-se em todos os recursos
interpostos das decisões dos tribunais de primeira instancia, é sempre
competente para conhecer quer da matéria de facto quer da matéria de direito,
razão pela qual, quando adita matéria factual à anteriormente fixada na primeira
instância, mesmo que tenha assente matéria de facto controvertida, actua sempre
no âmbito dos seus poderes de sindicância da decisão recorrida, podendo, quando
muito, incorrer em erro de julgamento ou nulidade. Por tal razão, concluiu-se
ainda, recurso interposto com base na violação das regras da competência em
razão da hierarquia seria sempre infundado.
Relembrada que fica a estrutura decisória do aresto proferido pelo Supremo
Tribunal de Justiça para não admitir o recurso pretendido interpor pela vencida
apelada, é altura de fazer notar que, ao enunciar a dimensão normativa que, a
partir da aplicação feita do art.678º do Cód. de Processo Civil, pretendeu
sujeitar à fiscalização deste Tribunal, a ora reclamada o fez através da
seguinte formulação: “pretende-se ver apreciada a questão da
inconstitucionalidade do art.678º do mesmo diploma legal, quando interpretado no
sentido de impedir que o Supremo Tribunal de Justiça aprecie em recurso, mesmo
em causas de valor inferior à alçada respectiva, o Acórdão da Relação que pela
primeira vez no processo decide de matéria de facto e em consequência de
mérito”.
Ora, porque o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação acusado de haver
decidido, pela primeira vez no processo, «de matéria de facto e em consequência
de mérito», só pode ser o Acórdão que, aos 27 de Janeiro de 2005, julgou
procedente a apelação e decretou o despejo, por elementar imposição lógica se
considerou, na decisão reclamada, que a questão de saber se a aplicação do
art.678º do Cód. de Proc. Civil teria constituído ou não a “ratio decidendi” da
decisão recorrida só podia dizer respeito à declaração de extinção da instância
pelo não conhecimento do recurso, supondo-o interposto do primeiro dos dois
arestos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
E, nesse legítimo e fundado pressuposto, considerou-se que não, o que se fez
através da enunciação de fundamentos para cuja infirmação não se vê como possam
contribuir os reparos feitos agora pela reclamante.
Com efeito, a argumentação desenvolvida no requerimento de reclamação, para além
de pretender restaurar e prevalecer-se do originário défice de precisão na
identificação do aresto objecto do recurso dirigido ao Supremo Tribunal de
Justiça – assim desconsiderando a circunstância de, no requerimento para que
sobre a matéria do despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Relator incidisse
Acórdão, se haver expressamente esclarecido que o aresto visado pelo recurso
pretendido interpor era o proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa aos 27 de
Janeiro de 2001 [ponto 5 de fls.247 verso] – evidencia a tentativa de rescrever
os termos em que foi originariamente enunciada a questão da
inconstitucionalidade do critério interpretativo que presidiu à aplicação do
art.678º do Código de Processo Civil pelo Supremo Tribunal de Justiça, de modo a
referi-la não já apenas ao segmento do Acórdão proferido por aquele Tribunal que
conduziu à decisão de não admitir o recurso supondo-o interposto do aresto
datado de 27 de Janeiro de 2001, mas ainda ao pronunciamento expresso na decisão
recorrida para suportar a concluída inadmissibilidade do recurso, assumindo que
teria por objecto o Acórdão proferido pela Relação de Lisboa aos 07 de Abril de
2005.
Só assim, com efeito, pode ser entendida a afirmação produzida sob o ponto 15 do
requerimento de reclamação – e, de resto, antecipável já em função do alegado
sob as alíneas i) a k) do respectivo ponto 12 - segundo a qual «a questão de
constitucionalidade que está a ser levantada neste Tribunal tem a ver com a
inadmissibilidade decidida por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de um
Recurso interposto de um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que não
admitiu reclamação quanto à matéria de facto e que assim impediu uma segunda
análise a essa matéria de facto decisiva para a decisão judicial aí proferida».
É certo que, sob o ponto 16 do requerimento de reclamação, mais precisamente
através do estratégico emprego da expressão «dito de outro modo», a reclamante
se esforça por iludir a dissemelhança que notoriamente existe entre a dimensão
normativa originariamente enunciada e aquela que agora enuncia em acumulação.
Atento, porém, o que resulta do disposto no art.684º, n.º3, do Cód. de Processo
Civil, aplicável ex vi do preceituado no art.69º da LTC, tal esforço jamais
poderia revelar-se bem sucedido.
Com efeito, porque o requerimento dirigido a este Tribunal define o objecto
possível do recurso de constitucionalidade e, no requerimento apresentado pela
reclamante, a única dimensão normativa que efectivamente se associou à
verificada aplicação do art.678º, do Cód. de Processo Civil, diz respeito ao uso
que de tal norma foi feito para não admitir o recurso pretendido interpor para o
Supremo Tribunal de Justiça, supondo-o a incidir sobre o primeiro dos dois
arestos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a argumentação
desenvolvida na decisão reclamada pode resistir, sem dificuldade, às objecções
que lhe são dirigidas pela reclamante, já que, por assim ser, da reclamação nada
resulta capaz de abalar o entendimento aí expresso e segundo o qual a aplicação
do art.678º do Cód. de Processo Civil ocorreu em termos meramente subsidiários,
não tendo constituído a ratio decidendi da decisão recorrida.
III. Decisão.
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 19 de Julho de 2006
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes
Artur Maurício