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Processo nº 925/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente A. e em que são recorridos B. e C., foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Em 21 de Fevereiro de 2006, foi proferida decisão sumária (artigo 78º-A, nº
1, da LTC), pela qual se entendeu não tomar conhecimento do objecto do recurso.
É a seguinte a fundamentação constante desta decisão:
«Conforme jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional,
“constituem requisitos do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b)
do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional: a aplicação pelo
tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja constitucionalidade é
questionada pela recorrente; a suscitação da inconstitucionalidade normativa
durante o processo; e o esgotamento de todos os recursos ordinários que no caso
cabiam” (cf. Acórdão nº 497/99, não publicado). Requisitos que são objecto do
exame preliminar previsto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, que tem precisamente
como finalidade indagar se pode ou não conhecer-se do objecto do recurso.
É, por conseguinte, a esta luz que importa analisar se se verificam no caso em
apreço todos os requisitos do recurso interposto para este Tribunal do acórdão
do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de Fevereiro de 2002.
1. No que respeita ao artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal,
refere o recorrente que o Tribunal da Relação interpretou e aplicou o preceito
no sentido de que o tribunal pode conhecer oficiosamente de um “eventual erro
notório na apreciação da prova”, sem necessidade de conceder ao demandado a
possibilidade de se pronunciar sobre a questão em causa e contraditar uma
eventual solução que o prejudique.
Ora, decorre do teor da decisão recorrida – designadamente do seu ponto XI. –
que esta não aplicou a norma identificada pelo recorrente. Ali se escreveu:
«XI. Retomando à problemática da renovação da prova, diremos que a sentença
enferma de erro notório na apreciação da prova ao ilaccionar-se que não subjaz
aos factos um conteúdo lesivo dos demandantes na sua honra e consideração, pois
o cidadão comum, aquele que não conhece os meandros do direito, e que
facilmente, sem esforço, se dá conta, o que autorizaria, nos termos dos art.º s
430.º n.º1 e 410.º n.º2 c), do CPP, a renovação da prova, porém esse mecanismo
processual, de pesquisa da intenção do demandado civil, é perfeitamente
dispensável, face ao que se reputa serem, e o respectivo conteúdo, os elementos
constitutivos do crime de difamação, previsto no art.º 180.º n.º1, do CP»
(itálico aditado).
Decorre claramente da passagem transcrita, que o recurso ao disposto no artigo
410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal é enunciado como meramente
hipotético (“autorizaria”), para logo ser afastado, por dispensável, no caso em
apreço (“porém,”). Ou seja, decorre da fundamentação do acórdão recorrido que a
norma enunciada não foi aplicada, como ratio decidendi, o que afasta a
verificação, nesta parte, de um dos requisitos do recurso previsto na alínea b)
do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Do que fica dito decorre também que o acórdão recorrido não interpretou [e
aplicou] o artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP, no sentido de admitir que o
Tribunal ad quem possa dar como ‘provado’ que o demandado agiu com dolo
genérico, com fundamento numa presunção de dolo. De resto, nas considerações
tecidas pela decisão recorrida relativamente ao dolo genérico, não se encontra
qualquer aplicação de norma contida no artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código
de Processo Penal. De facto, para chegar à conclusão que existia dolo genérico,
no caso em apreço (conclusão não sindicável por este Tribunal), o Tribunal da
Relação de Lisboa não o fez, manifestamente, por recurso a qualquer
interpretação do artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal (cf.
ponto XI. do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa).
Também nesta parte se impõe, pois, concluir que a decisão recorrida não aplicou,
como ratio decidendi, a norma questionada pelo recorrente, o que afasta a
verificação de um dos requisitos do recurso de constitucionalidade interposto.
2. Relativamente ao artigo 514º, nº 1, do Código de Processo Civil, verifica-se
que tal disposição foi referida, efectivamente, na decisão recorrida (ponto
XIII). Importa desde já precisar, porém, que, ao contrário do que sustenta o
recorrente, não foi mencionado a propósito da prova dos danos, mas da prova da
gravidade dos mesmos.
Não pode acompanhar-se a afirmação do recorrente de que o Tribunal da Relação de
Lisboa sustentou, ao abrigo do artigo 514º, nº 1, do Código de Processo Civil,
que os danos sofridos pelos demandantes eram factos notórios, pelo que
dispensavam alegação e prova, nem tão-pouco a de que interpretou tal artigo no
sentido de que a alegação e prova dos factos alegadamente notórios não é
necessária, podendo estes ser conhecidos pelo Tribunal de instância, a título
oficioso, e sem necessidade de conceder ao demandado a possibilidade de se
pronunciar sobre a questão em causa e contraditar uma eventual solução que o
prejudique.
E não pode acompanhar-se, desde logo, porque pode ler-se no acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa o seguinte:
“Ao lesado incumbe provar os factos constitutivos do direito à indemnização,
sustentando o demandante que se não provaram ou alegaram danos morais. Não
concordamos com semelhante afirmação”
Por outro lado, afirma-se que
«A prova da gravidade do dano para merecer a tutela da lei incumbe ao lesado,
mas acontece que a experiência da vida transforma em factos notórios certos
casos concretos de dor moral, pelo que se lhes aplica o art.º 514.º n.º1, do
CPC, referentes aos factos notórios, dispensando alegação e prova» (itálico
aditado).
Importa concluir, por conseguinte, que o tribunal recorrido não aplicou a norma
identificada pelo recorrente, o que obsta, nesta parte, à verificação de um dos
requisitos do recurso de constitucionalidade previsto no artigo 70º, nº 1,
alínea b), da LTC.
3. No que se refere à questão levantada relativamente aos artigos 180º do Código
Penal e 483º e 484º do Código Civil, verifica-se que o recorrente não cumpriu o
ónus da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade (artigos 70º, nº
1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC), considerando as peças processuais que o
recorrente indicou, na resposta ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento de
interposição de recurso para este Tribunal, como aquelas em que suscitou a
questão de inconstitucionalidade normativa – a contestação ao pedido de
indemnização civil e as contra-alegações de recurso para o Tribunal da Relação.
Para além de na primeira peça processual não ser formulada tal questão (fls. 430
a 493), é de concluir que, na segunda, o recorrente não suscitou qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigado a dela conhecer (artigo 72º, nº 2, da LTC).
Com efeito, o recorrente não especifica a interpretação normativa cuja
constitucionalidade questiona, resultando tal conclusão das seguintes palavras:
“E de sublinhar é também que a Constituição da República Portuguesa
expressamente prevê que sejam asseguradas aos Advogados as imunidades
necessárias ao exercício do mandato (cfr. artigo 208° da CRP; também, como não
pode deixar de ser, artigos 1°,2°, 13°, 18°, n.º 2,20°, 27° e 32° da CRP).
O que nos leva a concluir, desde já, que qualquer interpretação dos artigos 180°
do Código Penal, 483° e 484° do Código Civil ou equivalente no sentido de
considerar ofensivas da honra ou consideração dos demandantes as frases do
demandado em apreço, nos termos e contexto em que foram escritas, redundará em
norma inconstitucional, por violação dos preceitos constitucionais mencionados
no parágrafo precedente, e ainda do artigo 37° da CRP – o que desde já se deixa
invocado” (itálico aditado).
Que interpretação? Que norma?
Assim sendo, não foi observado o ónus da suscitação prévia da questão de
inconstitucionalidade normativa, nos termos exigido pelos artigos 70º, nº 1,
alínea b), e 72º, nº 2, da LTC, circunstância que obsta à verificação de um dos
requisitos do recurso de constitucionalidade interposto.
4. Importa destacar, ainda, que a matéria referida sob o ponto V. da resposta ao
convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal é nova face ao que constava nesta peça processual.
Na medida em que o requerimento de interposição de recurso é que delimita o
objecto do recurso de constitucionalidade (artigo 684º, nº 2, do Código de
Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 69º da LTC), não pode
considerar-se a questão enunciada sob o referido número da resposta ao convite
ao aperfeiçoamento deste requerimento. Como se escreveu no Acórdão nº 20/97,
“delimitado o objecto do recurso pelo requerimento da sua interposição, pode
este ser posteriormente circunscrito – mas não ampliado – pelos recorrentes,
dando cumprimento ao despacho de aperfeiçoamento proferido ao abrigo do disposto
no nº 5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional” (Diário da República,
II Série, de 1 de Março de 1997; itálico aditado)».
3. Desta decisão vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo
do disposto no artigo 78º-A, nº 3, da LTC, concluindo que:
«1. Quanto ao primeiro problema de inconstitucionalidade: a norma que consta do
disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, referente aos fundamentos do
recurso, foi efectivamente aplicada no acórdão recorrido, bastando verificar,
para o efeito, que o Tribunal da Relação de Lisboa afirma expressamente que “a
sentença enferma de erro notório na apreciação da prova” – sublinhado nosso.
2. Ao invés, a norma cuja aplicação acabou por ser afastada pelo Tribunal da
Relação de Lisboa foi, apenas e tão só, aquela que consta do disposto no artigo
430.º, n.º 1, do CPP (eventualmente em conjugação com o artigo 410.º, n.º 2, do
mesmo diploma, pois aquela remete expressamente para esta), referente à
renovação da prova,
3. Como aliás se pode verificar pelas palavras do Tribunal da Relação de Lisboa:
“a sentença enferma de erro notório na apreciação da prova (...) o que
autorizaria, nos termos dos artigos 430.º, n.º 1 e 410.º, n.º 2, alínea c), do
CPP, a renovação da prova, porém esse mecanismo processual [o mecanismo
processual de renovação da prova!] (...) é perfeitamente dispensável” –
parênteses e sublinhados nossos.
4. Quanto ao segundo problema de inconstitucionalidade: o Tribunal da Relação de
Lisboa entendeu que a sentença da primeira instância enferma de “erro notório na
apreciação da prova” [cfr. artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP] porque,
alegadamente, o cidadão comum, a generalidade das pessoas, facilmente se dará
conta do carácter ofensivo das afirmações do Recorrente.
5. Deste modo, atendendo a um “critério objectivo” (do qual, alegadamente, toda
a gente tem noção) o Recorrente teria (alegadamente) agido com dolo genérico, de
acordo com o juízo do Tribunal da Relação de Lisboa.
6. Para além disso, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que podia conhecer,
oficiosa e imediatamente, e sem necessidade de contraditório, do alegado
fundamento de recurso que se traduz no “erro notório na apreciação da prova”,
constante da sentença de primeira instância (cfr. artigo 410.º, n.º 2, alínea
c), do CPP), e, em consequência, podia decidir, oficiosa e imediatamente, e sem
necessidade de contraditório, que o Recorrente agiu com dolo genérico.
7. Assim, o Tribunal da Relação de Lisboa, aplicou efectivamente o artigo 410,
n.º 2, alínea c), do CPP, ao considerar que a sentença de primeira instância
enferma de “erro notório na apreciação da prova” e que, em consequência,
atendendo a um “critério objectivo”, o Recorrente agiu com dolo genérico.
8. Tal aplicação, pelo menos, teria sido realizada de forma implícita (a qual é
suficiente para fundar o pedido de apreciação da constitucionalidade da norma em
causa).
9. Quanto ao terceiro problema de inconstitucionalidade: no acórdão recorrido, a
aplicação da norma constante do artigo 514.º, n.º 1, do CPC, visa,
indistintamente, a prova dos danos e a prova da gravidade dos danos.
10. Tal circunstância é aliás justificada, tendo em consideração que, de acordo
com o artigo 496.º do Código Civil, apenas se pode atender “aos danos não
patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, pelo que,
para efeitos de ressarcimento de danos morais, provar a existência do dano é,
simultaneamente, provar a sua gravidade, pois apenas os danos que ultrapassem o
limiar da gravidade poderão ser considerados para efeitos indemnizatórios.
11. Independentemente de a aplicação do artigo 514.º, n.º 1, do CPC, no acórdão
recorrido, estar referida ao dano ou à gravidade do dano (e está referida a
ambos), a verdade é que, quer num caso, quer noutro, o Tribunal interpretou a
referida disposição legal, no sentido de que pode conhecer da alegada
“notoriedade” quanto ao dano e sua gravidade, sem necessidade de conceder ao
Demandado a possibilidade de se pronunciar sobre a questão em causa e
contraditar uma eventual solução que o prejudique,
12. O que redunda em norma inconstitucional, tendo sido exactamente a declaração
de inconstitucionalidade dessa mesma norma que foi requerida pelo Recorrente.
13. Mesmo que (em tese) se entendesse que o acórdão recorrido não aplica as
normas supra referidas, ou seja, as normas constantes do disposto no artigo
410.º, n.º 2, alínea c), do CPP e do disposto no artigo 514.º, n.º 1, do CPC
(entendimento esse que não se admite como possível), ainda assim, nesse caso,
sempre teria de se entender que o acórdão recorrido aplica uma norma
(inconstitucional), que foi criada pelo próprio Tribunal da Relação de Lisboa, e
que resulta da interpretação e aplicação ilegítima do próprio princípio do
contraditório, no sentido de que o Tribunal pode conhecer, a título oficioso, de
questões relevantes para a determinação da (alegada) responsabilidade civil do
Demandado, sem necessidade de conceder ao Demandado a possibilidade de se
pronunciar sobre essas mesmas questões e contraditar uma eventual solução que o
prejudique, em clara transgressão do disposto no artigos artigo 32.º, n.ºs 1 e 5
e no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
14. O requerimento de interposição de recurso dos presentes autos inclui,
necessariamente, a apreciação da inconstitucionalidade dessa mesma (suposta)
norma, pois aquilo que, no presente processo, o Demandado (ora Recorrente)
pretende ver apreciado é, exactamente, a inconstitucionalidade da norma que
permite o conhecimento de oficioso de questões novas e (alegadamente)
“notórias”, à margem da observância do princípio do contraditório.
Face ao exposto, deverá a decisão sumária que recusou conhecer o objecto do
presente recurso ser revogada, e substituída por outra que admita o mesmo».
4. Os recorridos não responderam. O Ministério Público, notificado do
requerimento de reclamação para a conferência, pronunciou-se pela forma
seguinte:
«1 – A presente reclamação – circunscrita pelo reclamante à solução dada pela
decisão reclamada a três das várias questões de constitucionalidade suscitadas –
é, a nosso ver, claramente improcedente, aderindo-se inteiramente ao
entendimento subjacente à douta decisão ora reclamada.
2 – Assim – e quanto à questão elencada sob a alínea b) do artigo 1° da presente
reclamação, é manifesto que a norma elencada como objecto de recurso nunca
poderia constituir “base normativa” da questão de constitucionalidade colocada:
é que esta, como é óbvio, por atinente à problemática do dolo e sua demonstração
em juízo, nunca poderia ser reportada apenas a uma norma de cariz estritamente
procedimental, como o é a que define e delimita os poderes cognitivos do
Tribunal “ad quem”, em fase de recurso: a do artigo 410°, nº 2, alínea c) do
Código de Processo Penal.
3 – Daí que – como decorre, aliás, claramente do acórdão recorrido – a solução
jurídica alcançada pela Relação tenha passado – não obviamente pela norma
processual indicada – mas pela interpretação e aplicação da norma material que
consta do artigo 180°, n° 1, do Código Penal, que o reclamante não curou de
incluir no objecto do recurso, apesar de manifestamente constituir a verdadeira
“ratio decidendi” da solução jurídica alcançada pela Relação.
4 – Relativamente às outras duas questões de constitucionalidade – enunciadas
sob as alíneas a) e c) – elas têm em comum a delimitação pelo recorrente de uma
interpretação normativa tida por frontalmente colidente com o respeito pelos
princípios do contraditório e da proibição da prolação de “decisões-surpresa”.
5 – É, porém, manifesto que – na concreta situação procedimental dos autos – tal
interpretação não foi – nem poderia ter sido – feita: olvida, efectivamente, o
reclamante que o objecto do recurso interposto perante a Relação versava
precisamente sobre as matérias que subjazem a tais questões, tendo naturalmente
o ora reclamante tido plena oportunidade processual para, ao contraditar as
razões aduzidas pelos recorrentes, se pronunciar sobre tais matérias, como
efectivamente fez na sua contramotivação do recurso.
6 – Na verdade, a impugnação deduzida pelos demandantes quanto à sentença da 1ª
instância versava precisamente sobre a adequação das expressões ofensivas
utilizadas para causarem aos lesados “emoção, mágoa, sofrimento moral e
psicológico”, tendo naturalmente o recorrido plena oportunidade – aliás, extensa
e efectivamente aproveitada na contramotivação do recurso – para se opor a tal
linha argumentativa dos recorrentes.
7 – E sendo evidente, neste circunstancialismo processual, que a Relação não
realizou nem poderia ter realizado, qualquer interpretação normativa violadora
do princípio do contraditório.
8 – O mesmo ocorre manifestamente com a questão reportada à norma constante do
artigo 514°, n° 1, do Código de Processo Civil: é que – independentemente da
questão de saber se a “dispensa de prova”, com fundamento na “notariedade” dos
factos, se reporta ao “dano moral” ou à sua “gravidade” – o que é incontroverso
é que tal norma não foi aplicada com o sentido de precludir o contraditório do
demandado, o que foi, aliás, efectivamente exercitado sobre tal matéria, no
âmbito da contramotivação que apresentou (cf., conclusões 14°/18°, a fls. 773)».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Importa, desde logo, precisar que a este Tribunal não cabe pronunciar-se
sobre a matéria versada nos nºs 13 e 14 das conclusões do reclamante (cf.,
ainda, fls. 1116 a 1122 dos presentes autos), uma vez que a questão de
constitucionalidade aí formulada não foi objecto da decisão sumária agora
reclamada.
Assim, e face à delimitação operada pelo recorrente (fls. 1103 a 1105 dos
presentes autos), a presente reclamação tem como objecto o decidido quanto ao
artigo 410º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), interpretado no
sentido de que o tribunal pode conhecer oficiosamente de um eventual erro
notório na apreciação da prova, sem necessidade de conceder ao demandado a
possibilidade de se pronunciar sobre a questão em causa e contraditar uma
eventual solução que o prejudique; quanto ao mesmo artigo 410º, nº 2, alínea c),
do CPP, agora interpretado no sentido de admitir que o Tribunal possa dar como
‘provado’ que o demandado agiu com dolo genérico, com fundamento numa presunção
de dolo; e, ainda, quanto ao artigo 514º, nº 1, do Código de Processo Civil,
interpretado no sentido de que os danos sofridos pelos demandantes eram factos
notórios, pelo que dispensavam alegação e prova ou no sentido de que a alegação
e prova dos factos alegadamente notórios não é necessária, podendo estes ser
conhecidos pelo Tribunal de instância, a título oficioso, e sem necessidade de
conceder ao demandado a possibilidade de se pronunciar sobre a questão em causa
e contraditar uma eventual solução que o prejudique.
Por outras palavras, esta reclamação tem como objecto a decisão de não
conhecimento do objecto do recurso, com fundamento na não verificação de um dos
requisitos do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC: a
aplicação, pela decisão recorrida, como ratio decidendi, das normas cuja
inconstitucionalidade o recorrente pretende que o Tribunal aprecie.
2. O reclamante sustenta que o artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP,
interpretado no sentido de que o tribunal pode conhecer oficiosamente de um
eventual erro notório na apreciação da prova, sem necessidade de conceder ao
demandado a possibilidade de se pronunciar sobre a questão em causa e
contraditar uma eventual solução que o prejudique foi efectivamente aplicado no
acórdão recorrido. Conclui, em abono deste entendimento, que a norma que “acabou
por ser afastada pelo Tribunal da Relação de Lisboa foi, apenas e tão só, aquela
que consta do disposto no artigo 430º, nº 1, do CPP”, podendo, inclusivamente
ler-se em tal acórdão que “a sentença enferma de erro notório na apreciação da
prova”.
É irrefutável que o Tribunal da Relação de Lisboa, interpretando o artigo 410º,
nº 2, alínea c), do CPP no sentido de ser de conhecimento oficioso o vício aí
previsto (cf. fl. 844), conclui que a sentença recorrida enferma de erro notório
na apreciação da prova. Porém, não aplica a norma em causa em razão da posição a
que adere quanto à questão de saber se o artigo 180º, nº 1, do Código Penal
exige que o agente da prática do crime actue com dolo específico ou apenas com
dolo genérico. Na medida em que adere à segunda alternativa – para o
preenchimento do tipo basta o dolo genérico do agente –, o acórdão recorrido
conclui que o mecanismo da renovação da prova, previsto no artigo 430º do CPP, é
dispensável. É o que se extrai da decisão quando se afirma, expressamente, que
tal mecanismo “é perfeitamente dispensável, face ao que se reputa serem, e o
respectivo conteúdo, os elementos constitutivos do crime de difamação” (cf. fl.
851 e ss.), nomeadamente por o preenchimento deste tipo legal de crime se bastar
com o dolo genérico (cf. 851 e s.). Mas da decisão recorrida extrai-se, ainda,
que, a ter lugar, a renovação da prova ocorreria pela verificação de um dos
vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, o que é permitido pelo artigo
430º, nº 1, do CPP, em alternativa ao reenvio do processo. Por verificação do
vício previsto na alínea c), já que, no juízo do Tribunal, a sentença recorrida
“enferma de erro notório na apreciação da prova ao ilaccionar-se que não subjaz
aos factos um conteúdo lesivo dos demandantes na sua honra e consideração”, o
que “autorizaria” a renovação da prova para “pesquisa da intenção do demandado
civil” (cf. fl. 851).
Ou seja, para dar como preenchido o tipo legal de crime previsto no artigo 180º,
nº 1, do Código Penal, o Tribunal da Relação de Lisboa bastou-se com os factos
dados como provados em primeira instância (fl. 839 e ss.), sem qualquer
consideração do vício previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º A apreciação
do facto dado como não provado, relativamente ao qual foi requerida a renovação
da prova pelos ora recorridos – o demandado ao escrever as frases reproduzidas
quis desrespeitar, achincalhar e ofender os demandantes, quer como pessoas mas
também como Magistrados do Ministério Público no exercício das suas funções (cf.
fls. 697 e 741) –, tornou-se irrelevante, por contender com o dolo específico, o
que arrastou a não aplicação daquela alínea do CPP.
3. O reclamante sustenta também que o artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP,
interpretado no sentido de admitir que o Tribunal possa dar como ‘provado’ que o
demandado agiu com dolo genérico, com fundamento numa presunção de dolo, foi
efectivamente aplicado, pelo menos de forma implícita, pelo acórdão recorrido.
Para além do já dito no ponto anterior quanto à não aplicação do artigo 410º, nº
2, alínea c), do CPP e, consequentemente, quanto ao não alargamento dos factos
dados como provados em primeira instância – o Tribunal da Relação de Lisboa
decidiu sem alterar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida
–, reafirme-se que a interpretação identificada pelo recorrente não encontra
qualquer fundamento no texto da decisão recorrida (cf. fl. 852 e s.) nem, aliás,
no teor verbal do mencionado preceito (sobre a exigência de ser indicado “um
sentido que seja possível referir ao teor verbal do texto do preceito em causa”,
cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 367/94, Diário da República, II Série,
de 7 de Setembro de 1994). De resto, como bem destaca o Ministério Público, o
artigo 410º, nº 2, alínea c), «nunca poderia constituir “base normativa” da
questão de constitucionalidade colocada: é que esta, como é óbvio por atinente à
problemática do dolo e sua demonstração em juízo, nunca poderia ser reportada
apenas a uma norma de cariz estritamente procedimental».
4. O reclamante sustenta, ainda, que o artigo 514º, nº 1, do Código de Processo
Civil, interpretado no sentido de que os danos sofridos pelos demandantes eram
factos notórios, pelo que dispensavam alegação e prova ou no sentido de que a
alegação e prova dos factos alegadamente notórios não é necessária, podendo
estes ser conhecidos pelo Tribunal de instância, a título oficioso, e sem
necessidade de conceder ao demandado a possibilidade de se pronunciar sobre a
questão em causa e contraditar uma eventual solução que o prejudique, foi
efectivamente aplicado pelo tribunal recorrido.
Ainda que o artigo 514º, nº 1, do Código de Processo Civil vise,
indistintamente, a prova do dano e a prova da gravidade do dano, o que é facto é
que não foi aplicado indistintamente, diferentemente do que é defendido pelo
reclamante: num primeiro momento o acórdão recorrido centrou-se na prova do
dano, sem recurso ao disposto naquele artigo, e, num segundo, na prova da
gravidade do dano, recorrendo ao consagrado naquela disposição. Autonomização
que não permite concluir que “provar a existência do dano é, simultaneamente,
provar a sua gravidade”.
O Tribunal da Relação de Lisboa, depois de afirmar que ao lesado incumbe provar
os factos constitutivos do direito à indemnização e de realçar que o dano que
merece indemnização é o que comporta uma dignidade bastante que não pode
cingir-se ao mero incómodo, conclui que houve dano e não mero incómodo, em razão
do que é dito na sentença recorrida: “é inquestionável que ultrapassam o mero
incómodo as consequências das imputações: ‘sofrimento moral’, diz-se na sentença
recorrida, porque os demandantes se sentiram profundamente ofendidos, até porque
atesta o seu ‘curriculum’ são pessoas de gabarito profissional reconhecido, um
deles Procurador-Geral-Adjunto Distrital, de Lisboa e Director da Polícia
Judiciária, Magistrados do M.º P.º, afeiçoados ao cumprimento da lei, honestos e
competentes”. De seguida, num segundo momento, depois de afirmar que a prova da
gravidade do dano, para merecer tutela da lei, incumbe ao lesado, aquele
Tribunal ressalva as situações em que “a experiência da vida transforma em
factos notórios certos casos concretos de dor moral, pelo que se lhes aplica o
art.º 514º, nº 1, do CPC, referentes aos factos notórios, dispensando alegação e
prova”.
Resta concluir, contrariando o sustentado na reclamação, que as normas que o
recorrente pretendia ver apreciadas, do ponto de vista jurídico-constitucional,
não foram aplicadas, como ratio decidendi, pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão sumária proferida.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício