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Processo n.º 299/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, foram
pronunciados os ora recorrentes A., B. e C. pela prática, em co-autoria
material, de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada. Tendo
arguido a prescrição do procedimento criminal, foi a mesma indeferida por
despacho de 10.10.2001 (fls.606 e sgs.). Inconformados, recorreram, tendo
apresentado a motivação em 31.10.2001 (fls.611); o recurso foi admitido em
29.11.2001.
2. Por sentença de 15 de Julho de 2002, do Tribunal Judicial da Comarca de Seia,
foi a pronúncia julgada improcedente e os réus absolvidos. Considerando não
estar prescrito o procedimento judicial (apreciação que fez a título oficioso,
já que o recurso do Ministério Público o não questionava) e ter havido erro
notório na apreciação dos factos, o Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão
de Março de 2003, mandou repetir o julgamento.
3. Marcada a data para novo julgamento, vieram, entretanto, os ora recorrentes
aos autos arguir a prescrição. Por despacho de 29.10.2003 (fls. 1411 e sgs.),
foi essa arguição indeferida. Inconformados, recorreram, tendo alegado em
12.11.2003 (fls. 1419 e sgs); o recurso foi admitido em 20.11.2003 (fls. 1434).
4. Na audiência de discussão e julgamento que teve lugar a 30.06.2004, os
arguidos suscitaram, uma vez mais, a questão da prescrição. A pretensão foi
indeferida. Desta decisão foi interposto recurso (fls. 1541), que ficou
aguardando a motivação no prazo de 15 dias. A motivação foi junta em 15 de Julho
de 2004 (fls. 1556 e sgs.).
5. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Seia, proferida em 26 de Julho
de 2004 (fls. 1569 a 1601) foram, então, os ora recorrentes condenados na pena
de dois anos de prisão, ficando a respectiva execução suspensa por um período de
quatro anos, na condição de – solidariamente – pagarem ao Estado a quantia de
seiscentos e noventa e dois mil quinhentos e dois euros e oitenta e oito
cêntimos, no prazo de dois anos. Inconformados com esta decisão, os arguidos
recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra (fls.1618), tendo afirmado na
respectiva alegação (fls. 1619 a 1641):
“[...] 156º - Por fim entendem os recorrentes convicta e conscientemente que o
procedimento criminal contra si instaurado se encontra prescrito tomando em
conta os fundamentos dos recursos apresentados em 31/10/01 e fundamentalmente em
12/11/03, recursos esses que irão subir afinal [sic] e cujo conteúdo aqui se dá
por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos [...]
Conclusões
1 - O acórdão recorrido padece dos vícios a que aludem as alíneas b) e c) do n.º
2 do art.410 do CPP, designadamente de contradição insanável da fundamentação e
erro notório na apreciação da prova;
2 – Pelo que se o douto acórdão recorrido não padece[sse] de tais vícios
deveriam os arguidos ser[] absolvidos e não condenados como o foram;
3- Assim tal acórdão é nulo e de nenhum efeito, como tal deverá ser revogado;
4- Ou quando assim se não entender deverá reenviar-se o processo para novo
julgamento para a reapreciação da prova;
5- Por outro lado verifica-se que no acórdão recorrido houve uma completa
ausência de juízo crítico sobre o depoimento das testemunhas que tinham
conhecimento dos factos bem como do relatório pericial de fls.1128 a 1186;
6- Tomando em conta o depoimento dos arguidos e das testemunhas bem como o teor
do relatório pericial de fls.1128 a 1186 não há elementos nos autos
perfeitamente seguros e concludentes que permitam ao tribunal dar como provado
que houve um recebimento efectivo das quantias a que se referem os pontos 6 e 25
da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida;
7- Pelo que se impunha que os mesmos arguidos fossem absolvidos pelo crime [por
que] estavam pronunciados;
8 - Já que em concreto não se verificam os elementos típicos desse crime
designadamente qual o montante certo e exacto do dinheiro objecto da apropriação
e ainda o elemento do dolo, já que no caso em análise o mesmo é inexistente.
9- Por outro lado verifica-se uma situação de causa de exclusão de ilicitude, já
que a situação em análise se enquadra no disposto no artigo 36 n.º 1 do CP.
10- Na hipótese de se vir a entender que os recorrentes cometeram o crime, a
pena de prisão não deverá ficar condicionada ao pagamento, tomando em conta os
circunstancialismos que estiveram na origem de tal situação económica dos
recorrentes.
11 - Sendo que o procedimento criminal relativamente aos factos que ocorreram de
Abril de 1994 a Junho de 1995 estão previstos, tomando em conta os fundamentos
invocados nas alegações de recurso de 31/10/01 e fundamentalmente de 11/12/03,
recursos esses que subirão a[]final.
12- Finalmente e porque a situação em concreto não se enquadra ao abrigo do
disposto no artigo 30 n.º 23 do C.P., os recorrentes cometeram não um crime sob
a forma continuada mas sim 2 crimes, um referente ao período de Abril de 1994 a
Junho de 1995 e outro de Maio de 1997 a Agosto de 1997, não obstante os factos a
que corresponde aquele primeiro período estarem prescritos tomando em conta o
vertido na conclusão anterior.
13 – Neste sentido o acórdão recorrido violou ou não fez aplicação correcta do
disposto nos artigos 24 do DL. 20-A190, 13, 14, 30 n.º 2, 36 n.º 1 e 51 do C.P.,
374, 410 e 428 do C.P.P., 2, 20 e 32 da Constituição da República
Portuguesa.[...]”
6. Por despacho de 2 de Dezembro de 2004 (fls. 1894), este recurso foi admitido.
Pelo mesmo despacho, foi também admitido o recurso entretanto interposto, a fls.
1541, da decisão proferida, na audiência de discussão e julgamento de 30 de
Junho de 2004, sobre a prescrição e a condenação em taxa de justiça.
7. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 15 de Junho de 2005, após
decidir não tomar conhecimento do recurso que os arguidos haviam interposto a
fls. 1541, com fundamento em que os mesmos “não se referem nas conclusões à
manutenção ou não da apreciação” desse recurso, como, em seu entender, exige o
artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Civil, e sem nada dizer quanto ao
recurso de 31.10.2001 (fls. 611), admitido em 29.11.2001 (fls. 637), nem sobre o
recurso de 11.12.2003 (fls. 1419), admitido em 20.11.2003 (fls. 1434), decidiu
negar provimento ao recurso interposto da decisão final.
8. Inconformados, vieram os recorrentes requerer a aclaração deste acórdão,
dizendo, nomeadamente, o seguinte:
“[...] 1 Embora não figurando expressamente nas conclusões finais da motivação,
a referência especificada ao recurso interlocutório a verdade é que não existem
dúvidas, de que, quer ao longo da motivação, quer nas conclusões, ressalta que
os recorrentes mantêm interesse na apreciação desse recurso.
2 Basta, para tanto tomar em linha de conta o alegado pelos recorrentes no
artigo 156 das suas a1egações de recurso bem como o teor do n.º 11 das
conclusões dessa mesma motivação.
3 Dignar-se-á, assim, V. Exa. esclarecer se o passo da decisão constante do 2°
parágrafo da 1ª folha, quer significar o entendimento de que só a especificada e
expressa manifestação do interesse na subida satisfaria o preenchimento da
estatuição do n.º 5 do artigo 412. do C.P.P..
4 Isto considerando, além do mais, que a prescrição é do conhecimento oficioso e
nem seria necessário os recorrentes colocarem a questão para o Tribunal ter de
se debruçar sobre a mesma.
5 Acresce que tal passo (cujo esclarecimento se pretende) parece contraditório
com o conteúdo da transcrição que se faz (a fls.3 ao cimo) das conclusões das
alegações, -como segue “sendo que o procedimento criminal relativamente aos
factos que ocorreram de Abril de 1994 a Junho de 1995 estão prescritos (erro
material, cuja correcção igualmente se solicita para prescrição) tomando em
conta os fundamentos invocados nas alegações de recurso de 31/10/01 e
fundamentalmente de 11/12/03, recursos esses que subirão a final”.
6 Deste transcrito passo parece resultar o manifesto interesse dos recorrentes
na subida desse recurso interlocutório.
7 Se assim não se entender [] (e V, Exa. dignar-se-á esclarecer) então e na
esteira do acórdão n.º 320/2002 do Tribunal Constitucional, de 9 de Julho de
2002 (in DR, 1ª série, de 07/10/2002), haveria uma interpretação do preceito em
causa (412, n.º 5) que afectaria desproporcionadamente o direito de defesa dos
recorrentes na dimensão do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32, n.º 1
da Constituição [...]”
9. O Tribunal indeferiu o requerido, afirmando o seguinte:
“Tendo sido proferido o acórdão de fls.1935 e segs. vieram os arguidos solicitar
o respectivo esclarecimento, referindo que, embora não expressamente, não
renunciaram ao recurso interlocutório intentado, pelo que referiram no n.º11 das
conclusões que formularam.
Neste referem que Sendo que o procedimento criminal relativamente aos factos que
ocorreram de Abril de 1994 a Junho de 1995 estão previstos, tomando em conta os
fundamentos invocados nas Alegações de recurso de 31/10/01 e fundamentalmente de
11/12/03, recursos esses que subirão afinal.
Mas, nas conclusões não indicam que pretendem a apreciação de tal recurso. Daí
que se tenha optado pela solução defendida.
A qual resulta do teor do n.º 5 do art.412° do Cod. Proc. Penal, onde se estatui
que havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente nas
conclusões, quais o que mantêm interesse (sublinhado nosso). Como refere Maia
Gonçalves a falta de especificação implica a desistência dos recursos retidos
que não são especificados ('Código de Processo Penal', 13ª ed., pag.820). Outra
solução não pode resultar do próprio texto do normativo em questão.
E não se verifica que através dele se mostrem afectadas as garantias de defesa
dos recorrentes, sendo que o acórdão do Tribunal Constitucional a que se referem
não se reporta ao normativo em questão, mas ao n.º 2 do mesmo artigo [...]”.
10. Foi então suscitada pelos recorrentes a nulidade dos acórdãos de 15 de Junho
de 2005, bem como do que desatendeu a aclaração, por omissão de pronúncia sobre
a questão da prescrição do procedimento criminal. Por acórdão de 1 de Fevereiro
de 2006, o Tribunal da Relação de Coimbra, após afirmar que “é certo que os
recorrentes suscitaram a questão da prescrição do procedimento criminal, que não
foi analisada, nem o devia ser”, reproduz integralmente o acórdão de
indeferimento da aclaração e conclui dizendo apenas o seguinte: “Pelo que não há
nada a esclarecer, indeferindo-se o requerido, não se verificando, pois,
qualquer omissão de pronúncia. Custas [...]”.
11. Vieram, então, os recorrentes, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º
da LTC, interpor o presente recurso, através de um requerimento que tem o
seguinte teor:
“[...] I - DECISÃO JUDICIAL EM CAUSA:
[...]
4° Os ora Recorrentes entendem (e supõem que correctamente) que o Acórdão do
Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de Junho de 2005 (bem como o Acórdão do
Tribunal Colectivo que aquele confirmou) fizeram uma interpretação e aplicação
violadora da Constituição das normas legais que adiante se referirão, pelo que
incorrem na previsão da alínea b) do n.° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal
Constitucional.
II - PRIMEIRA INCONSTITUCIONALIDADE:
5° Assim, e desde logo, as decisões judiciais que condenaram os ora Recorrentes
consideraram-nos incursos nos ilícitos p. e p. pelo artigo 24° do RJIFNA
(Decreto-lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção dada pelo Decreto-lei
n.º 394/93, de 24 de Novembro).
6° E consideraram suficiente, para basear essa condenação, a simples não entrega
das prestações tributárias, não exigindo, nem demonstrando, o recebimento do
dinheiro por título que produzisse, para aquele que recebeu, a obrigação de
restituir a mesma coisa ou coisa equivalente. Ora,
7° Essa interpretação do citado artigo 24° do RJIFNA é inconstitucional, por
violação, entre outros, dos preceitos do artigo 165°, nos 1, alínea c), 2 e 4 e
artigo 29° da CRP.
8° Com efeito, o Decreto-lei n.º 20-A/90 foi elaborado com base na autorização
legislativa concedida pela lei n.º 88/89, de 11 de Setembro, que expressamente
referia que a definição dos ilícitos fiscais deveria respeitar o enquadramento e
o âmbito dos crimes semelhantes definidos no Código Penal (quanto ao abuso de
confiança, o então artigo 300°).
9° Este artigo 300° do Código Penal (como o actual artigo 205°) exigia, para a
verificação do crime de abuso de confiança, a apropriação total ou parcial da
coisa entregue por um título que obrigue a restituir ou dar-lhe um destino
determinado, e não uma simples não entrega de uma coisa que até ficou
demonstrado (pelo menos em relação a parte dos valores em causa) não ter sido
recebida pelos Réus, à data da prática da alegada infracção.
10° Ao fazerem, como efectivamente fizeram, uma interpretação do referido artigo
24° do RJIFNA (que aliás, e após a alteração produzida pelo Decreto-lei n.º
433/93, expressamente refere o vocábulo “apropriar”) que subsume no respectivo
arquétipo as condutas traduzidas na não entrega da prestação tributária, as
decisões judiciais em causa, para além de fazerem uma incriminação despida de
qualquer juízo de censura ético-social, raiando assim o ilícito administrativo,
actuaram uma interpretação inconstitucional do preceito daquele artigo 24° ou,
se quisermos, elevaram este preceito à categoria de norma organicamente
inconstitucional, já que, embora de forma indirecta, criaram um novo tipo legal
de crime que pretenderam integrar em norma promanada do Executivo, que assim
teria actuado fora do âmbito da autorização legislativa concedida e invadido,
consequentemente, a competência da Assembleia da República.
III - SEGUNDA INCONSTITUCIONALIDADE:
11° A segunda inconstitucionalidade actuada pelo referido Acórdão prende-se com
a desproporcionada restrição do direito de defesa dos arguidos, na dimensão do
direito ao recurso, garantido pelo n.º 1 do artigo 32° da CRP .
12° Na verdade, e conforme expressamente se transcreveu no dito Acórdão da
Relação de Coimbra (pág. 3 do mesmo) no n.º 11 das conclusões das alegações de
recurso, escreveram os Recorrentes: “Sendo que o procedimento criminal
relativamente aos factos que ocorreram de Abril de 1994 a Junho de 1995 estão
prescritos (escreveu-se, por erro dactilográfico, previstos), tomando em conta
os fundamentos invocados nas alegações de recurso de 31/10/01 e fundamentalmente
de 11/12/03, recursos esses que subirão a final” (sublinhado nosso).
13° Não obstante aquilo que se deixa referido no número anterior, no Acórdão da
Relação de Coimbra em apreço escreve-se, logo no início, o seguinte: “Como se
verifica pelo despacho de fls. 1894 dos autos, foi admitido o recurso interposto
a fls. 1541 (trata-se do recurso de 11/12/03 referido em 11 das conclusões), o
qual foi mandado subir com a decisão final. Proferida esta, os arguidos
interpuseram recurso. Todavia não se referem nas conclusões à manutenção ou não
da apreciação do anterior recurso.”
14° E, com isto, o Tribunal da Relação não apreciou o recurso acerca da
prescrição do procedimento criminal, interposto, alegado e admitido, e referido
expressamente, nos termos já transcritos no n.º 11 das alegações de recurso do
Acórdão final do Tribunal de 1ª Instância.
15° Ao não fazê-lo, o Tribunal da Relação actuou uma interpretação
inconstitucional do n.º 5 do artigo 412° do Código de Processo Penal, claramente
violadora do artigo 32° da CRP.
16° Nesse sentido, o Tribunal Constitucional considerou já inconstitucionais -
por violação do disposto no n.º 1 do artigo 32° da CRP - os artigos 412°, n.º 1
e 420°, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de a
falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do
recurso interposto pelo arguido, sem a formulação de convite ao aperfeiçoamento
dessas conclusões (Acórdãos n.º 193/97, in DR. n.º 43/99, 2ª Série, de 26/03/99
e 417/99- inédito).
17° E, por Acórdão de 21 de Dezembro de 2004 proferido no Processo n.º 701/04,
da 2ª Secção, do Tribunal Constitucional, esse Alto Tribunal julgou “[...]
inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32°, n.º 1
e 20°, n.º 4, parte final, da Constituição, o artigo 412°, n.° 5, do Código de
Processo Penal, interpretado no sentido de que a exigência da especificação dos
recursos retidos em que o recorrente mantém interesse, constante do preceito,
também é obrigatória, sob pena de preclusão do seu conhecimento nos casos em que
o despacho de admissão do recurso interlocutório é proferido depois da própria
apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do processo
[...]”
18° Ora, in casu, em que os Recorrentes referiram, nas conclusões da sua
motivação de recurso, que o recurso interlocutório (deveria) subir a final
(“subirão a final” é a expressão utilizada), há uma clara violação do princípio
da proporcionalidade, consagrada no artigo 18° da CRP, com referência ao direito
de acesso à justiça e aos tribunais, consignado no artigo 20° da CRP, na
interpretação actuada pelo Tribunal da Relação de Coimbra do artigo 412°, n.º 5
do Código de Processo Penal que se traduziu na liminar rejeição do recurso
interlocutório.
19° “Padeceria ainda, de inconstitucionalidade a interpretação consubstanciada
nessa rejeição liminar que assim assentaria em critérios de índole
desproporcionadamente formalista, desligando a avaliação do cumprimento adequado
de tal ónus pelos Recorrentes de um critério de natureza funcional, ligado
decisivamente, não aos termos literais utilizados nas conclusões, mas à
enunciação inteligível e concludente, de uma verdadeira questão de direito,
ligada ao momento aplicativo de certas normas, susceptível de integrar os
poderes cognitivos e decisórios de um tribunal de revista” - in Acórdão do
Tribunal Constitucional n.° 120/02, de 14/03/2002, in site
www.tribunalconstitucional.pt.
20° E se isto é assim em termos gerais, com redobrada pertinência o é no caso
dos autos, em que estamos perante uma questão que se traduz na consideração da
prescrição do procedimento criminal, que é do conhecimento oficioso do Tribunal,
o qual, tendo deixado de apreciá-la, não só afectou as garantias de defesa dos
RR., mas actuou, ainda, uma violação do direito de acesso à justiça e aos
tribunais, consignado no artigo 20° da CRP .
21° E não é despiciendo recordar que o primeiro acusado (e julgado) crime de
abuso de confiança fiscal reporta-se ao período até Junho de 1995, data esta
anterior à entrada em vigor (1 de Outubro de 1995) da reforma operada pelo
Decreto-lei n.º 48/95, de 15 de Março do Código Penal de 1982.
Na redacção do Código Penal, resultante do Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de
Setembro, e em crime a que fosse aplicável pena com limite máximo de cinco anos
de prisão (é o caso), o procedimento criminal extingue-se, por efeito da
prescrição, logo que, sobre a prática do crime sejam decorridos cinco anos, o
que resultava do seu artigo 117°, n.º 1, alíneas b) e c).
22° Do mesmo passo que, “instaurado procedimento criminal na vigência do Código
de Processo Penal de 1987, por crimes praticados antes de 1 de Outubro de 1995,
(apenas) a notificação ao arguido do despacho que designe dia para o julgamento,
proferido nos termos dos artigos 311 o a 313° daquele diploma [. . . ] suspende
e interrompe a prescrição do procedimento criminal, não tendo essa virtualidade
a tomada de declarações do arguido” - in Acórdão do Pleno das Secções Criminais
do ST J, in Processo 2249/2000, 3a Secção, in DR I Série A, de 15 de Março de
2001.
IV - TERCEIRA INCONSTITUCIONALIDADE:
23° Não ficam por aqui as inconstitucionalidades actuadas pelo Acórdão em causa.
24° Com efeito, até ao início do julgamento em primeira instância (e mesmo até à
redacção da parte final do respectivo Acórdão), estavam os RR. acusados da
prática de dois crimes de abuso de confiança fiscal na forma continuada.
25° No final (a quando da prolação do Acórdão do Tribunal Colectivo) os RR.
aparecem condenados pela prática de um só crime de abuso de confiança fiscal na
forma continuada.
26° Isso, sem que se tivesse feito (em audiência ou fora dela) qualquer produção
de prova ou a realização de qualquer diligência no sentido de eliminar ou tornar
irrelevante o hiato temporal de quase dois anos (23 meses) que intercedia entre
os dois crimes acusados ou se justificasse, minimamente, o facto real e provado
consubstanciado no pagamento pelos RR., durante aqueles 23 meses e consecutiva e
reiteradamente das contribuições fiscais.
27° E isso sem que aos RR. fosse dada a possibilidade de apresentarem a sua
defesa (com eventual arrolamento de testemunhas e junção e requisição de
documentos, etc.) relativamente à infundada conclusão da prática de um único
crime de abuso de confiança fiscal.
28º Mostram-se, assim, violados os preceitos dos artigos 20° e 32° da CRP, já
que, com aquele procedimento não foram minimamente asseguradas aos RR. as
garantias de defesa quanto à condenação (que apenas surge com esta) pela prática
de um único crime de abuso de confiança fiscal.
V - QUARTA INCONSTITUCIONALIDADE:
29° Considerando aquilo que se deixou escrito sob os artigos 67° a 70° da
motivação do recurso para o Tribunal da Relação, foi levantada, para apreciação,
a interpretação e aplicação de forma inconstitucional da norma do artigo 374°,
n° 2 do Código de Processo Penal.
30° O n° 2 daquele artigo 374° estabelece que: “Ao relatório segue-se a
fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem
como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos
motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
31° Pela análise do Acórdão do Tribunal Colectivo de Seja (objecto daquele
recurso), verifica-se a ausência de exame crítico das provas que serviram para
formar a convicção do Tribunal, já que apenas foi feito um juízo muito vago e
genérico dessas provas.
32° Mostram-se, assim, violados os seguintes preceitos constitucionais:
- Artigo 2°: Princípio do Estado de Direito Democrático;
- Artigo 20°, n° 4: Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva;
- Artigo 32°, n.ºs 1 e 2: Princípios da Presunção de Inocência e da Plenitude
das Garantias de Defesa em Processo Penal.
33° Estes princípios básicos constitucionais acima referidos, foram violados
através da interpretação dada ao artigo 372°, n° 2 do Código de Processo Penal,
a que se fez referência no douto Acórdão recorrido.
VI- APRECIAÇÃO DAS INCONSTITUCIONALIDADES:
34° Para cumprimento do disposto no n° 2 do artigo 75°-A da lei do Tribunal
Constitucional, esclarece-se que:
a) A primeira das apontadas inconstitucionalidades (interpretação extrapolante
do artigo 24° do Decreto-lei n° 394/93) foi levantada pelos RR. nas alegações
orais produzidas quer junto do Tribunal de 1ª Instância (quer no primeiro quer
no segundo julgamento), quer junto do Tribunal da Relação de Coimbra.
Nas alegações escritas de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra,
nomeadamente no n° 13 das respectivas conclusões, refere-se, também, essa
inconstitucional interpretação do citado artigo 24° do Decreto-lei n° 20-A/90.
b) A segunda das mencionadas inconstitucionalidades foi questionada, apenas, no
pedido de aclaração do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra e na arguição
de nulidade desse mesmo Acórdão, uma vez que a mesma inconstitucionalidade
também só surgiu com a prolação desse Acórdão.
c) A terceira inconstitucionalidade foi expressamente colocada, como actuada
pelo Tribunal Colectivo, nas alegações de recurso interposto do respectivo
Acórdão para o Tribunal da Relação de Coimbra.
d) A quarta inconstitucionalidade foi colocada nos aludidos artigos 67° a 70° da
motivação do recurso para a Relação.
VII - CONCLUSÃO:
35° As referidas inconstitucionalidades que afectam o Acórdão do Tribunal da
Relação de Coimbra em apreço (e, também, quanto à primeira, terceira e quarta
inconstitucionalidades, o Acórdão do Tribunal Colectivo), serão confirmadas por
esse Alto Tribunal, determinando a reformulação da decisão em conformidade com o
juízo de inconstitucionalidade.
[...]”.
12. Já neste Tribunal proferiu o relator do processo o seguinte despacho:
“Afirmam os recorrentes, no ponto “III – Segunda Inconstitucionalidade” do
requerimento de interposição de recurso, que “o Tribunal da Relação não apreciou
o recurso acerca da prescrição do procedimento criminal, interposto, alegado e
admitido, e referido expressamente, nos termos já transcritos no n.º 11 das
alegações de recurso do Acórdão final do Tribunal de 1ª Instância. 15° Ao não
fazê-lo, o Tribunal da Relação actuou uma interpretação inconstitucional do n.º
5 do artigo 412° do Código de Processo Penal, claramente violadora do artigo 32°
da CRP.” (itálico aditado). A que se segue a referência a diversos acórdãos
deste Tribunal sobre diferentes normas.
Por outro lado, acrescentam que a inconstitucionalidade foi questionada no
pedido de aclaração do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra. Aí, após terem
escrito que, nas conclusões do recurso, afirmaram: “sendo que o procedimento
criminal relativamente aos factos que ocorreram de Abril de 1994 a Junho de 1995
estão prescritos (erro material, cuja correcção igualmente se solicita, para
prescrição), tomando em conta os fundamentos invocados nas alegações de recurso
de 31/10/01 e fundamentalmente de 11/12/03, recursos esses que subirão a final”,
escrevem o seguinte:
“6 Deste transcrito passo das conclusões parece resultar o manifesto interesse
dos recorrentes na subida desse recurso interlocutório.
7 Se assim não se entender se (e V. Exa dignar-se-à esclarecer), então e na
esteira do acórdão 320/2002 do Tribunal Constitucional, [...] haveria uma
interpretação do preceito em causa (412, n.º 5) que afectaria
desproporcionadamente o direito de defesa dos recorrentes na dimensão do direito
ao recurso, garantido pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição.”
Ora, tendo em atenção o teor do requerimento e daquelas peças processuais, bem
como o facto de vir questionada uma determinada interpretação, convido os
recorrentes, nos termos do n.º 6 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal
Constitucional, a esclarecerem, em termos concisos, claros e perceptíveis, qual
(ou quais) a(s) exacta(s) interpretação (interpretações) normativa(s) da norma
contida n.º 5 do artigo 412° do Código de Processo Penal, cuja
constitucionalidade pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, de tal
modo que, se este Tribunal a(s) vier a julgar desconforme(s) com a Constituição,
a(s) possa enunciar claramente na decisão que proferir. Na verdade, incumbindo
aos recorrentes a definição do objecto do recurso, devem os mesmos, quando
pretendam questionar determinada interpretação normativa de um certo preceito,
explicitar com precisão e clareza essa dimensão normativa, sob pena de, não o
fazendo, transferirem para o Tribunal Constitucional, de forma inaceitável, o
ónus que sobre eles impende, não sendo suficiente, afirmar, como se faz no
requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, que “ao não fazê-lo,
o Tribunal da Relação actuou uma interpretação inconstitucional do n.º 5 do
artigo 412° do Código de Processo Penal, claramente violadora do artigo 32° da
CRP”.
13. Em resposta vieram os recorrentes dizer o seguinte:
“[...] 1. Parafraseando as doutas conclusões do Exmo. Procurador-Geral Adjunto
no processo n.º 599/00, da 2ª Secção do Tribunal Constitucional (Acórdão n.º
102/02, de 14.03.2003), os Recorrentes entendem que a declaração de
inconstitucionalidade que se pretende deveria ser apreciada em termos
semelhantes aos seguintes:
É inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado
no artigo 18°, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais
consignado no artigo 20° e violação do artigo 32°, n.º 1, todos da Constituição
da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 412°, n.º 5 do
Código do Processo Penal que se traduza em facultar ao tribunal ad quem a
liminar rejeição do recurso quando o Recorrente não concretize “apertis verbis”
a sua vontade de subida do recurso interlocutório entretanto interposto,
admitido, preparado e alegado, considerando não ser suficiente para a
manifestação dessa vontade a referência a esse recurso “que subirá a final” com
reprodução do objectivo a que o mesmo recurso se dirige, sem, pelo menos, lhe
facultar previamente o suprimento da assim considerada insuficiência formal.
2° - Padece, ainda, de inconstitucionalidade a interpretação dessa exigência
legal que assente em critérios de índole desproporcionalmente formalista,
desligando a avaliação do cumprimento adequado de tal ónus pelo Recorrente de um
critério de determinação da concreta vontade do mesmo Recorrente, indiciada em
múltiplos elementos constantes dos autos e, nomeadamente, da expressa
referência, nas conclusões do recurso principal, a esse recurso interlocutório
cujas alegações se perfilham e cuja subida a final se menciona
expressamente.[...]”
14. Proferiu, então, o relator o seguinte despacho:
“1. Nos termos do requerimento de interposição do recurso, peça que delimita o
respectivo objecto, afirmam os recorrentes pretender ver apreciada, em primeiro
lugar – “Primeira Inconstitucionalidade” -, a conformidade com a Constituição do
artigo 24° do RJIFNA, na interpretação que considere “suficiente, para basear a
condenação, a simples não entrega das prestações tributárias, não exigindo, nem
demonstrando, o recebimento do dinheiro por título que produzisse, para aquele
que recebeu, a obrigação de restituir a mesma coisa ou coisa equivalente”.
Não pode, porém, nesta parte, conhecer-se do objecto do recurso.
Com efeito, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha
suscitado, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida”, a inconstitucionalidade da norma jurídica – ou, se for o
caso, de uma sua dimensão normativa – que pretende ver apreciada por este
Tribunal. A verdade, porém, é que não resulta dos autos que os recorrentes
tenham suscitado, de modo processualmente adequado perante o Tribunal da Relação
de Coimbra, como deviam, qualquer questão de constitucionalidade normativa,
reportada àquele artigo 24º do RJIFNA. De facto, se atentarmos no teor da
conclusão 13ª da alegação de recurso apresentada perante aquele Tribunal, para a
qual remetem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade,
verificamos que os mesmos não cuidam aí de imputar, como deviam, a violação da
Constituição ao artigo 24º do RJIFNA, mas à própria decisão recorrida que o
aplicou. Para o demonstrar bastará recordar aqui o teor daquela conclusão:
“Neste sentido o acórdão recorrido violou ou não fez aplicação correcta do
disposto nos artigos 24 do DL. 20-A190, 13, 14, 30 n.º 2, 36 n.º 1 e 51 do C.P.,
374, 410 e 428 do C.P.P., 2, 20 e 32 da Constituição da República Portuguesa”.
(Negrito aditado).
Acresce que o mesmo recurso pressupõe igualmente que a norma questionada tenha
sido aplicada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida. Ora, lido o acórdão
recorrido, verifica-se que o mesmo entende “que as quantias declaradas pela
sociedade como tendo sido por si liquidadas a título de IVA correspondem à
verdade e que terão pela mesma sido cobradas”, o que implica, necessariamente,
que a norma em causa não foi interpretada no sentido de que seria “suficiente,
para basear a condenação, a simples não entrega das prestações tributárias”.
Daí que, sem necessidade de maiores considerações, se torne evidente que não
pode conhecer-se, nesta parte, do objecto do presente recurso, já que não estão
presentes, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b)
do n.º 1 do art. 70º da LTC, ao abrigo da qual recorrem.
2. Mas também não é possível conhecer do objecto do recurso na parte em que os
recorrentes se referem ao que designam por “Terceira Inconstitucionalidade” (nºs
23 a 28). E, desde logo, pela razão óbvia de que, neste ponto, nem sequer vem
colocada pelos mesmos, no próprio requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, qualquer questão de constitucionalidade normativa. Com
efeito, os recorrentes não imputam, aqui, a alegada violação da Constituição a
qualquer preceito do ordenamento infraconstitucional (que, aliás, nunca
mencionam) mas sim ao procedimento adoptado pelo Tribunal, o qual, como é
sabido, não é objecto idóneo do recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade por este Tribunal. Suficientemente elucidativo dessa
imputação é o artigo 28º daquele requerimento, que de seguida se transcreve:
“Mostram-se, assim, violados os preceitos dos artigos 20° e 32° da CRP, já que,
com aquele procedimento não foram minimamente asseguradas aos RR. as garantias
de defesa quanto à condenação (que apenas surge com esta) pela prática de um
único crime de abuso de confiança fiscal”. (Negrito aditado).
3. Pretendem ainda os recorrentes – “Quarta Inconstitucionalidade” - que o
Tribunal aprecie a constitucionalidade de uma determinada interpretação
normativa do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, alegadamente por si
identificada nos artigos 67º a 70º da motivação de recurso para o Tribunal da
Relação de Coimbra. Acrescentam, ainda que “pela análise do Acórdão do Tribunal
Colectivo de Seia (objecto daquele recurso), verifica-se a ausência de exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, já que
apenas foi feito um juízo muito vago e genérico dessas provas”, o que conduziria
a que tivessem sido violados diversos preceitos constitucionais. Vejamos.
É o seguinte o teor daqueles artigos 67º a 70º:
“67 Ora em boa verdade e em respeito ao princípio «in dúbio pró reo», uma vez
que o tribunal colectivo não conseguiu obter a certeza dos factos
(designadamente quanto ao montante do IVA efectivamente recebido nos períodos de
1994, 1995 e 1997) tendo assim permanecido a dúvida, necessariamente teria de
decidir em desfavor da acusação, absolvendo os arguidos por falta de prova.
68 Daí que os arguidos aqui recorrentes se sintam injustiçados e como tal mal
julgados pelo facto do acórdão recorrido padecer de vício a que se refere o
artigo 374º, nº 2 do CPP, já que no caso em análise há uma ausência de exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
69 Além de que o douto julgador fez uma interpretação muito vaga e ambígua do
artigo 374º, nº 2 do CPP não fazendo um exame crítico das provas que serviram
para formar a convicção do tribunal através de um juízo vago e genérico.
70 Tal norma jurídica (artigo 374º, nº 2 do CPP) assim interpretada é
inconstitucional por violação dos princípios do Estado de Direito Democrático e
da presunção da inocência dos arguidos e ainda das garantias de defesa dos
arguidos em processo penal de acordo com o disposto nos artigos 2, 20 e 32 da
Constituição da República Portuguesa”.
Da transcrição acabada de fazer resulta evidente que não foi ali colocada, de
modo processualmente adequado, qualquer questão de constitucionalidade normativa
susceptível de integrar o recurso de constitucionalidade que vem interposto.
Aliás, pode desde logo considerar-se que, dadas as referências que os
recorrentes fazem nos artigos 67 e 68 à situação concreta que é objecto dos
autos e ao “juízo muito vago e genérico dessas provas” que referem no
requerimento de interposição do recurso, não estamos, sequer, perante uma
questão de constitucionalidade normativa, mas antes perante uma pretensão –
insusceptível de ser favoravelmente acolhida por este Tribunal – de ver
sindicada pelo Tribunal Constitucional a forma como, no acórdão recorrido, foi
valorada a prova. Mas ainda que, numa interpretação extremamente benevolente, em
exclusivo benefício dos recorrentes, se pudesse admitir que estes pretendiam,
nesse ponto, questionar a compatibilidade com a Constituição de um determinado
critério normativo – em rigor, de uma norma – a verdade é que, então, não
formularam ali, como deviam, com a precisão e clareza que vem sendo exigida por
este Tribunal, a exacta dimensão normativa do preceito que entendem ser
inconstitucional. É que, como este Tribunal tem afirmado repetidamente, nada
obsta a que seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão
normativa de um determinado preceito. Porém, nestes casos, o recorrente tem o
ónus de identificar, de modo claro e perceptível, qual a exacta dimensão
normativa que entende ser inconstitucional. Como se disse, por exemplo, no
Acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30º vol., p.1118.)
“tendo a questão de constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e
perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II
Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma
certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa
interpretação) em termos que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a
Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma a que o
tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários
daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em
causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental”.
Ora, não o tendo feito no local e no momento em que o deveriam fazer, o não
cumprimento deste ónus obsta, só por si, a que, também nesta parte, se possa
conhecer do objecto do recurso.
4. O Tribunal da Relação de Coimbra começa o acórdão ora recorrido com a
seguinte afirmação: “Como se verifica pelo despacho de fls.1894 dos autos, foi
admitido o recurso interposto a fls.1541, o qual foi mandado subir com a decisão
final. Proferida esta, os arguidos interpuseram recurso. Todavia, não se referem
nas conclusões á manutenção ou não da apreciação do anterior recurso. Tal é
obrigatório, por força do disposto no n.º 5 do art.412° do Cod. Proc. Penal,
pelo que se não toma conhecimento de tal recurso.” Daí que os recorrentes
pretendam ver apreciada a constitucionalidade do artigo 412º, nº 5, do Código de
Processo Penal.
Convidados, ao abrigo do disposto no artigo 75º-A da Lei do Tribunal
Constitucional, para esclarecer em termos concisos, claros e perceptíveis, qual
(ou quais) a(s) exacta(s) interpretação (interpretações) normativa(s) da norma
contida n.º 5 do artigo 412° do Código de Processo Penal, cuja
constitucionalidade pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, vieram
os recorrentes dizer que
“[...] entendem que a declaração de inconstitucionalidade que se pretende
deveria ser apreciada em termos semelhantes aos seguintes:
É inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado
no artigo 18°, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais
consignado no artigo 20° e violação do artigo 32°, n.º 1, todos da Constituição
da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 412°, n.º 5 do
Código do Processo Penal que se traduza em facultar ao tribunal ad quem a
liminar rejeição do recurso quando o Recorrente não concretize “apertis verbis”
a sua vontade de subida do recurso interlocutório entretanto interposto,
admitido, preparado e alegado, considerando não ser suficiente para a
manifestação dessa vontade a referência a esse recurso “que subirá a final” com
reprodução do objectivo a que o mesmo recurso se dirige, sem, pelo menos, lhe
facultar previamente o suprimento da assim considerada insuficiência formal.
2° - Padece, ainda, de inconstitucionalidade a interpretação dessa exigência
legal que assente em critérios de índole desproporcionalmente formalista,
desligando a avaliação do cumprimento adequado de tal ónus pelo Recorrente de um
critério de determinação da concreta vontade do mesmo Recorrente, indiciada em
múltiplos elementos constantes dos autos e, nomeadamente, da expressa
referência, nas conclusões do recurso principal, a esse recurso interlocutório
cujas alegações se perfilham e cuja subida a final se menciona expressamente.”
Assim definido pelos recorrentes, como lhes compete, o objecto do presente
recurso, fica, então, este circunscrito apenas à questão de saber se “é
inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no
artigo 18°, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais
consignado no artigo 20° e violação do artigo 32°, n.º 1, todos da Constituição
da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 412°, n.º 5 do
Código do Processo Penal que se traduza em facultar ao tribunal ad quem a
liminar rejeição do recurso quando o Recorrente não concretize “apertis verbis”
a sua vontade de subida do recurso interlocutório entretanto interposto,
admitido, preparado e alegado, considerando não ser suficiente para a
manifestação dessa vontade a referência a esse recurso “que subirá a final” com
reprodução do objectivo a que o mesmo recurso se dirige, sem, pelo menos, lhe
facultar previamente o suprimento da assim considerada insuficiência formal.”
5. Com esta delimitação, notifique-se para alegações.”
15. Concluíram, então, os recorrentes as suas alegações do seguinte modo:
“I — Deve este recurso merecer provimento e, consequentemente, ordenar a reforma
da decisão recorrida (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra já referido) de
acordo com o juízo de Inconstitucionalidade.
II — Este recurso, com efeito, é o meio que o nosso sistema estabelece para
fiscalização da conformidade constitucional das normas aplicadas pelo Tribunal
e, é, assim, restrito à questão da constitucionalidade.
III - A interpretação actuada pelo Tribunal da Relação, da norma do n.° 5 do
artigo 412° do Código de Processo Penal, assentou em critérios de índole
desproporcionadamente formalista, desligando a avaliação do cumprimento adequado
do ónus (aí estabelecido) pelo Recorrente de um critério de determinação da
concreta vontade do mesmo Recorrente, indiciada em múltiplos elementos
constantes dos autos e, nomeadamente, da expressa referência, nas conclusões do
recurso principal, a esse recurso interlocutório cujas alegações se perfilham e
cuja subida a final se menciona expressamente.
IV — Consequentemente, deverá decidir-se, como se espera, que é
inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no
artigo 18°, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais
consignado no artigo 20°, e violação do artigo 32°, n° 1, todos da Constituição
da República Portuguesa, a interpretação normativa do artigo 412°, n° 5 do
Código de Processo Penal que se traduza em facultar ao tribunal ad quem a
liminar rejeição do recurso quando o Recorrente não concretize “apertis verbis”
a sua vontade de subida do recurso interlocutório entretanto interposto,
admitido, preparado e alegado, considerando não ser suficiente para a
manifestação dessa vontade a referência a esse recurso que subirá a final” com
reprodução do objectivo a que o mesmo recurso se dirige, sem, pelo menos, lhe
facultar previamente o suprimento da assim considerada insuficiência formal.
16. Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente, disse o
Ministério Público, ora recorrido, a concluir:
“1 – O ónus processual, imposto pelo artigo 412º, nº 5, do Código de Processo
Penal ao recorrente, tem na sua base os princípios da cooperação e da economia
processual, cabendo ao recorrente que impugna a decisão final alertar o tribunal
para a existência, ao longo da tramitação do processo, de recursos
interlocutórios retidos e manifestar a vontade em os ver ainda apreciados, por
subsistir interesse processual no seu julgamento conjunto com o recurso
interposto da decisão final.
2 – Constitui interpretação desproporcionada de tal regime e do ónus que lhe
subjaz – violadora do acesso à justiça e da regra do processo equitativo – a que
se traduz em considerar irremediavelmente preclusiva a não referenciação
expressa de que a parte pretende o julgamento do recurso interlocutório, sem que
o tribunal deva – num caso em que, apesar de se referir ao recurso
interlocutório sem o “abandonar”, a expressão utilizada pelo recorrente nas
conclusões da motivação não referencie, de forma expressa e cabal, tal interesse
processual – convidar o recorrente a esclarecer a posição processual que
pretende assumir.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
Corridos os vistos, cumpre decidir
II – Fundamentação
17. Delimitação do objecto do recurso
Por despacho já transitado está o presente recurso limitado à apreciação da
constitucionalidade do artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal, preceito
que, no entendimento dos recorrentes, é inconstitucional, “por violação do
princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18°, com referência ao
direito de acesso à justiça e aos tribunais consignado no artigo 20° e violação
do artigo 32°, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa”, quando
interpretado em termos de “facultar ao tribunal ad quem a liminar rejeição do
recurso quando o Recorrente não concretize “apertis verbis” a sua vontade de
subida do recurso interlocutório entretanto interposto, admitido, preparado e
alegado, considerando não ser suficiente para a manifestação dessa vontade a
referência a esse recurso «que subirá a final» com reprodução do objectivo a que
o mesmo recurso se dirige, sem, pelo menos, lhe facultar previamente o
suprimento da assim considerada insuficiência formal”.
Importa, porém, para delimitar com mais rigor as exactas dimensões normativas do
artigo 412º, nº 5, do CPP, que estão em causa nos presentes autos, começar por
recordar o essencial da sequência processual que deu origem ao acórdão
recorrido, pois, só dessa forma, se podem compreender integralmente os sentidos
normativos do preceito questionado pelos recorrentes e que o acórdão utilizou
como ratio decidendi.
Ora, nos presentes autos foram interpostos pelos recorrentes, ao longo do
processo, três recursos interlocutórios, sendo certo que em todos eles se
versava a matéria da prescrição do procedimento criminal [o recurso de
31.10.2001 (fls. 611), admitido em 29.11.2001 (fls. 637), o recurso de
11.12.2003 (fls. 1419), admitido em 20.11.2003 (fls. 1434), e o recurso de 30 de
Julho de 2004 (fls. 1541), admitido em 2 de Dezembro de 2004 (fls. 1894)].
O acórdão recorrido (tendo igualmente em atenção o acórdão que, a solicitação
dos recorrentes, indeferiu um requerimento para a sua aclaração), decidiu, por
seu turno, com fundamento no artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal, não
conhecer da questão da prescrição do procedimento, que os recorrentes colocavam
nos três recursos interlocutórios que interpuseram, alegando que estes não
referiram expressamente nas conclusões do recurso que apresentaram da decisão
final da primeira instância que mantinham interesse no respectivo conhecimento.
A situação de facto, porém, é diferente no que se refere, por um lado, aos
recursos de 31.10.2001 (fls. 611), admitido em 29.11.2001 (fls. 637), e ao
recurso de 11.12.2003 (fls. 1419), admitido em 20.11.2003 (fls. 1434) e, por
outro, ao recurso de 30 de Julho de 2004 (fls. 1541), admitido em 2 de Dezembro
de 2004 (fls. 1894). Na verdade, no momento em que foi interposto (30 de Junho
de 2004) e alegado (15 de Julho de 2004) pelos recorrentes o recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa da decisão condenatória da primeira instância, já
tinham sido admitidos os dois primeiros recursos interlocutórios imediatamente
supra referidos, mas ainda não sido admitido o recurso citado em último lugar, o
qual só o veio a ser em 2 de Dezembro de 2004 (fls. 1894).
Assim, para efeitos de um juízo de constitucionalidade, verifica-se que, no que
se refere aos recursos de 31.10.2001 (fls. 611), admitido em 29.11.2001 (fls.
637), e ao recurso de 11.12.2003 (fls. 1419), admitido em 20.11.2003 (fls.
1434), está em causa o artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal,
interpretado em termos de, para utilizar a formulação dos recorrentes, “facultar
ao tribunal ad quem a liminar rejeição do recurso quando o Recorrente, nas
conclusões do recurso que apresenta da decisão final, não concretize “apertis
verbis” a sua vontade de subida do recurso interlocutório entretanto interposto,
admitido, preparado e alegado, considerando não ser suficiente para a
manifestação dessa vontade a referência a esses recursos e a que os mesmos
subirão a final, com reprodução do objectivo a que os mesmos se dirigem, sem que
seja formulado um convite aos recorrentes para explicitarem se mantêm interesse
no conhecimento desses recursos.”
Já no que se refere ao recurso de 30 de Julho de 2004 (fls. 1541), admitido em 2
de Dezembro de 2004 (fls. 1894)], o artigo 412º, n.º 5, do Código de Processo
Penal, foi interpretado no sentido de que “havendo recursos retidos, o
recorrente especifica obrigatoriamente nas conclusões, quais o que mantêm
interesse (sublinhado nosso) [do acórdão]. Como refere Maia Gonçalves a falta de
especificação implica a desistência dos recursos retidos que não são
especificados ('Código de Processo Penal', 13ª ed., pag.820). Outra solução não
pode resultar do próprio texto do normativo em questão.”
Isto é, tal artigo foi interpretado pelo acórdão recorrido no sentido de que a
exigência da especificação dos recursos retidos em que o recorrente mantém
interesse, constante do artigo 412º, n.º 5, do Código de Processo Penal, também
é obrigatória, sob pena de preclusão do seu conhecimento, nos casos em que o
despacho de admissão do recurso interlocutório é proferido depois da própria
apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do processo.
Vejamos, então.
18. Julgamento do objecto do recurso
18.1. Começaremos pela dimensão referida em último lugar, uma vez que ela não é
nova na jurisprudência do Tribunal. Na verdade, no acórdão nº 724/2004
(disponível na página Internet do Tribunal em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal decidiu “julgar
inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 32º, n.º
1, e 20º, n.º 4, parte final, da Constituição, o artigo 412º, n.º 5, do Código
de Processo Penal, interpretado no sentido de que a exigência da especificação
dos recursos retidos em que o recorrente mantém interesse, constante do
preceito, também é obrigatória, sob pena de preclusão do seu conhecimento, nos
casos em que o despacho de admissão do recurso interlocutório é proferido depois
da própria apresentação da motivação do recurso interposto da decisão final do
processo”.
Naquele acórdão, o Tribunal Constitucional começou por dar nota da razão
histórica da introdução no artigo 412º do Código de Processo Penal do nº 5, que
agora, uma vez mais, vem questionado, nos seguintes termos: “assinalando a razão
de ser do novo regime, escreveu-se no relatório daquele Decreto-Lei n.º
329-A/95: «Por outro lado – e no que se refere aos agravos retidos que apenas
sobem com um recurso dominante – impõe-se, com base no princípio da cooperação,
um ónus para o recorrente, que deverá obrigatoriamente especificar nas alegações
do recurso que motiva a subida dos agravos retidos quais os que, para si,
conservam interesse, evitando que o tribunal superior acabe por ter de se
pronunciar sobre questões ultrapassadas, para além de correr o risco, em
processos extensos e complexos, de “escapar” a apreciação de algum recurso não
precludido. Na verdade, ninguém melhor que o recorrente estará em condições de
ajuizar quais os recursos que efectivamente interpôs e qual a utilidade na sua
apreciação final»”; de seguida, enunciou a anterior jurisprudência do Tribunal
Constitucional acerca do sentido normativo essencial de quanto se dispõe no
artigo 32º, nº 1, da Constituição; e, finalmente, ponderou, para concluir no
sentido da inconstitucionalidade da dimensão normativa daquele artigo 412º, nº
5, submetida à sua apreciação, o seguinte:
“[…] Desempenham assim essas normas [o acórdão referia-se a normas que imponham
ao recorrente ónus formais do tipo dos que agora estão em causa] uma função
importante não apenas na perspectiva, mais geral, da realização da justiça, mas
inclusive na perspectiva da própria garantia de defesa dos direitos do
recorrente. E, é essa função que as conclusões são aptas a realizar - tida como
um valor, quer na perspectiva da realização da justiça quer na perspectiva das
garantias de defesa do arguido - que, em última análise, legitima do ponto de
vista constitucional a existência de normas processuais que as exijam, sob a
cominação de não se poder conhecer do objecto do recurso.
Do que vai dito decorre, inevitavelmente, que os critérios normativos de decisão
legítimos, na perspectiva da Constituição, hão-de ser, necessariamente,
critérios funcionais, que façam assentar a decisão de saber se o conteúdo de uma
peça processual [...] é ou não apto a realizar as funções que legitimam a sua
exigência».
A esta luz, o que importa averiguar é se o ónus processual aqui em causa, tal
como foi delimitado na interpretação efectuada pelo tribunal a quo, ainda
desempenha uma função processual útil ou se, pelo contrário, se apresenta como
uma exigência arbitrária, que acaba por se traduzir num encurtamento
inadmissível das «garantias de defesa» asseguradas no artigo 32º, n.º 1, e num
entorse injustificado às exigências do «processo equitativo» a que se refere o
artigo 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.».
11 - Ora, tem de convir-se que a atribuição de um efeito irremediavelmente
preclusivo ao incumprimento do ónus de especificação a cargo do recorrente do
recurso retido em cuja apreciação mantém interesse numa situação, como a que é
revelada pela hipótese dos autos, em que, aquando do momento de cumprimento
desse ónus - o momento de apresentação das conclusões da motivação do recurso -
o recurso dito retido não estava ainda admitido, se afigura manifestamente
desproporcionada e até arbitrária. Na verdade, num tal quadro, não é possível
ver desempenhada por tal exigência a função processual útil em vista de cuja
satisfação foi legislativamente conformada – a cooperação do recorrente com o
tribunal quanto à identificação dos recursos retidos em cuja apreciação mantém
interesse. É que, não estando ainda admitido o recurso interlocutório,
considerado pela decisão recorrida como retido, não é possível sequer
considerar-se, a não ser a título hipotético – plano de raciocínio ao qual não
pode sujeitar-se a efectividade exigida pelas garantias de defesa, entre elas se
contando o recurso em processo penal – como existente o recurso interposto e
muito menos ver-se esse recurso como admitido para subir diferidamente com
outro, de modo a poder exigir-se do recorrente que, nas conclusões da motivação
do recurso apresentadas antes do despacho de admissão do recurso retido,
colaborando com o tribunal de recurso com o sentido acima apontado, faça a
menção estipulada no n.º 5 do art.º 412º do CPP. A atribuição de um efeito
preclusivo em tal hipótese normativa, como foi vista pela decisão recorrida,
carece ostensivamente de fundamento material bastante, sendo pois manifestamente
desproporcionada, levando a um inadmissível encurtamento das garantias de defesa
do arguido em processo penal, incluindo, o direito de recurso.
12 - Mas esta conclusão sai ainda mais reforçada quando se conjugue o disposto
no art.º 32º, n.º 1, com o disposto no art.º 20º, n.º 4, ambos os preceitos da
CRP, ou seja, com a exigência constitucional de que o processo penal seja um
processo equitativo e justo.
Como se considerou, entre muitos outros, no Acórdão deste Tribunal n.º 109/99
(publicado no Diário da República II Série, de 15 de Junho de 1999): «(...) Este
Tribunal tem sublinhado, em múltiplas ocasiões, que o processo penal de um
Estado de Direito tem que ser um processo equitativo e leal (a due process of
law, a fair process, a fair trial), no qual o Estado, quando faz valer o seu ius
puniendi, actue com respeito pela pessoa do arguido (maxime, do seu direito de
defesa), de molde, designadamente, a evitarem-se condenações injustas. [...] O
processo penal, para – como hoje exige, expressis verbis, a Constituição (cf.
artigo 20º, n.º 4) – ser um processo equitativo, tem que assegurar todas as
garantias de defesa, incluindo o recurso (cf. o artigo 32º, n.º 1, da Lei
Fundamental).».
13 - Ora, a atitude legislativa de transferir totalmente e apenas para o arguido
os efeitos decorrentes do incumprimento de um ónus cuja conformação legislativa
assenta em razões de cooperação e colaboração entre o recorrente e o julgador
numa situação em que o cumprimento apenas poderia ser perspectivado sobre uma
admissão hipotética do recurso interposto, por o tribunal não ter cumprido o seu
dever de emitir pronúncia sobre requerimento anterior do arguido através do qual
interpôs o recurso dito retido, não se ajusta aos cânones de exigência
constitucional de due process of law, a fair process, a fair trial, devendo
ter-se, como se diz no referido Acórdão n.º 191/2003, como “um entorse
injustificado” à garantia de um processo equitativo.
Também sob esta perspectiva a norma é inconstitucional”.
É, pois, esta jurisprudência, e a fundamentação que a sustenta, que, na parte em
que a decisão recorrida conclui, com base no artigo 412º, nº 5, do Código de
Processo Penal, não conhecer do recurso que fora interposto a fls. 1541, com
fundamento em que nas conclusões da alegação de recurso da decisão final os
recorrentes não referiam que mantinham interesse no seu conhecimento, que agora
há que reiterar.
18.2. Em relação aos recursos de 31.10.2001 (fls. 611), admitido em 29.11.2001
(fls. 637), e ao recurso de 11.12.2003 (fls. 1419), admitido em 20.11.2003 (fls.
1434), a situação é, como já referimos, diversa, quer porque estes já haviam
sido admitidos e alegados no momento em que foi motivado o recurso da decisão
final, quer porque, em os recorrentes a eles expressamente se referem, nos
termos supra descritos, quer na motivação (nº 156), quer nas conclusões (nº 11)
daquele recurso.
Em relação a estes recursos, a sua não admissão pelo acórdão recorrido (tendo em
atenção a resposta ao pedido de aclaração) assenta, decisivamente, na
insuficiência formal do que foi dito pelos recorrentes, designadamente na já
referida conclusão 11ª, para que possa considerar-se cumprido o ónus referido no
nº 5 do artigo 412º do Código de Processo Penal. Insuficiência a que a mesma
decisão associa um efeito preclusivo imediato, sem necessidade de formulação de
um convite aos recorrentes para que estes explicitem se mantêm interesse no
conhecimento dos recursos interlocutórios a que se referem nas conclusões. Em
causa está, então, a questão de saber se é compatível com a Constituição,
designadamente com os princípios e preceitos referidos pelos recorrentes, a
interpretação do artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal, que permita ao
tribunal ad quem, considerando não ser suficiente para o cumprimento do ónus
previsto nesse preceito a referência nas conclusões ao recurso interlocutório
retido e a que o mesmo subirá a final, a liminar rejeição desse recurso,
entretanto já admitido, sem que seja formulado ao recorrente um convite para
explicitar se mantém interesse no seu conhecimento.
Vejamos.
No Acórdão nº 191/2003 (também disponível na página Internet do Tribunal
Constitucional), o Tribunal concluiu no sentido da inconstitucionalidade do
artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal, por violação das disposições
conjugadas do artigo 32º, nº 1, e do artigo 20, nº 4, parte final, da
Constituição, quando “interpretado no sentido de que é insuficiente para cumprir
o ónus de especificação ali consignado a referência a “todos” os recursos, nas
conclusões da motivação, sempre que no texto desta tenha sido feita a sua
identificação individualizada e seriada”. Para assim decidir, baseou-se o
Tribunal - após ter enunciado o conteúdo normativo essencial das garantias de
defesa asseguradas pelo artigo 32º da Constituição, apoiado na sua anterior
jurisprudência, - na seguinte fundamentação:
“[…] A esta luz, o que importa averiguar é se o ónus processual aqui em causa,
tal como foi delimitado na interpretação efectuada pelo tribunal a quo, ainda
desempenha uma função processual útil ou se, pelo contrário, se apresenta como
uma exigência arbitrária, que acaba por se traduzir num encurtamento
inadmissível das «garantias de defesa» asseguradas no artigo 32º, nº 1, e num
entorse injustificado às exigências do «processo equitativo» a que se refere o
artigo 20º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa.
Isto é: com base num critério funcional, ainda se pode considerar como
proporcionada uma interpretação do que seja o cumprimento do ónus de
especificação constante do nº 5 do artigo 412º do CPP, como a efectuada nos
autos, ou, ao invés apresenta-se já como excessiva essa exigência de que a
indicação dos recursos retidos em que se mantém interesse se não basta com a
referência, nas conclusões da motivação, a “todos” os recursos, quando no
próprio texto da motivação se efectuou já à indicação discriminada dos mesmos?
6. Ora, é bem verdade que não custa admitir, como refere o Ministério Público
nas suas alegações, que «a utilidade e funcionalidade de uma norma com o
conteúdo do artigo 412º, nº 5, do Código de Processo Penal pressupõe
efectivamente que deva ocorrer uma individualização e referenciação dos recursos
retidos que – na sua estratégia processual – o recorrente considera que mantêm
interesse processual: seria, de facto, de plena inutilidade que ao recorrente
fosse consentido a genérica indicação de que manteria interesse a apreciação de
“todos” os recursos interlocutórios, interpostos ao longo do processo, por tal
indicação, meramente genérica e remissiva, se revelar totalmente inútil para a
finalidade e funcionalidade do preceito».
No entanto, toda a questão reside em saber se essa utilidade e funcionalidade
não se manteria integralmente se a exigência se considerasse cumprida com a
indicação especificada na motivação do recurso e a mera referência a todos –
obviamente, todos os especificados na própria motivação – nas conclusões.
Com efeito, tendo em conta a identidade e unicidade da peça processual em causa
– a motivação do recurso – e tendo o recorrente, no texto dessa motivação,
efectuado a discriminação e identificação expressa, seriadamente, dos vários
recursos interlocutórios retidos em que continua a manter interesse, não se
descortina como não deva ser tida como suficiente a referência nas conclusões a
“todos” os recursos para se considerar satisfeito o ónus, configurando-se
efectivamente como excessiva a imposição da repetição da identificação
individualizada dos recursos retidos.
Nesta conformidade, tendo presente que o ónus constante do nº 5 do artigo 412º
do CPP há-de reflectir o dever de cooperação e colaboração entre as partes e o
julgador, o que surge como excessivo e como um visível encurtamento inadmissível
das garantias de defesa do arguido em processo penal e um entorse injustificado
à garantia de um processo equitativo, é a exigência de repetição, nas
conclusões, da especificação dos recursos retidos, já anteriormente efectuada no
texto da motivação, não se admitindo como suficiente, em tal caso, a simples
referência a «todos» os recursos, nessas conclusões.”
Esta jurisprudência seria transponível para estes autos na medida em que, como
entendeu o Tribunal nos autos que deram origem ao acórdão citado, estivesse
apenas em causa a questão de saber se o critério normativo em que a decisão
recorrida sustentou a insuficiência formal da conclusão 11ª é compatível com a
Constituição. Mas, nestes autos, tal como colocada pelos recorrentes no
requerimento de interposição do recurso, a questão é, em rigor, outra. Aqui, a
inconstitucionalidade do artigo 412º, nº 5, do CPP surge indissociavelmente
ligada ao efeito preclusivo imediato da alegada insuficiência formal da
referência, nas conclusões do recurso da decisão final, ao interesse no
conhecimento dos recursos interlocutórios. Ou seja, na perspectiva dos
recorrentes, o artigo 412º, nº 5, do CPP só é inconstitucional se, considerando
o tribunal formalmente insuficiente para cumprir o ónus de especificação ali
consignado um determinado modo de referir a questão nas conclusões do recurso,
puder rejeitar liminarmente os recursos interlocutórios sem formular ao
recorrente um convite para o seu aperfeiçoamento, designadamente para explicitar
se mantém interesse na apreciação dos mesmos.
Ora, assim colocada a questão, há efectivamente que reconhecer razão aos
recorrentes.
Com efeito, já por várias vezes o Tribunal se pronunciou sobre uma questão
paralela, referida aos ónus constantes dos nºs 2, 3 e 4 do artigo 412º do Código
de Processo Penal, tendo concluído no sentido da inconstitucionalidade destes
preceitos quando interpretados no sentido de que a mera falta de indicação, nas
próprias conclusões da motivação, de qualquer das menções aí contidas tem como
efeito imediato o não conhecimento, nessa parte, do recurso do arguido, sem que
ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência (cfr., entre
muitos outros no mesmo sentido, os Acórdãos nºs 288/2000, 388/2001, 401/2001,
320/2002, 529/2003, 322/2004 ou 405/2004, todos disponíveis na página Internet
deste Tribunal).
A fundamentação que conduziu a esta jurisprudência é inteiramente transponível
para os presentes autos. Com efeito, sendo certo, por um lado, que o cumprimento
adequado do ónus a que se refere o artigo 412º, nº 5, do CPP, não pressupõe –
numa interpretação funcionalmente adequada, para utilizarmos as palavras do
acórdão nº 191/2003, já citado – o uso de qualquer fórmula sacramental e, por
outro, que na conclusão 11ª os recorrentes mencionam a existência de dois
recursos interlocutórios retidos, versando sobre a matéria da prescrição,
referindo que os mesmos deveriam “subir a final”, se, ainda assim, alguma dúvida
persistia no espírito do tribunal sobre se os recorrentes mantinham ou não o
interesse na sua apreciação, deveria efectivamente ter procedido a um convite
para o seu esclarecimento, sob pena de, não o tendo feito, decidir com base numa
interpretação normativa do nº 5 do artigo 412º do Código de Processo Penal que é
incompatível com as disposições conjugadas dos artigos 32º, n.º 1, e 20º, n.º 4,
parte final, da Constituição da República Portuguesa.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
i) julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos
32º, n.º 1, e 20º, n.º 4, parte final, da Constituição, o n.º 5 do artigo 412º
do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a exigência da
especificação dos recursos retidos em que o recorrente mantém interesse,
constante do preceito, também é obrigatória, sob pena de preclusão do seu
conhecimento, nos casos em que o despacho de admissão do recurso interlocutório
é proferido depois da própria apresentação da motivação do recurso interposto da
decisão final do processo;
ii) julgar inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos
32º, n.º 1, e 20º, n.º 4, parte final, da Constituição, o n.º 5 do artigo 412º
do Código de Processo Penal, na interpretação que permita ao tribunal ad quem,
considerando não ser suficiente para o cumprimento do ónus previsto nesse
preceito a referência nas conclusões ao recurso interlocutório retido e a que o
mesmo subirá a final, a liminar rejeição desse recurso, entretanto já admitido,
sem que seja formulado ao recorrente um convite para explicitar se mantém
interesse no seu conhecimento;
iii) consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da
decisão recorrida em conformidade com os presentes juízos de
inconstitucionalidade.
Lisboa, 27 de Junho de 2006
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra (Votei o acórdão, embora entenda que, para os juízos de
inconstitucionalidade formulados, deveria ter sido convocado o n.º 2 do artigo
18º da Lei Fundamental. Por outro lado, no tocante à decisão constante da alínea
b) do presente aresto, aderi à mesma tão só por entender que a dimensão
normativa em causa tem subjacente que o recorrente, de todo o modo, no recurso
“dominante” expressa, embora de modo não escorreito, a sua vontade de subida do
ou dos recursos interlocutórios.)
Rui Manuel Moura Ramos