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Processo n.º 400/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (LTC), do despacho de 7 de Março de 2006, que não
admitiu o recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional, com invocação da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, dos acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça, de 4 de Outubro de 2005 e de 7 de Dezembro de 2005, de que resultou a
sua condenação como litigante de má fé.
O recurso não foi admitido com fundamento em que a norma dos
n.ºs 1 e 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, cuja constitucionalidade
a recorrente quer ver apreciada, não foi aplicada pelo Supremo Tribunal de
Justiça, na condenação da recorrente como litigante de má fé.
A recorrente sustenta que o recurso deve ser admitido pelo
seguinte:
“(…)
3) A Reclamante, condenada por litigância, argumenta que não o podia ser, por
estar abaixo do nível de pobreza aceitável, utilizou o argumento do Artº 824.º
do C.P.C.
4) Ora, da decisão recorrida para o TC resultou a denegação da pertinência
destas razões, por ser interpretado esse Artigo, sem a extensão e alcance
defendido pela Recorrente.
5) Ora, é justamente esta interpretação restritiva que a Reclamante argui de
inconstitucional, por desproporcionada.
6) Por conseguinte, a decisão de que foi interposto o Recurso para o Venerando
Tribunal Constitucional aplica efectivamente o preceito em causa, dando-lhe o
sentido negativo que a Recorrente critica, do ponto de vista de infracção da
Constituição.”
O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer:
“A presente reclamação carece ostensivamente de fundamento sério, por ser
evidente e incontroverso que a matéria do litígio, incidente sobre a condenação
do recorrente como litigante de má fé nada tem a ver com a problemática dos
limites da penhorabilidade de bens do executado: nestes termos, e como é óbvio,
a decisão recorrida nunca poderia ter invocado e aplicado a “norma” a que vem
reportado o recurso de fiscalização concreta interposto.”
2. São as seguintes as ocorrências processuais relevantes para apreciação da
reclamação:
a) Por acórdão de 4 de Outubro de 2005, a recorrente foi condenada em multa e
indemnização por litigar de má fé, com a seguinte fundamentação (na parte que
interessa a esta condenação):
“A litigância de má-fé.
Os presentes autos têm sido o paradigma da litigância abusiva: uma vez proferido
acórdão “final” em 27/05/04, e depois de o requerido (e aqui recorrente) Joaquim
Pires de Lima ter esgotado (pensa-se que esgotado, mas nunca se sabe…) as
possibilidades de prolongar a pendência da instância, é agora a vez de A. o
querer fazer também, ela que é terceiro, visto que não foi nunca admitida a
intervir e que não se vê em que possa ser prejudicada com o decidido na acção ou
no recurso como já antes se demonstrou –, começando por pedir a suspensão de
prazos para se opor ao acórdão, depois arguindo nulidades, e agora pedindo
aclarações, sempre sem a mínima razão e levando a que uma providência de
produção antecipada de prova, requerida em 1994 (há onze anos!...), já decidida
pela inutilidade superveniente da lide, por a acção principal ter já sido
julgada com trânsito, ainda continue a ser tramitada da forma totalmente
artificial, que acima se resumiu.
Decidido o recurso em 27/05/04, ele ainda continua, mais de um ano depois, a ser
tramitado, por força da incidentação sucessiva, anómala e sempre sem a mínima
razão ou fundamento, da requerente A., terceiro para a acção e para o recurso.
Há situações (repete-se que a requerente litiga com apoio judiciário e com
advogado nomeado a seu pedido, portanto, sem pagar custas nem preparos e com
honorários ao Patrono escolhido e nomeado a pagar pelo Estado) em que apenas a
condenação como litigante de má-fé permite introduzir, na tramitação processual,
um sopro de moralidade: a requerente tem feito do processo e dos meios
processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de entorpecer a acção da
justiça e protelar sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão final.
Que procede com dolo, na forma de intenção, é evidente; e, se assim não fosse,
seria com negligência grave: art. 456, nº 1, 2, d) do CPC. Com a sua constante
incidentação, a requerente obriga a actividade judiciária suplementar (e, como
se disse, desnecessária em termos de direito substantivo, pois que a requerente
é terceiro) e obriga a contra-parte a responder-lhe, com o consequente dispêndio
de actividade processual que doutra forma seria absolutamente dispensável.
É irrecusável a sua condenação como litigante de má-fé.
A requerente utilizou a notificação que lhe foi feita (para se pronunciar,
querendo, sobre o montante da eventual condenação em indemnização, nos termos do
art. 457, nº 2 do CPC), para ultrapassar esse âmbito e, como tem sido seu
hábito, suscitar novas questões.
Ora, a norma do art. 84, incluindo o seu nº 7, da LTC (Lei 28/82) é específica e
privativa do procedimento perante o TC. No nosso caso, regem os preceitos gerais
dos art. 456, nº 1 e 457, n.ºs 1 e 2 do C PC, onde se não determina que o
relator “deva dizer nos autos sucintamente a razão do seu parecer”: na
generalidade dos processos, para o juiz tomar decisão sobre indemnização à parte
contrária por litigância de má-fé, basta que essa outra parte o requeira (art.
456, nº 1), devendo o juiz, se não houver elementos para fixar logo a
indemnização, ouvir as partes (art. 457, nº 2) e fixar a indemnização mediante
prudente arbítrio e razoabilidade (art. 457, nº 2), optando pela indemnização
que julgue mais adequada à conduta do litigante de má-fé, e fixando-a sempre em
quantia certa (art. 457, nº 1, último segmento).
E, se a requerente A. não sabe porquê a sua eventual condenação como litigante
de má-fé, devia saber, porque os recorridos o disseram no pedido de condenação
por má-fé.
Donde resulta que o montante da indemnização – se condenação a indemnizar vier a
ser proferida – é em função do que constar do processo, não havendo obviamente
lugar a especial instrução, como por exemplo…perícias médicas, a efectuar por
juntas médicas ou pelo IML, para avaliar o estado de saúde do litigante de
má-fé.
Ora, os elementos que temos no processo, além dos já referidos quanto à conduta
da requerente A., são os que constam do pedido de apoio judiciário, na
modalidade de dispensa total de preparos, de taxa de justiça e demais encargos
com o processo e pagamento de honorários ao patrono escolhido pela requerente,
precisamente à Sra. Dra. B. (fls. 1009/1010), concessão do mesmo pela Segurança
Social (fls. 1023 e 1024) e nomeação da Dra. B., pela AO, como patrono da
requerente do apoio judiciário (fls. 1025).
Do referido requerimento consta, como declarado pela requerente, que esta
“recebe a pensão de 288,94 Euros”, é “grande inválida” e “tem subsídio de
terceira pessoa”. Mais se diz que o apoio é para “deduzir oposição ao acórdão do
STJ no processo 994/04-1 (ou seja, o presente processo), que lhe é
desfavorável”, bem como [no quadro “Explique por palavras suas o que pretende”]
: “Existência de documento em que se anuncia que vai ser responsabilizada”.
Portanto, toda a tese da pretendida intervenção principal espontânea, como se
disse nunca admitida por falta de legitimidade da requerente para isso, assenta
em que a requerente diz haver “um documento em que se anuncia que vai ser
responsabilizada”.
A indemnização por litigância de má-fé parametriza-se essencialmente pelo grau
de culpa, que neste caso é elevado, pelos prejuízos, despesas e incómodos
causados à outra parte, resultantes da demora extraordinária da tramitação, que
neste caso consistem no atraso inusitado causado na tramitação e no trânsito,
notificações feitas à outra parte para responder, etc. – e não essencialmente
pela idade, estado de saúde ou situação económica da pessoa a condenar (embora
estes elementos também possam ser ponderados, numa perspectiva de sensibilidade
humana). Se assim não fosse, a indemnização por má-fé premiava os carenciados,
os doentes e os velhos, e por essa via encorajava-os a litigar de má-fé, porque
se sabiam privilegiados numa eventual condenação, o que está totalmente fora do
espírito da lei (incluindo da lei constitucional) e da moral.
O grau de culpa é elevado, o dano causado, consistente em uma decisão “final”,
proferida em Maio de 2004, ainda não ter transitado mais de um ano depois e
continuar a tramitação processual, de forma totalmente artificiosa e sem
qualquer real utilidade, nem mesmo para a requerente.
A condenação por má-fé impõe-se de forma totalmente clara e irrecusável.
A condenação em multa por litigância de má-fé vai de 2 a 100 UCS: art. 102, b)
do C Custas. Sendo fixada em 20 UCS, é fixada em 1/5 do máximo legal, o que é
condenação bem modesta, atenta a conduta descrita e o dano da complicação
inusitada do processado e da dilação extraordinária do trânsito. Representa
sobretudo um sinal (ético) de que a litigância de má- fé não deve passar
despercebida e tem de ser combatida. Devendo a condenação em indemnização ser em
quantia certa e medir-se por critérios de prudente arbítrio, entende-se razoável
e equitativo que se meça pelo montante da multa.”
b) Por acórdão de 7 de Dezembro de 2005, o Supremo Tribunal de
Justiça indeferiu a arguição de nulidade e pedido de reforma do acórdão referido
na alínea anterior, nos seguintes termos:
“(…)
3. Arguição de nulidade.
Não houve qualquer omissão de pronúncia sobre questão posta. O que se fez nesse
acórdão foi decidir um pedido de aclaração de anterior acórdão, pelo que
necessariamente a isso se reduzia o objecto. Tudo o que poderia ter a ver com
eventuais inconstitucionalidades foi apreciado no acórdão anterior (cuja
aclaração se pediu) e aí se apreciou. A requerente vem tentar encadear, em
questões já anteriormente conhecidas e tratadas, novas questões (por exemplo, a
referência que ela agora faz ao art. 824, n.ºs 1 e 2 do CPC é totalmente
desajustada, pois tal preceito não tem aplicação neste processo – e o mesmo se
diga do art 824 do CC, se é do CC que se trata).
Portanto, na arguição de nulidade não tem a requerente qualquer razão.
B) Pedido de revogação do acórdão por erro manifesto.
Há decerto manifesto no que aqui se pede, pois o que a lei (art. 669, n.º 2, a)
e b) do CPC) permite é a reforma da decisão quando se verifique ter havido
manifesto lapso do juiz na determinação de norma aplicável ou na qualificação
jurídica dos factos, ou quando constem do processo documentos ou quaisquer
elementos que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida
e que o juiz por lapso manifesto, não haja tomado em consideração.
Patentemente, não é disto que se trata, nem a requerente diz onde teria estado o
manifesto lapso ou quais os elementos constantes do processo (etc.). Mais uma
vez, o que a requerente faz é mostrar discordância com o decidido (agora, ao que
parece, quanto à inutilidade superveniente da instância neste procedimento por
ter sido já julgada com trânsito a acção de que ele era um procedimento
preparatório a cautelar – ou seja, uma coisa já decidida há muito): este
Tribunal entendeu que ela não tem legitimidade nem interesse, ela entende que
tem. Portanto, tal divergência não configura fundamento para a reforma da
decisão.
A recorrente aduz em sustento da sua opinião, além de factos novos (como uma
notificação judicial avulsa que lhe teria sido feita em outro processo), cuja
relevância para os efeitos que pretende é discutível, também uma argumentação
jurídica que também nunca produzira antes (nºs 17 a 21 do seu requerimento).
Ora, isto não consubstancia qualquer das razões que podem fundamentar um pedido
de reforma (e não de revogação) da decisão tomada: não houve lapso nenhum,
manifesto ou não, como não constam do processo documentos ou elementos, que, por
si só, impliquem necessariamente decisão diversa na proferida e que o juiz, por
manifesto lapso, não tenha tomado em consideração.
Não se trata de nada disso: o tribunal não cometeu lapso nenhum e explicou
devidamente a sua decisão. O que sucede é que a requerente está, como outras
vezes esteve, a discutir de novo o que já foi discutido e decidido antes.”
c) A recorrente interpôs recurso destes acórdãos, para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tendo
esclarecido que “as normas que se pretende sejam apreciadas pelo Tribunal
Constitucional são as do artigo 824.º, n.ºs 1 e 2 do C.P. Civil”.
d) Por despacho de 7 de Março de 2006, foi indeferido o requerimento de
interposição do recurso, nos seguintes termos:
“A recorrente invoca como fundamento do recurso a aplicação de norma cuja
inconstitucionalidade tenha sido suscitada no processo – artigo 70 n.º 1 al. B)
da Lei n.º 28/82.
Tal norma na perspectiva do recorrente é a do artigo 824.º n.ºs 1 e 2 do C.P.C.
Ou tal norma não foi aplicada nem tem nada a ver com o decidido neste processo.
Assim, nos termos do artigo 76.º n.º 2 da referida Lei n.º 28/82 indefere-se o
requerimento de interposição do recurso, por o mesmo ser manifestamente
infundado.
Custas pela requerente.
Notifique a decisão através de cópia dactilografada.”
3. A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe
recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos demais tribunais que
apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo. Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, a norma que se quer
submeter à sua apreciação tem de integrar a ratio decidendi da decisão
recorrida.
Ora, na condenação da recorrente como litigante de má fé – é nesta questão que
se enxerta o incidente de constitucionalidade configurado pela recorrente – não
interveio qualquer norma ou sentido normativo que possa considerar-se extraído
dos n.ºs 1 e 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil. O acórdão de 7 de
Dezembro de 2005, que recaiu sobre a arguição de nulidade, di-lo expressamente.
Com efeito, é incontroverso que o artigo 824.º do Código de Processo Civil,
estabelecendo limites à penhorabilidade dos bens do executado, contém disciplina
jurídica absolutamente estranha à matéria (ao momento) da condenação por
litigância de má fé.
E não procede o argumento de que, a decisão condenatória, na medida em que não
acolheu as razões que a recorrente extraiu do regime do artigo 824.º Código de
Processo Civil e da jurisprudência do Tribunal Constitucional a seu propósito,
fez aplicação de um sentido restritivo da norma contrário àquele que a
recorrente defendeu e que a isentaria de condenação. Sem cuidar agora de
averiguar se, na intervenção que a recorrente refere, foi suscitada uma questão
de constitucionalidade normativa e se, sendo-o, o foi em termos processualmente
adequados, o certo é que a mera invocação de uma norma legal na discussão de uma
questão – que o tribunal da causa considerou ter sido feita a despropósito – não
basta para que se impute a qualquer decisão posterior que recaia sobre essa
questão, independentemente do seu teor, a aplicação implícita de tal norma.
Tanto basta para confirmar o despacho reclamado, nos seus
precisos termos, sem necessidade de examinar outras razões que igualmente
conduziriam a que o recurso não devesse ser admitido.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar a recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício