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Processo n.º 444/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Por decisão do 2º Juízo Criminal da Comarca de Lisboa, de 14 de Janeiro de
2005, foi o ora recorrente, A., condenado, pela prática de um crime de abuso de
informação, previsto e punido pelo artigo 378º, nº 2, com referência aos nºs 1 e
4, do Código dos Valores Mobiliários (aprovado pelo Decreto-Lei nº 486/99, de 13
de Novembro), na pena de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de €
250 (duzentos e cinquenta).
2. Inconformado com esta decisão, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação
de Lisboa, tendo, a concluir a respectiva alegação e para o que ao presente
recurso de constitucionalidade importa, formulado as seguintes conclusões:
“Nulidade da sentença
1° Os factos dados como provados na sentença recorrida sob os n°s 36 e 37 dos
Factos Provados (fls. 572) não constavam da Acusação/Pronúncia.
2° Tais factos foram determinantes para a condenação do recorrente.
3° Nos termos do artigo 379° n° 1 alínea b) do CPP, é nula a sentença “que
condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a
houver, fora dos casos e das condições previstos nos art°.s 358° e 359°”.
4° É inquestionável que não se verificaram as condições previstas nos artigos
358° e 359° do C.P.P;
5° A M Juíza recorrida não comunicou ao arguido a alteração dos factos para que
ele pudesse preparar a sua defesa e a alteração não derivou de factos alegados
pela defesa.
6° A sentença cometeu, pois, a nulidade ora arguida, que é de extrema gravidade,
na medida em que o arguido foi condenado, sem ter tido qualquer possibilidade de
contrariar esta nova versão dos factos, que a M Juíza lançou na sentença.
7° Aliás, a sentença, ao proceder do modo referido, procedeu a uma interpretação
de dimensão normativa dos art°s 379º N° 1, 358° e 359° todos do C.P.P., que toma
estes preceitos inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 32° n°s
1 e 5 da C.R.P. (cfr. Ac. STJ de 16.01.2003 www.dgsi.pt, N° convencional
JSTJ000)
[…]
Arguição de Inconstitucionalidades
57° O processo interpretativo do Art.° 378° do CVM levado a cabo na sentença
recorrida consubstancia uma solução normativa cuja fonte não é a lei.
58° Nessa medida, estamos perante uma patente violação dos N°s 1 e 3 do artigo
29° da Constituição, que implica a inconstitucionalidade da norma.
59° Ao interpretar a referida norma no sentido de incluir na expressão “para si
ou para outrem”, dela constante, a própria sociedade de que o titular da
informação é representante, a norma do artigo 378° do CVM viola o disposto nos
artigos 61° N° 2 e 18° N°3 da CRP.
60° Ainda, por outro lado, a interpretação conferida na sentença recorrida à
citada norma conduz a uma solução normativa não materialmente fundada e
arbitrária, violando, assim, o princípio da proibição do arbítrio, integrante do
princípio do Estado de Direito democrático (Art.° 2° da Constituição) e o
direito à segurança consagrado no seu artigo 27°.
61° A interpretação normativa adoptada na sentença recorrida ao artigo 378° do
CVM é ainda violadora do princípio da igualdade (Art.° 13° da CRP) e do
princípio já referido da proibição do arbítrio, na medida em que conduz à
punição da conduta de uma pessoa física que age em representação e no interesse
da sociedade, utilizando em benefício da sociedade de que é representante uma
informação da própria sociedade, quando é certo que por tal conduta a
responsabilidade criminal da sociedade está excluída (vide Profs. Figueiredo
Dias e Costa Andrade, pág. 35 do Parecer junto aos autos).
62° A mesma interpretação normativa do preceito, que conduz à situação anómala e
absurda denunciada pelo Professor Faria Costa na página 40 do seu Parecer — o
legislador teria no artigo 393° do CVM punido como contra-ordenações condutas
muito mais graves do que a mera aquisição de acções antes do lançamento público
da oferta de aquisição, — viola manifestamente o princípio constitucional da
proporcionalidade”.
3. O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, fundamentando a
decisão, na parte que ora importa considerar, nos seguintes termos:
“7.5. Da invocação das inconstitucionalidades:
A este propósito alega o recorrente o seguinte: [...]
Respondendo à motivação de recurso, nesta parte, suscitou o M.P. as seguintes
questões:
“Na verdade, o presente recurso na parte da inconstitucionalidade é uma alegação
puramente nominal, sem qualquer fundamentação que respeite as exigências
contidas no art. 412.°, n.° 2, al. b) do Código de Processo Penal (CPP), pelo
que deve considerar-se inexistente a motivação devendo o recurso ser
liminarmente indeferido na parte da inconstitucionalidade, nos termos e por
força do disposto no art. 414.°, n.° 2, parte final, do CPP.
Além disso, todas as questões de Direito a que a defesa associa uma suposta
violação de preceitos constitucionais foram já suscitadas junto do Tribunal
Constitucional a propósito, exactamente, da interpretação e aplicação do crime
de abuso de informação previsto no art.° 378.° do CdVM, num caso em que, à luz
da acusação/pronúncia, uma pessoa física havia comprado valores mobiliários com
informação privilegiada para a carteira de uma pessoa colectiva.
E sobre essas questões foi proferido o Ac. do Tribunal Constitucional n.°
494/2003, de 27 de Novembro (publicado na íntegra no DR-II série, n.° 275, págs.
17716 a 17722).
Aí formularam, os então recorrentes, exactamente as mesmas questões de suposta
inconstitucionalidade, relativas a uma pretensa violação do princípio da
legalidade criminal, do princípio da proporcionalidade, do princípio da livre
iniciativa privada e do princípio da igualdade (cfr. Ac. do Tribunal
Constitucional n.° 494/2003, de 27 de Novembro, in DR-II série, n.° 275, pag.
17717 (n.° 3 do texto do Ac. do TC) e págs. 17718 a 17722 (n.°s 6 a 9 do texto
do Ac. do TC)
Em todos os casos, o Tribunal Constitucional ou considerou improcedente a
alegação dos recorrentes ou entendeu que, por estarem incorrectamente formulados
os problemas, não deveria conhecer as questões em causa. São particularmente
claras, elucidativas e fundamentadas as respostas dadas pelo Tribunal
Constitucional a estas questões, maxime a págs. 17719 a 17722 do DR-II, n.° 275,
de 27 de Novembro, cuja leitura esclarecerá qualquer um sobre o infundado das
pretensões da defesa no presente recurso e sobre o âmbito do tipo incriminador
do abuso de informação privilegiada, quando interpretado à luz do princípio da
legalidade criminal.
Por isso mesmo, nesta parte, o presente recurso está antecipadamente respondido
pela jurisprudência do próprio Tribunal Constitucional que de forma profunda,
argumentada, informada e convincente negou qualquer procedência a idênticas
pretensões dos então recorrentes.
[...]”
Ora a primeira questão, nesta parte, é a de que o presente recurso na parte
relativa às alegadas inconstitucionalidades deverá ser rejeitado liminarmente,
por se tratar de “uma alegação puramente nominal, sem qualquer fundamentação que
respeite as exigências contidas no art. 412.°, n.° 2, al. b) do Código de
Processo Penal (CPP), pelo que deve considerar-se inexistente a motivação”.
Nos termos do disposto no art.º 412° n.º 2 alínea b) do CPP, impendia sobre o
recorrente o ónus de alegação que consistia na indicação do sentido em que, no
entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com
que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que
devia ter sido aplicada, o que manifestamente não sucedeu como resulta do exame
das alegações e conclusões do recorrente, e assim sendo tal corresponde nos
termos do art.º 414° n°2 do CPP como inexistência de motivação, o que é
obrigatoriamente sancionado com a consequente rejeição do recurso, o que se
decide.
Mas mesmo que assim se não entendesse, a apreciação das invocadas
inconstitucionalidades teria de levar à improcedência do recurso, também nesta
parte face aos entendimentos já expostos supra e à jurisprudência do Tribunal
Constitucional abundantemente referida a propósito de todas as questões
suscitadas e tal como expendido nos aludidos acórdãos daquele Tribunal
(identificados supra). [...]”
4. Desta decisão houve recurso para o Tribunal Constitucional, através do
seguinte requerimento:
“[...] vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos
a seguir expostos:
1. O recurso é interposto nos termos do disposto na alínea b) do N° 1 do art°
70º da Lei do Tribunal Constitucional, a subir imediatamente, nos próprios autos
e com efeito suspensivo, por força do disposto no art° 78°, N° 3 da mesma Lei.
2. O objecto do recurso é a apreciação da inconstitucionalidade das seguintes
normas, aplicadas pelo Tribunal recorrido:
a) art°s 379º N° 1, alínea b), 358° e 359º do Código de Processo Penal, por
violação do disposto no art° 32° N°s 1 e 5 da CRP, inconstitucionalidade
suscitada pelo recorrente na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de
Lisboa da sentença proferida pelo 2° Juízo Criminal de Lisboa, designadamente no
nº 70 da motivação (pág. 23 ) e nos N°s 1° a 7° das conclusões (págs. 211 e 212
da motivação);
b) art° 378° do Código de Valores Mobiliários, por violação das seguintes normas
e princípios constitucionais:
(I) do disposto nos N°s 1 e 3 do art° 29° da CRP;
(II) do disposto nos art°s 61° N° 2 e 18° N° 3 da CRP;
(III) do princípio da proibição do arbítrio, integrante do princípio do Estado
de Direito democrático (art° 2° da Constituição);
(IV) do direito à segurança consignado no art° 27° da CRP;
(V) do princípio da igualdade consignado no art° 13° da Constituição;
(VI) do princípio da proporcionalidade.
Estas inconstitucionalidades do art° 378° do C.V.M. foram suscitadas pelo
recorrente ao longo do processo, no requerimento de abertura de instrução, na
Contestação e, designadamente. na motivação do recurso decidido no acórdão de
que ora se recorre, nos N°s 170 a 175 (págs. 209 a 210 da motivação) e nas
conclusões da motivação N°s 57° a 62° (págs. 225 e 226). [...]”.
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária no sentido de negar provimento ao recurso na parte em que dele se
conhece. É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
“5. Nos termos do requerimento de interposição do recurso, que delimita o
respectivo objecto, afirma o recorrente pretender ver apreciada, em primeiro
lugar, a inconstitucionalidade dos “artºs 379º Nº 1, alínea b), 358º e 359º do
Código de Processo Penal, por violação do disposto no artº 32º Nºs 1 e 5 da CRP,
inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente na motivação de recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa da sentença proferida pelo 2º Juízo Criminal de
Lisboa, designadamente no nº 70 da motivação (pág. 23) e nºs nºs 1 a 7 das
conclusões (págs 211 e 212 da motivação)”. Acontece, porém que o recurso
interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional pressupõe, designadamente, que o recorrente tenha
suscitado, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, uma questão de constitucionalidade reportada a uma
determinada norma jurídica – ou a uma sua interpretação normativa - e que, não
obstante, a decisão recorrida tenha efectivamente aplicado, como ratio
decidendi, a norma ou dimensão normativa que havia sido arguida de
inconstitucional.
Vejamos, então, se assim aconteceu.
5.1. Quanto ao primeiro dos pressupostos de admissibilidade do recurso referidos
supra, alega o recorrente que suscitou a questão de constitucionalidade que
pretende ver apreciada na motivação (nº 70) e nas conclusões (nºs 1 a 7) do
recurso que então apresentou perante o Tribunal da Relação de Lisboa. É o
seguinte o teor desses textos:
“70. Aliás, a sentença, ao proceder do modo referido, procedeu a uma
interpretação de dimensão normativa dos art°s 379º N° 1, 358° e 359° todos do
C.P.P., que torna estes preceitos inconstitucionais, por violação do disposto
nos artigos 32° n°s 1 e 5 da C.R.P.
Uma tal interpretação traduz negação efectiva do direito de defesa.
Se o Tribunal puder condenar com base em factos que não sejam previamente
imputados ao arguido, de modo a que este possa defender-se adequadamente das
imputações, cair-se-á na pura arbitrariedade, incompatível com a ideia de
Estado-de-Direito.
Recorde-se aqui a lição do STJ a este respeito:
«O princípio acusatório, um dos princípios estruturantes da nossa Constituição
processual penal, postula que a decisão final há-de incidir apenas sobre a
acusação, havendo o tribunal de ajuizar os fundamentos dela, pronunciando ou não
o arguido, condenando-o ou absolvendo-o pelos factos acusados, e só esses, de
modo a permitir-se que alguém só pode ser julgado por qualquer crime precedendo
acusação por parte de órgão distinto do julgador, sendo tal acusação condição e
limite do julgamento.
[…]
IV – A obrigação de advertência ou comunicação de alteração, substancial ou não,
dos factos, imposta pelos artigos 358º e 359º, do Código de Processo Penal,
implica que tal comunicação seja feita com todo o rigor, já que tal diligência
se destina a permitir que o visado exerça, em plenitude, o seu direito de
defesa, que não resultaria salvaguardado se o tribunal, afinal, pudesse
ultrapassar, unilateralmente, os limites daquela acusação, nos termos precisos
em que lhe foi transmitida.
V – Em qualquer dos quadros processuais desenhados – condenação por factos não
acusados sem prévia comunicação ao arguido, ou alteração da qualificação
jurídica para além dos precisos limites da comunicação feita – verifica-se a
nulidade da sentença ou do acórdão, nos termos do art. 379º, nº 1, b) do Código
de Processo Penal, que importa a invalidade da sentença ou acórdão recorrido,
bem como dos que dela dependerem e puderem ser afectados» (Ac. STJ de
16.01.2003, www.dgsi.pt, nº convencional JSTJ000).
A sentença cometeu, por isso, a nulidade prevista no art. 379º do C.P.P., que
ora se argúi para todos os efeitos legais, e fê-lo, obviamente, por condenar o
arguido sem que a Acusação tivesse provado a sua versão dos factos e sem que ao
arguido tivesse sido dada a possibilidade de se defender dessa nova versão
acolhida pelo Tribunal”.
[...]
“Em conclusão.
Nulidade da sentença:
1° Os factos dados como provados na sentença recorrida sob os n°s 36 e 37 dos
Factos Provados (fls. 572) não constavam da Acusação/Pronúncia.
2° Tais factos foram determinantes para a condenação do recorrente.
3° Nos termos do artigo 379° n° 1 alínea b) do CPP, é nula a sentença “que
condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a
houver, fora dos casos e das condições previstos nos art°.s 358° e 359°”.
4° É inquestionável que não se verificaram as condições previstas nos artigos
358° e 359° do C.P.P;
5° A M Juíza recorrida não comunicou ao arguido a alteração dos factos para que
ele pudesse preparar a sua defesa e a alteração não derivou de factos alegados
pela defesa.
6° A sentença cometeu, pois, a nulidade ora arguida, que é de extrema gravidade,
na medida em que o arguido foi condenado, sem ter tido qualquer possibilidade de
contrariar esta nova versão dos factos, que a M Juíza lançou na sentença.
7° Aliás, a sentença, ao proceder do modo referido, procedeu a uma interpretação
de dimensão normativa dos art°s 379º N° 1, 358° e 359° todos do C.P.P., que toma
estes preceitos inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 32° n°s
1 e 5 da C.R.P. (cfr. Ac. STJ de 16.01.2003 www.dgsi.pt, N° convencional
JSTJ000)”
Ora, o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente que nada obsta a que
seja questionada apenas uma certa interpretação ou dimensão normativa de um
determinado preceito. Nesses casos, porém, o recorrente tem o ónus de indicar,
de modo claro e perceptível, perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, a exacta dimensão normativa do preceito que entende não dever ser
aplicada por ser incompatível com a Constituição. Na verdade, como se disse,
entre muitos outros, no Acórdão nº 269/94 (Diário da República, II Série, de 18
de Junho de 1994), impõe-se que “ao suscitar-se a inconstitucionalidade de uma
norma, se identifique a mesma com precisão e clareza”, já que “suscitar a
inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal
perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de
constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que -
como já se disse - tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a
norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender
de quem suscita essa questão) viola a Constituição”. E a razão de ser desta
exigência é evidente e tem sido reiteradamente enunciada pelo Tribunal
Constitucional: visa que o tribunal recorrido seja confrontado com a questão de
constitucionalidade da norma que aplica como fundamento da decisão, em termos de
estar obrigado a dela conhecer, de tal modo que o Tribunal Constitucional apenas
sobre tal questão se pronuncie por via de recurso, não se substituindo ao
tribunal recorrido no conhecimento, em primeira mão, da referida questão de
constitucionalidade.
A isto acresce que, como é sabido, não compete a este Tribunal proceder a uma
comparação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia com os dados como
provados na decisão condenatória para, posteriormente, decidir se houve ou não
uma alteração - substancial ou não substancial - dos mesmos. Ao Tribunal
Constitucional compete apenas, quando muito, decidir se o critério normativo
utilizado pela decisão recorrida para concluir num sentido ou noutro é ou não
compatível com a Constituição.
Mas então, isto dito e analisadas as passagens da motivação de recurso e as
conclusões indicadas pelo recorrente, que supra transcrevemos, verifica-se, em
primeiro lugar, que de tais textos parece decorrer que o recorrente pretende que
o Tribunal Constitucional venha a proceder a uma comparação dos factos
constantes da acusação com os dados como provados na decisão condenatória para
decidir se houve ou não uma alteração dos mesmos, o que, de todo em todo, não
constitui, sequer, questão de constitucionalidade normativa susceptível de ser
apreciada por este Tribunal. Mas ainda que não seja essa a sua intenção, nem por
isso se pode concluir estarem presentes os pressupostos de admissibilidade do
recurso quanto a esta parte.
Na verdade, da leitura dos textos referidos pelo recorrente como sede da
suscitação da questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada, resulta
manifesto que não está aí identificado, em termos claros e precisos, qual o
critério normativo, alegadamente extraído por interpretação dos artigos 379º nº
1, alínea b), 358º e 359º do Código de Processo Penal, que o recorrente entendia
que não deveria ser aplicado pela decisão recorrida - para decidir da existência
ou inexistência de uma alteração substancial ou não substancial dos factos - por
ser incompatível com a Constituição. E, tanto assim é, que a própria decisão
recorrida, entendendo não estar adequadamente suscitada a questão, não se
pronunciou sobre a alegada constitucionalidade reportada aos artigos 379º n° 1,
358° e 359°, do Código de Processo Penal, afirmando mesmo que “o presente
recurso na parte relativa às alegadas inconstitucionalidades deverá ser
rejeitado liminarmente, por se tratar de uma alegação puramente nominal, sem
qualquer fundamentação que respeite as exigências contidas no art. 412º, nº 2,
al. b) do CPP, pelo que deve considerar-se inexistente a motivação”. E tudo isto
sem que o recorrente tenha confrontado aquele Tribunal com qualquer questão de
eventual nulidade dessa decisão por alegada omissão de pronúncia.
Ora, competindo apenas ao Tribunal Constitucional, em via de recurso, confrontar
com a Constituição o critério normativo utilizado pela decisão recorrida, sempre
seria necessário, para que tal intervenção fosse possível, que o recorrente
tivesse suscitado, perante o tribunal que proferiu tal decisão, a questão da
inconstitucionalidade de um, claramente identificado, critério (ou dimensão)
normativo(a) dos artigos do Código de Processo Penal por si questionados. E
isso, manifestamente, como já se viu, o recorrente nunca fez, limitando-se,
designadamente na conclusão 7ª da alegação de recurso (que repete o que já
declarara no 1º parágrafo do nº 70ª da motivação), a afirmar que “a sentença, ao
proceder do modo referido, procedeu a uma interpretação de dimensão normativa
dos art°s 379º N° 1, 358° e 359° todos do C.P.P., que torna estes preceitos
inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 32° n°s 1 e 5 da
C.R.P.”, sem nunca explicitar precisamente qual seria essa “interpretação de
dimensão normativa”.
Ora, a não suscitação, de modo processualmente adequado, de uma questão
constitucionalidade normativa reportada aos artigos 379º, n° 1, 358° e 359° do
Código de Processo Penal, obsta, por si só, a que, nesta parte, se possa
conhecer do recurso.
5.2. Mas ainda que, numa interpretação extremamente favorável, em exclusivo
benefício do recorrente, se pudesse admitir que, com aquelas passagens da
alegação de recurso, o recorrente teria tido a intenção, todavia não conseguida,
de formular uma questão de inconstitucionalidade normativa reportada a uma
determinada dimensão dos referidos artigos do Código de Processo Penal, então
esta só poderia ser a de que os preceitos questionados teriam sido interpretados
num sentido que permitiria a condenação por factos não constantes da acusação ou
da pronúncia, sem que ao arguido fosse dada oportunidade de se defender dos
novos factos.
Mas, nessa hipótese, uma outra razão sempre conduziria à mesma conclusão, isto
é, à impossibilidade de, nesta parte, se conhecer do objecto do recurso. É que,
manifestamente, aqueles preceitos não foram aplicados pela decisão recorrida,
como ratio decidendi, com esse sentido normativo. Com efeito, na parte ora
relevante, refere-se expressamente na mesma que “a alegada nulidade quanto ao
objecto do processo não existe porquanto não consta da sentença qualquer facto
novo que não constasse da acusação/pronúncia. O facto descrito no nº 37 da
sentença recorrida e que na motivação de recurso se considera ser um «outro
facto que não constava da acusação» consta na verdade dos números 36º e 37º e
também de muitos outros artigos da acusação (42º, 70º, 75º, 76º, 77º, 78º, 79º e
80º da acusação)”[…]. “O que existe é uma descrição de um acontecimento que já
constava integralmente da acusação, e que quando é feito pela sentença adquire a
forma adequada à produção de prova que se fez em audiência sobre esse mesmo
acontecimento. Como muito acertadamente observa o Digno Magistrado do MºPº em 1ª
instância na sua resposta à motivação de recurso: «A defesa incorre num erro
básico porque se limita a comparar a descrição dos artigos 36º e 37º da acusação
com a descrição dos números 36 e 37 dos factos provados na sentença. A
identificação de possíveis factos novos tem de se fazer perante a acusação (ou a
pronúncia) na sua totalidade (isto é todos os factos descritos na peça
acusatória) e não perante dois factos isolados e em função da redacção formal de
um facto que possui o mesmo número na acusação e na sentença». [...] Porque não
existem factos novos na sentença, não há qualquer alteração dos factos e, como
tal, não são aplicáveis ao caso concreto os artigos 358º e 359º do Código de
Processo Penal” (negritos aditados).
Tanto bastaria para que, também por esta razão, por si só igualmente suficiente,
se não pudesse, nesta parte, conhecer do objecto do recurso.
5.3.Assim sendo, há que concluir pela impossibilidade de conhecer do objecto do
recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade que o recorrente
interpôs ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, na parte em que se refere aos “art°s 379º N° 1, alínea
b), 358° e 359º do Código de Processo Penal”, por manifesta falta dos seus
pressupostos de admissibilidade.
6. Pretende ainda o recorrente ver apreciada a constitucionalidade do artigo
378° do Código de Valores Mobiliários, por alegada violação dos artigos 29º, nºs
1 e 3, 61º, nº 2, 18º, nº 3, 27º e 13º, da Constituição.
A questão de constitucionalidade que, nesta parte, vem agora colocada pelo
recorrente não é nova na jurisprudência deste Tribunal e, inclusivamente, desta
Secção, podendo perspectivar-se como simples para efeitos do disposto no n.º 1
do artigo 78º-A da LTC, uma vez que fora já colocada, em idênticos termos, no
processo que deu origem ao Acórdão nº 494/2003 (publicado no Diário da
República, II Série, de 27 de Novembro de 2003 e disponível na página Internet
do Tribunal Constitucional, no endereço
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Nesse acórdão, para o qual
se remete e que, dada a sua disponibilidade pública, se torna desnecessário
reproduzir, o Tribunal concluiu, em primeiro lugar, pelo não conhecimento do
recurso quanto à alegada violação do princípio da legalidade/tipicidade, e, em
segundo lugar, após confronto com as diversas normas e princípios
constitucionais relevantes, pela não inconstitucionalidade do preceito
questionado. É esta jurisprudência que, por manter inteira validade e ser
inteiramente transponível para os presentes autos, aqui se reitera.
Agora apenas se acrescenta, porque o recorrente dessa forma expressamente
argumenta, que o princípio da proporcionalidade também não é violado, pelo facto
de a violação do dever de não adquirir valores mobiliários com base em
informação privilegiada ser punida como crime pelo artigo 378º do Código de
Valores Mobiliários e o artigo 393º do mesmo diploma punir como contra-ordenação
a violação do dever de lançar uma Oferta Pública de Aquisição, facto que, do
ponto de vista do recorrente, seria alegadamente mais grave. Não só porque -
como se afirma na decisão recorrida - não é evidente que o facto punido como
crime pelo artigo 378º do CVM seja, como pretende o recorrente, um facto menos
grave do que aquele que é punido como contra-ordenação nos termos do artigo 393º
do mesmo diploma, mas também, fundamentalmente, porque sempre seria ilegítima,
como igualmente se menciona na decisão recorrida, tratando-se de factos
distintos, a inferência sistemática que o recorrente daí procura retirar. Com
efeito, o parâmetro para aferir da compatibilidade de um determinado preceito
penal com um princípio constitucional só pode ser o preceito constitucional de
onde tal princípio se retira e não um preceito de direito infraconstitucional de
onde decorra a tipificação como ilícito distinto de um facto também ele
diferente. E, sobre a compatibilidade do artigo 378º do CVM com os preceitos da
Constituição de onde decorrem os princípios alegadamente violados, já o Tribunal
se pronunciou no citado Acórdão n.º 494/2003, concluindo pela sua não
desconformidade constitucional”.
6. É desta decisão que vem interposta a presente reclamação, em que, em síntese,
o reclamante: (i) questiona o facto de as questões de constitucionalidade
reportadas ao artigo 378º do CVM terem sido objecto de decisão sumária baseada
“num único acórdão, em processo distribuído, por coincidência fortuita, ao mesmo
distinto Relator”, (nºs 1 a 7 da reclamação); (ii) contesta depois (nºs 8 a 13)
a decisão sumária na parte em que se concluiu pela impossibilidade de conhecer
do objecto do recurso no que se refere aos artigos 379° n°1, alínea b), 358° e
359° do Código de Processo Penal; (iii) contesta ainda (nºs 17 a 26) a decisão
sumária na parte em que se concluiu pela impossibilidade de conhecer da alegada
violação do princípio da legalidade/tipicidade, no que se refere à interpretação
do artigo 378º do Código dos Valores Mobiliários efectuada pela decisão
recorrida; (iv) contesta, por fim, (nºs 26 a 32º) a conclusão a que aí se chegou
no sentido de que aquele preceito do Código dos Valores Mobiliários, na
interpretação que vem questionada, não viola os princípios constitucionais da
igualdade, da proporcionalidade, da liberdade de iniciativa económica, ou o
direito de propriedade, consagrados, respectivamente, nos artigos 13º, 18º, nºs
2 e 3 e 61º da Constituição.
7. Notificado para responder, disse o Ministério Público, ora reclamado:
“1 — São três as questões dirimidas na decisão reclamada e objecto da presente
reclamação:
2 — A primeira delas traduz-se em saber se se situa dentro dos poderes
cognitivos do Tribunal Constitucional — circunscritos à estrita dirimição da
questão de inconstitucionalidade normativa suscitada — não apenas sindicar certo
critério normativo, explicitamente adoptado no acórdão recorrido, mas verificar
se, em termos substanciais, o mesmo foi adequado e concludentemente adoptado
pelas instâncias, passando, para tal, a proceder a uma autónoma comparação —
concreta e casuística — entre a matéria de facto constante da acusação e da
pronúncia e a que é especificada na sentença condenatória, de modo a concluir
que, em certo caso concreto, há “factos novos” na referida sentença.
3 — A resposta a tal questão é, a nosso ver, claramente negativa — estando
vedado ao Tribunal Constitucional tal actividade — traduzida numa directa
valoração e comparação da matéria de facto, sedimentada ao longo do processo, de
modo a “corrigir” o critério normativo explicitamente adoptado na ordem dos
tribunais judiciais, confrontando o critério — autónoma e directamente inferido
da dita “comparação” das versões de facto — com os preceitos e princípios
constitucionais.
4 — Na verdade — ao fazê-lo — estaria o Tribunal Constitucional a intrometer-se,
de forma inadmissível, nas competências atribuídas constitucionalmente aos
tribunais judiciais, apreciando e valorando directamente os factos especificados
na pronúncia e na sentença final, sobrepondo o seu juízo ao das instâncias, de
modo a decidir se estamos perante meras alterações da “redacção formal” de um
mesmo facto ou perante factos substancialmente inovatórios.
5 — Não se trataria, nesta versão das competências do Tribunal Constitucional,
de interpretar o direito infraconstitucional — na medida em que tal se revelasse
imprescindível à dirimição de certa questão de inconstitucionalidade normativa —
mas de valorar e comparar directamente versões diferenciadas da matéria de facto
ao longo do processo, de modo a concluir, em termos definitivos e eventualmente
contrários ao julgamento das instâncias, se há ou não coincidência entre tais
versões fácticas.
6 — A segunda questão — ligada à delimitação das interpretações normativas
sindicáveis pelo Tribunal Constitucional — tem que ver com a qualificação como
questão “normativa” da que se consubstancia numa eventual e alegada violação do
princípio da legalidade ou tipicidade, traduzida em se ter adoptado ou acolhido
um sentido normativo que excede a letra e ratio do preceito legal definidor do
tipo.
7 — Ora, face à orientação adoptada pelo Plenário deste Tribunal Constitucional,
é evidente que deverá adoptar-se o entendimento restritivo que vem prevalecendo
na jurisprudência constitucional — assente, não em qualquer desproporcionada
prevalência da forma sobre o fundo, mas em razões ligadas à própria arquitectura
da nossa organização judiciária e à necessidade de o Tribunal Constitucional não
“expropriar” os tribunais judiciais da sua competência para interpretarem o
direito infraconstitucional.
8 — Finalmente — e tal traduz a terceira questão suscitada pelo reclamante —
importará saber se a norma definidora do tipo legal em causa viola, porventura,
os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da liberdade de iniciativa
económica.
9 — Importando apenas salientar que a “remissão, questionada pelo reclamante,
para a solução de não inconstitucionalidade, acolhida no acórdão n° 494/03, está
em estrita consonância com o entendimento jurisprudencial reiterado acerca da
amplíssima margem de discricionariedade legislativa, reconhecida ao legislador
penal na construção dos vários tipos, traduzindo mero aforamento ou
concretização dessa ideia-base.
10 — E sendo evidente que, apesar do esforço argumentativo do reclamante, tal
entendimento não é minimamente posto em causa, em nada abalando o entendimento
adoptado por este Tribunal acerca da referida margem de discricionariedade
legislativa na delimitação do tipo previsto no artigo 378° do CVM, pelo que
deverá improceder a presente reclamação”.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
III – Fundamentação
8. Com a presente reclamação o ora reclamante vem contestar todas as conclusões
a que se chegou na decisão sumária reclamada, que supra transcrevemos, e,
inclusivamente, a própria circunstância de as mesmas terem sido objecto de
decisão sumária, proferida ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC.
Mas, como se verá já de seguida, sem razão.
9. Conclui a decisão sumária reclamada, em primeiro lugar, pela impossibilidade
de conhecer do objecto do recurso na parte em que o recorrente pretendia ver
apreciada a inconstitucionalidade dos “artºs 379º Nº 1, alínea b), 358º e 359º
do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artº 32º Nºs 1 e 5 da
CRP, inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente na motivação de recurso
para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença proferida pelo 2º Juízo
Criminal de Lisboa, designadamente no nº 70 da motivação (pág. 23) e nºs nºs 1 a
7 das conclusões (págs. 211 e 212 da motivação)”.
E, concluiu-se nesse sentido, em síntese, quer porque (i) “analisadas as
passagens da motivação de recurso e as conclusões indicadas pelo recorrente” se
verifica que o mesmo parece pretender “que o Tribunal Constitucional venha a
proceder a uma comparação dos factos constantes da acusação com os dados como
provados na decisão condenatória para decidir se houve ou não uma alteração dos
mesmos, o que, de todo em todo, não constitui, sequer, questão de
constitucionalidade normativa susceptível de ser apreciada por este Tribunal”,
quer porque (ii), ainda que não fosse essa a sua intenção, “da leitura dos
textos referidos pelo recorrente como sede da suscitação da questão de
constitucionalidade que pretende ver apreciada, resulta manifesto que não está
aí identificado, em termos claros e precisos, qual o critério normativo,
alegadamente extraído por interpretação dos artigos 379º nº 1, alínea b), 358º e
359º do Código de Processo Penal, que o recorrente entendia que não deveria ser
aplicado pela decisão recorrida - para decidir da existência ou inexistência de
uma alteração substancial ou não substancial dos factos - por ser incompatível
com a Constituição”, quer porque (iii), finalmente, “aqueles preceitos não foram
aplicados pela decisão recorrida, como ratio decidendi, com o sentido normativo
que o recorrente [alegadamente] pretendia ver confrontado com a Constituição”;
ou seja, em termos de “permitir a condenação por factos não constantes da
acusação ou da pronúncia, sem que ao arguido seja dada oportunidade de se
defender dos novos factos”.
Na reclamação o reclamante procura rebater estas conclusões afirmando, também em
síntese, que embora seja claro que “na sentença não se afirma explicitamente
esse critério normativo”, o mesmo “se infere dos termos da própria sentença”. É
que, no seu entendimento, “Se o Tribunal Constitucional restringir o
conhecimento da constitucionalidade de normas, com a conformação que lhes forem
dadas pelos tribunais, apenas quando as decisões recorridas explicitamente
afirmem interpretações que tornem tais normas contrárias à Constituição, ficaria
aberta a via à impunidade na aplicação de normas cuja interpretação viola a Lei
Fundamental”, acrescentando ainda que, “com isso, o Tribunal Constitucional
deixará de cumprir a sua função de escrutínio das decisões judiciais, em via de
recurso”. Explicita, ainda, que “o que está em causa no caso sub júdice é uma
interpretação das normas não afirmada explicitamente pelo Tribunal mas que se
deduz dos elementos e circunstâncias próprias da decisão”, concluindo, nesta
parte, dizendo que “O Tribunal Constitucional [...] pode e deve verificar se a
sentença condenou, ou não, o recorrente com base em factos não constantes da
pronúncia e, em caso afirmativo, se o Tribunal recorrido procedeu à
interpretação dos preceitos em causa de modo tão distante da sua letra e do seu
espírito que acabou por redundar numa solução normativa cuja fonte não é a lei e
que afronta a Constituição”.
Vejamos.
9.1. Na decisão sumária reclamada afirmara-se que das passagens da motivação de
recurso e das conclusões indicadas pelo recorrente no requerimento de
interposição do mesmo, parecia decorrer que o recorrente pretendia que o
Tribunal Constitucional viesse a proceder a uma comparação dos factos constantes
da acusação com os dados como provados na decisão condenatória para decidir se
houve ou não uma alteração (substancial ou não substancial) dos mesmos. Os
termos da reclamação agora apresentada não deixam dúvidas de que é isso mesmo
que o recorrente pretende que o Tribunal faça. Mas, como se disse já na decisão
sumária reclamada, em termos que merecem a nossa inteira concordância, pelo que
agora se reiteram, ao Tribunal Constitucional não compete efectivamente proceder
a essa comparação casuística dos factos constantes da acusação ou da pronúncia
com os dados como provados na sentença, para posteriormente decidir se houve ou
não alteração dos mesmos e, em caso afirmativo, se a mesma é ou não substancial,
mas apenas confrontar com a Constituição os critérios normativos na base dos
quais as instâncias tomam essas decisões. Como salienta o Representante do
Ministério Público junto deste Tribunal, está efectivamente “vedado ao Tribunal
Constitucional tal actividade - traduzida numa directa valoração e comparação da
matéria de facto, sedimentada ao longo do processo, de modo a «corrigir» o
critério normativo explicitamente adoptado na ordem dos tribunais judiciais,
confrontando o critério - autónoma e directamente inferido da dita «comparação»
das versões de facto - com os preceitos e princípios constitucionais”. É que,
como ainda acrescenta aquele Magistrado, “ao fazê-lo estaria o Tribunal
Constitucional a intrometer-se, de forma inadmissível, nas competências
atribuídas constitucionalmente aos tribunais judiciais, apreciando e valorando
directamente os factos especificados na pronúncia e na sentença final,
sobrepondo o seu juízo ao das instâncias, de modo a decidir se estamos perante
meras alterações da «redacção formal» de um mesmo facto ou perante factos
substancialmente inovatórios”, sendo que, “nesta versão das competências do
Tribunal Constitucional, já não se trataria de interpretar o direito
infraconstitucional - na medida em que tal se revelasse imprescindível à
dirimição de certa questão de inconstitucionalidade normativa - mas de valorar e
comparar directamente versões diferenciadas da matéria de facto ao longo do
processo, de modo a concluir, em termos definitivos e eventualmente contrários
ao julgamento das instâncias, se há ou não coincidência entre tais versões
fácticas”.
9.2. Acresce que mesmo que, o que agora apenas se admite para efeitos de
continuação do raciocínio, pudesse admitir-se que estávamos efectivamente
perante uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, a verdade é
que, como também se concluíra já na decisão sumária reclamada, o recorrente não
teria suscitado adequadamente essa questão de constitucionalidade normativa
perante o Tribunal da Relação de Lisboa. É certo que, na reclamação que agora
apresenta, o reclamante rebate esta conclusão. Fá-lo, porém, em termos puramente
conclusivos - limitando-se a afirmar que não é verdade que “não tenha indicado
«de modo claro e perceptível, perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, a exacta dimensão normativa do preceito que entende não dever ser
aplicada por ser incompatível com a Constituição»”, uma vez que “na sua
motivação de recurso para a Relação, afirmou que a interpretação normativa que o
Tribunal da 1ª Instância deu aos preceitos questionados permite «condenar com
base em factos que não sejam previamente imputados ao arguido, de modo a que
este não possa defender-se adequadamente das imputações”- que, no entanto, em
nada abalam o que, sobre este ponto, detalhadamente se disse naquela decisão
sumária reclamada. Como então já se demonstrou, e agora se reitera, afirmar que
“a interpretação normativa que o Tribunal de 1ª instância deu aos preceitos
[...] permite condenar com base em factos que não sejam previamente imputados ao
arguido [...]”, não é ainda identificar, de modo processualmente adequado, o
critério normativo com base no qual, alegadamente, a decisão recorrida chegou a
essa conclusão. Dito de outra forma: a haver uma questão de constitucionalidade
susceptível de integrar o recurso que o ora reclamante interpôs, ela deveria ter
sido formulada por referência e imputada ao critério normativo utilizado como
ratio decidendi pela decisão recorrida para concluir pela inexistência de
alteração (substancial ou não substancial) dos factos e não ao resultado
concreto, no âmbito do presente processo, da utilização desse critério
normativo. E, como já se demonstrou, manifestamente não foi isso que o ora
reclamante optou por fazer, o que conduziu inclusivamente a que a própria
decisão recorrida, entendendo não estar adequadamente suscitada qualquer questão
de constitucionalidade normativa, optou por não se pronunciar sobre a alegada
constitucionalidade reportada aos artigos 379º n.º 1, 358° e 359°, do Código de
Processo Penal.
10. Pretendia ainda o recorrente que o Tribunal Constitucional apreciasse a
constitucionalidade do artigo 378º do Código dos Valores Mobiliários, na
interpretação normativa com que foi efectivamente aplicado pela decisão
recorrida, ou seja em termos de incluir na sua previsão a conduta de um membro
do órgão de administração de uma sociedade que, sendo titular de informação
privilegiada em função dessa qualidade, adquira, com base nessa informação e
para essa mesma sociedade, valores mobiliários, por alegada violação dos
princípios da legalidade/tipicidade, igualdade, proporcionalidade, liberdade de
iniciativa económica e do direito à propriedade privada.
Porque, nesta parte, a questão de constitucionalidade que vem colocada coincide
exactamente com a que foi objecto do acórdão nº 494/2003, desta Secção, a
decisão sumária reclamada limitou-se, no essencial, a remeter para a extensa
fundamentação de que a questão foi objecto nesse aresto. Em consequência,
decidiu-se não conhecer do objecto do recurso, por não estar em causa uma
verdadeira questão de constitucionalidade normativa, na parte em que o
recorrente pretendia ver confrontada com o princípio da legalidade ou da
tipicidade, consagrado no artigo 29º da Constituição, a interpretação que a
decisão recorrida fez do artigo 378º do Código dos Valores Mobiliários, e negar
provimento ao recurso na parte em que o recorrente suscitava a
inconstitucionalidade material do artigo 378º do Código dos Valores Mobiliários,
na interpretação que vinha questionada, por alegada violação dos demais
princípios constitucionais.
10.1. Na sua reclamação o reclamante começa por questionar o próprio facto de as
questões de constitucionalidade que colocou no requerimento de interposição do
recurso em relação ao artigo 378º do CVM terem sido decididas “tão
expeditamente” (n.º 4), sem que lhe tivesse sido permitido “expor no momento
próprio as suas razões e obter o parecer de reputados constitucionalistas” (n.º
4). Estranha ainda o facto de a decisão sumária, no que se refere à parte em que
vinha questionada a constitucionalidade do artigo 378º do C.V.M., ter sido
baseada “num único acórdão, em processo distribuído, por coincidência fortuita,
ao mesmo distinto Relator”, (n.º 4), que, além do mais, desempenhou funções na
CMVM, o que, no entendimento do reclamante, confere ao mesmo “uma visão e
perspectiva do crime de abuso de informação nascidas no âmbito das funções que
exerceu na entidade que desencadeou o processo” (nº 4). Essa circunstância,
acrescenta o reclamante, deveria ter conduzido o Relator a “possibilitar a
análise do caso (…) com a ponderação de outras visões e perspectivas que só o
colectivo de juízes proporciona” (n.º 4), tanto mais que as posições assumidas
pelo recorrente foram subscritas “por tão ilustres jurisconsultos como Gomes
Canotilho, Marcelo Rebelo de Sousa, Figueiredo Dias, Faria e Costa e Costa
Andrade” (n.º 4), pelo que deveriam ter merecido “maior consideração do ilustre
Relator do que arrumá-las com a mera invocação de outro acórdão por si relatado”
(n.º 4). Acrescenta, finalmente, que “nem sequer existe total coincidência entre
as questões decididas no Acórdão nº 494/2003 e as que no presente recurso foram
suscitadas” (nº 5).
Sem qualquer razão, porém.
10.2. Sendo a questão de constitucionalidade normativa que vem colocada
exactamente a mesma que foi objecto de apreciação, por esta mesma Secção, em
acórdão tirado por unanimidade no que se refere à parte em que se decidiu pela
não inconstitucionalidade material por alegada violação dos princípios da
igualdade, proporcionalidade, liberdade de iniciativa económica e do direito à
propriedade privada - tendo apenas um voto de vencido relativo à parte em que o
Tribunal decidiu não conhecer da questão na parte em que o recorrente pretendia
ver confrontado o artigo 378º com o princípio da legalidade/tipicidade penal, e,
ainda aí, tendo a Conselheira que votou vencida o cuidado de afirmar que,
conhecendo da questão, concluiria pela não violação daquele princípio
constitucional -, justificava-se efectivamente o recurso à decisão sumária a que
se refere o artigo 78º-A, nº 1, da LTC. Agora apenas se acrescenta, e somente
porque o reclamante insiste reiteradamente na questão, que a ponderação de
“outras visões e perspectivas que só o colectivo de juízes proporciona”,
designadamente das que foram trazidas ao processo através da junção dos
pareceres dos Professores Gomes Canotilho, Figueiredo Dias, Costa Andrade, Faria
e Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, já foi efectivamente feita no Acórdão nº
494/2003, tirado em recurso em que o recorrente era igualmente patrocinado pelo
Mandatário do ora reclamante e em que também já haviam sido juntos pareceres
daqueles Jurisconsultos, cuja argumentação fora, então, atentamente ponderada.
Finalmente, uma última nota quanto à alegada inexistência de “total coincidência
entre as questões decididas no Acórdão nº 494/2003 e as que no presente recurso
foram suscitadas” (nºs 5, 28 e 30 da Reclamação). Rigorosamente, ao contrário do
que pretende o reclamante, não é de falta de coincidência entre as questões de
constitucionalidade que se trata, mas antes da mera invocação, neste caso, de um
argumento adicional para uma alegada violação do princípio da proporcionalidade
- que, já se vira, não existir -, e que não havia sido expressamente suscitado
anteriormente. Na verdade, foi de novo alegada a violação do princípio da
proporcionalidade, desta vez decorrente da comparação entre a punição, como
crime, dos factos que constituem objecto dos presentes autos e a punição, como
contra-ordenação, dos factos descritos no artigo 393º do Código de Valores
Mobiliários. Mas, precisamente porque se tratava apenas de um argumento ainda
não considerado – para corroborar uma violação do princípio da proporcionalidade
que se entendera não existir -, a ele se respondeu autonomamente na decisão
sumária reclamada, em termos que, por merecerem a nossa inteira concordância,
agora se reiteram, concluindo-se pela sua manifesta improcedência.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em
consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do
objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 4 de Julho de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício