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Processo n.º 992/05
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ora recorrido, de
16 de Novembro de 1999, foi o ora recorrente, A., condenado na pena disciplinar
de “perda de pensão pelo período de 12 meses”.
2. Inconformado com este despacho o ora recorrente interpôs no Tribunal Central
Administrativo recurso contencioso de anulação, a que foi negado provimento por
acórdão de 1 de Julho de 2004.
3. Novamente inconformado o ora recorrente recorreu desta decisão para o Supremo
Tribunal Administrativo tendo, a concluir as suas alegações, formulado as
seguintes conclusões:
“1 – Ao recorrente, que é funcionário público aposentado, foi aplicada a pena
disciplinar de «perda de pensão pelo período de doze meses», face ao art. 15º,
nº 1, do Estatuto Disciplinar.
2 – O acto submetido a juízo de censura contenciosa, quando concretizado (e só
ainda não o foi porque está suspensa a sua eficácia), determina a privação total
da pensão não deixando ao Recorrente meio de subsistência – contendendo, pois,
com a sua sobrevivência. Assim,
3 – A norma em que se estriba – o art. 15º, nº 1, do Estatuto Disciplinar, é
materialmente inconstitucional por colidir com os arts. 1º (princípio da
dignidade da pessoa humana) e 63º, nº 1 e 3, da Constituição. Deste modo,
4 – Dever-lhe-ia ter sido recusada aplicação (art. 204º da Constituição e art.
4º, nº 3 do ETAF de 1984) – pelo que, não tendo assim decidido, o douto acórdão
recorrido, não fez boa interpretação e aplicação do direito e, pois, não fez bom
julgamento.
5 – A existência de norma de direito público constitucionalmente acomodável é
«elemento essencial» do acto administrativo. Ora,
6 – A norma inconstitucional é uma «não norma» (se é que não é mesmo uma
«anti-norma») – o que significa «falta» de «elemento essencial» do acto
administrativo e, pois, determina a sua nulidade (cfr. arts. 120º e 133º, nº 1,
primeira parte, do Código de Procedimento Administrativo).
4. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 11 de Outubro de 2005,
decidiu negar provimento ao recurso. Para concluir desta forma, e para o que
agora importa, fundamentou assim a decisão:
“[...] Nas alegações do recurso jurisdicional ora em apreço, sem dirigir
qualquer crítica frontal à matéria ou questões apreciadas e decididas no acórdão
do TCA, o recorrente limita-se apenas a sustentar a inconstitucionalidade
material do art.º 15° n.° 1 do ED, norma esta em que se fundamentou o acto
contenciosamente impugnado e que determina que para os funcionários e agentes da
Administração Pública aposentados as penas de “inactividade” ou “suspensão”
sejam “substituídas pela perda do direito à pensão por igual tempo”.
Segundo o recorrente, o art.º 15° n.° 1 do ED, norma em que se fundamentou o
acto impugnado para punir o recorrente enquanto aposentado da função pública
seria materialmente inconstitucional por colidir com o disposto nos art.º 1 °
(princípio da dignidade humana) e 63° n.° 1 e 3 da CRP.
[...]
Afigura-se-nos no entanto que o art.º 15° nº1 do ED, aprovado pelo DL 24/84, de
16 de Janeiro, norma em que se fundamentou o acto contenciosamente impugnado, ao
permitir ou impor que, na situação, ao recorrente fosse substituída a pena
disciplinar de inactividade que inicialmente fora proposta pela pena de “perda
de pensão” graduada em doze meses não ofende os preceitos constitucionais
indicados pelo recorrente.
Como resulta da matéria de facto, contra o ora recorrente, na altura
desempenhando as funções de chefe de repartição de finanças, em processo
disciplinar foi deduzida acusação, tendo sido “proposta, no relatório de
15.11.96, a pena unitária de inactividade por 20 meses”. Atendendo no entanto ao
facto de o recorrente se ter aposentado na pendência do processo disciplinar, a
administração acabou por substituir a pena proposta, aplicável aos funcionários
em efectividade de serviço, pela pena de “perda de pensão pelo período de 20
meses, conforme prevê o n.° 1 do art.º 15° do Estatuto Disciplinar”, pena essa
que acabou por ser reduzida para 12 meses por força de Lei da Amnistia
entretanto publicada.
A punição com pena de inactividade inicialmente proposta ao recorrente determina
para o funcionário punido, além do mais, “o não exercício do cargo ou função e a
perda, para efeitos de remuneração, antiguidade e aposentação, de tantos dias
quantos tenha durado a inactividade” – art.º 13 n.° 2, 3 e 5 do E.D.
Trata-se por conseguinte de uma pena susceptível de ser aplicável a quem se
encontre no efectivo exercício de funções. Caso o funcionário na pendência do
processo disciplinar venha eventualmente a reforma-se, na prática redundaria em
mera inutilidade aplicar a esse funcionário aposentado uma pena de
“inactividade”, uma vez que o essencial dos efeitos dessa pena já se mostrariam
neutralizados atentos os efeitos decorrentes da aposentação e por força da qual
fica o funcionário dispensado de exercer funções ou seja inactivo.
A lei exige no entanto que a pena de inactividade seja sempre executada mesmo
que o funcionário passe à situação de aposentado (cfr. art.º 5° n.º 3 do ED).
Por isso e para que o funcionário não fique na prática por punir quando, no
exercício das respectivas funções cometa infracção disciplinar a que corresponda
nomeadamente pena disciplinar de “inactividade” como aconteceu na situação em
apreço e posteriormente se venha a aposentar antes de a pena ter sido
integralmente executada” determina aquela disposição (art.º 15° n.° 1 do ED) que
“para os funcionários e agentes aposentados as penas de . . . inactividade serão
substituídas pela perda da pensão por igual tempo”.
Daí que e no que respeita ao aspecto remuneratório ambas as penas se equivalem,
já que em ambas as situações - perda de “remuneração” correspondente a 12 meses
aplicável ao arguido caso se tivesse mantido em exercício de funções, na
situação foi substituída pela “perda da pensão” por igual período de tempo (12
meses).
Vistas as coisas por outro prisma, a questão colocada pelo recorrente enquanto
aposentado não pode ser vista de forma diversa daquela que se colocaria caso o
recorrente tivesse sido punido antes de se ter aposentado ou seja enquanto em
efectividade de funções, porque a questão da inconstitucionalidade, nos termos
do alegado pelo recorrente residiria no alegado facto de a execução da pena que
lhe foi aplicada determinar “a privação total da pensão não deixando ao
recorrente meio de subsistência - contendendo, pois, com a sua sobrevivência”.
O que nos levaria a concluir que, em qualquer situação e acolhendo a invocada
inconstitucionalidade, jamais o recorrente poderia ser punido com uma pena de
suspensão do exercício da sua actividade, ou com uma pena de inactividade,
porque ambas as penas implicam perda total de remuneração durante os dias em que
tenha durado a suspensão ou a inactividade o que certamente seria inconcebível
num Estado de direito pelas razões que se nos afiguram como óbvias.
Aliás, acolhendo a invocada inconstitucionalidade nos termos do sustentado pelo
recorrente, seria sempre inadmissível a punição de um funcionário com a pena de
demissão, independentemente da gravidade da infracção praticada, já que a
punição com tal pena deixaria o funcionário punido sem qualquer vencimento.
Em parte alguma a CRP proíbe que aos funcionários ou agentes da Administração
sejam aplicáveis penas de suspensão ou de inactividade, caso a infracção
praticada seja punível com essas espécies de penas. O mesmo se diga no que
respeita à privação de liberdade em caso da prática de crime cominado com essa
espécie de penas (cfr. nomeadamente art.º 27° da CRP).
Tendo em consideração a relação laboral, o que a Constituição proíbe são apenas
os “despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos” -
cfr. art.º 53° da CRP - e não a punição do infractor com qualquer das penas
disciplinares previstas no art.º 110 do ED, desde que o agente tenha cometido um
ilícito disciplinar que, pela sua gravidade, seja merecedor de ser punido com
qualquer dessas penas.
E embora aquelas disposições da CRP possam ser interpretadas “como garantindo a
todo o cidadão a percepção de uma prestação proveniente do sistema de segurança
social que lhe possibilite uma subsistência condigna...” ou o direito “a um
mínimo de sobrevivência” (cfr. ac. T.C. n. 349/91) como se escreveu no Ac. deste
STA de 14.06.2005, rec. 108/05 “a garantia a uma existência condigna... não pode
ter o alcance pretendido pelo recorrente de o isentar de cumprir determinadas
penas disciplinares. Cabe no poder de conformação do legislador ordinário a
ponderação dos valores em conflito (direito à segurança social e punição
disciplinar}, e a escolha que entenda adequada. A nosso ver só uma manifesta
desadequação entre o motivo invocado pelo legislador ordinário e a privação da
pensão é inconstitucional. Não é o caso da punição de faltas disciplinares, onde
tal punição se justifica por razões retributivas e preventivas. Trata-se, a
nosso ver, de um dos casos em que para assegurar um valor comunitário - a
disciplina funcional na relação de emprego público - se exige a compressão do
direito a uma certa parte da pensão de reforma.”.
E acrescenta: “Quando a lei admite a punição de infracções disciplinares,
puníveis com a perda de pensão, não está a descaracterizar o regime de segurança
social. A haver necessidade de protecção social de quem pela prática de actos
ilícitos se vê economicamente constrangido, não nos parece viável considerar
inconstitucionais as penas, nem limitá-las à possibilidade económica dos
arguidos... A solução há-de ser encontrada pelo legislador, num outro plano
normativo, garantido um mínimo de subsistência nos termos em que o puder fazer,
mas sem nunca pôr em causa a aplicação das penas legalmente previstas”.
Em suma, a lei constitucional e nomeadamente as disposições legais indicadas
pelo recorrente - art.º 1 ° (que caracteriza a República Portuguesa) e art.º 63°
n.° 1 e 3 da CRP (que se dirige fundamentalmente ao sistema ou direito à
segurança social, cuja realização exige o fornecimento de determinadas
prestações por parte do Estado e que se situa fora do âmbito da punição
disciplinar) - não impedem que ao recorrente, que por iniciativa própria se
colocou em posição de ser punido, tivesse sido sancionado nos termos em que o
foi, dada a infracção disciplinar por si praticada.
Daí que seja de concluir que não assiste qualquer razão ao recorrente no tocante
às conclusões que formulou e daí a sua improcedência devendo, em conformidade,
ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional”.
5. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do
artigo 70º da LTC, o presente recurso, através de um requerimento com o seguinte
teor:
“[...] vem, ao abrigo do artº 280°, n° 1, b), da Constituição, e do art.º 70°,
n.º 1, b), da Lei do Tribunal Constitucional, INTERPÔR RECURSO para o Tribunal
Constitucional, porquanto, na interpretação e aplicação que dele foi feita, o
art.º 15°, n.° 1, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local (aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de
16 de Janeiro), é materialmente inconstitucional, por colisão com os artºs 1 °
(“princípio da dignidade da pessoa humana”) e 63°, nºs 1 e 3, da Constituição -
o que o Recorrente disse em sede de alegações de recurso jurisdicional para o
Supremo Tribunal Administrativo”.
6. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo
concluído da seguinte forma:
“1 - O Recorrente é funcionário público aposentado, mercê da sua inserção no
“sistema de protecção social da função pública”, do qual uma das suas “áreas de
protecção” é o regime contributivo de protecção previdencial, que é gerido pela
Caixa Geral de Aposentações.
2 - Ao Recorrente foi aplicada a pena disciplinar de “perda de pensão” pelo
período de doze meses, arrimando-se o acto sancionatório no artº 15°, nº 1, do
Estatuto Disciplinar.
3 - É claro que os factos quando provados com as circunstâncias que permitam a
sua qualificação como ilícito disciplinar credenciam punição. Porém,
4 - A punição é que não pode traduzir-se na privação total de meios de
subsistência, não sendo inclusivé salvaguardado o montante mínimo considerado
necessário para uma subsistência condigna (tomando-se como referência de tal
montante o salário mínimo nacional). Sendo certo que,
5 - O Recorrente é aposentado - e, substantivamente, a aposentação é uma nova
relação jurídica, configurada como “garantia obrigacional”, fundada e
constituída pelo Recorrente a partir dos descontos feitos no seu vencimento,
reportada ao valor pecuniário a receber, valor que assume “natureza
assistencial”. Assim,
6 - O art.º 15°, n.º 1, do Estatuto Disciplinar, tal como interpretado e
aplicado ao Recorrente, é materialmente inconstitucional, por colidir com os
artºs 1 ° (princípio da dignidade da pessoa humana) e 63°, nºs 1 e 3, da
Constituição. Pelo que,
7- E salvo o merecido respeito, não tendo recusado a sua aplicação (cfr. art.º
204° da Constituição, e art.º 4°, nº 3, do ETAF de 1984) o douto acórdão
recorrido não fez bom julgamento”.
7. Notificado para responder à alegação do recorrente, disse o recorrido, a
concluir:
“A - É disciplinarmente responsável quem serve, enquanto serve a função pública
por factos consumados durante o respectivo exercício, pelo que as penas
previstas nas alíneas b) a f) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 11° serão executadas
desde que os funcionários ou agentes voltem à actividade ou passem à situação de
aposentados (art. 5° do Estatuto Disciplinar).
B - O aposentado não perde a qualidade de funcionário pois, embora não ocupe
lugar nos quadros e esteja dispensado definitivamente de exercer funções, não
tenha direito ao lugar nem a outros direitos decorrentes do seu exercício, pode
conservar os que deste sejam separáveis (v .g. honras, assistência na doença) e
mantém o tratamento do lugar por que foi aposentado.
C - Para além disso, apesar de o aposentado deixar de estar sujeito aos deveres
profissionais, o vínculo que o liga à Administração mantém-se, dado continuar
adstrito. ao cumprimento de certos deveres de conduta na vida privada e de
natureza política, embora reduzidos, dada a sua condição de dispensado do
exercício de funções.
D - Indubitavelmente, o Recorrente praticou o ilícito disciplinar no exercício
activo das suas funções e por causa das mesmas, Daí a necessidade de ser
sancionado disciplinarmente.
E - Mas, uma vez que entretanto, o Recorrente se aposentou, então há que aplicar
a sanção pelo modo previsto no art. 15° do Estatuto Disciplinar. E foi o que se
fez, nisso concordando os M.mos Juízes recorridos.
F - Aceitar-se a tese do Recorrente significaria que qualquer ilícito
disciplinar ficaria impedido de ser sancionado, o que não deixa de ser uma
incongruência, no mínimo.
F. 1 Até porque, se o Recorrente estivesse no activo de funções, também aí
deixaria de ser remunerado pelo período previsto na respectiva sanção.
F.2 Aliás, como sucede com as penas disciplinares em sede de Direito do Trabalho
e, em último caso, com as penas de prisão, onde estas, que além de privarem a
angariação do sustento diário, privam cumulativamente as pessoas da sua
liberdade.
G – Por conseguinte não se verifica a “pretensa” inconstitucionalidade alegada
pelo Recorrente, pelo que o Douto Acórdão recorrido não merece qualquer
censura.[...]”
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentação.
8. O presente recurso tem por objecto a norma constante do artigo 15º, nº 1, do
Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central,
Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, na
parte em que permite que aos funcionários e agentes aposentados abrangidos por
esse Estatuto possa ser aplicada, em caso de infracção disciplinar, a pena de
perda da pensão por tempo igual à pena de inactividade que seria de aplicar não
fora a situação de aposentação. É o seguinte, na parte que agora importa
considerar, o teor daquele artigo 15º, n.º 1: “para os funcionários e agentes
aposentados as penas de suspensão ou inactividade serão substituídas pela perda
de pensão por igual tempo […]”.
No entendimento do recorrente, que se aposentou voluntariamente no decurso do
processo disciplinar, tal preceito, na medida em que pode conduzir à “privação
total de meios de subsistência, não sendo inclusive salvaguardado o montante
mínimo considerado necessário para uma subsistência condigna”, é
inconstitucional, por alegada violação do disposto no artigo 1º e nos nºs 1 e 3
do artigo 63º da Constituição.
Vejamos se é assim.
9. O Tribunal Constitucional - e, antes, a própria Comissão Constitucional – já
se pronunciou, por diversas vezes, sobre a constitucionalidade de normas que
permitem a penhora de rendimentos provenientes de pensões sociais ou rendimentos
do trabalho de montante não superior ao salário mínimo nacional.
Assim, a Comissão Constitucional, no seu acórdão n.º 479 (publicado em Apêndice
ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983), chamada a pronunciar-se sobre
a constitucionalidade de duas normas, extraídas da base XXVI da Lei nº 2115, de
18 de Junho de 1962 e do artigo 30º do Decreto nº 45266, de 23 de Setembro de
1963, na parte em que consideravam absolutamente impenhoráveis as prestações
devidas aos sócios das instituições de previdência social e seus familiares,
concluiu pela sua não inconstitucionalidade.
A conclusão idêntica chegou igualmente o Tribunal Constitucional em vários
acórdãos tirados a propósito de norma equivalente constante do n.º 1 do artigo
45º da Lei nº 28/84, de 14 de Agosto (cfr., designadamente, os acórdãos nºs
349/91 e 411/93, disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional no
endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Em síntese,
considerou-se nesses arestos que o regime de impenhorabilidade que naqueles
preceitos se previa não era inconstitucional, na parte em que a pensão auferida
pelo beneficiário da segurança social, tendo em conta o seu montante, reportado
a um determinado momento histórico, visava cumprir a função inilidível de
garantia de uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista.
Mais recentemente, através do Acórdão n.º 177/2002 (igualmente disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional
declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que
resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo
824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 das
prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens
penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia
social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo
nacional.
Finalmente, o Tribunal julgou ainda inconstitucional a norma que resulta da
conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do
Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995/96), na parte
em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado, que não seja
titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida
exequenda, na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento
mensal correspondente ao salário mínimo nacional (Acórdão nº 62/2002) e, mais
recentemente ainda, decidiu julgar inconstitucional a norma da alínea c) do n.º
1 do artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei
n.º 314/78, de 27 de Outubro, interpretada no sentido de permitir a dedução,
para satisfação de prestação alimentar a filho menor, de uma parcela da pensão
social de invalidez do progenitor que prive este do rendimento necessário para
satisfazer as suas necessidades essenciais (Acórdão nº 306/2005).
10. A questão de constitucionalidade que está colocada nos presentes autos é,
porém, diferente da que foi objecto daqueles arestos. É que, neste caso, a
afectação da pensão de aposentação não resulta de um acto de penhora, visando a
satisfação coerciva de um direito de crédito não satisfeito voluntariamente pelo
devedor, traduzindo-se antes numa forma de pena disciplinar que visa punir uma
infracção da mesma natureza praticada pelo titular da pensão. Cabe, porém,
perguntar: uma vez que a aplicação da pena disciplinar de perda da pensão é
também ela susceptível de pôr em causa a possibilidade de satisfação das
necessidades básicas do respectivo titular, não valerão igualmente, não obstante
a diferença que se apontou no início, as razões que conduziram ao juízo de
inconstitucionalidade que naqueles arestos se formulou?
A esta questão há que responder negativamente. Com efeito, como se verá já de
seguida, além da diferença já assinalada entre as duas situações, outras existem
ainda que impedem que o juízo de inconstitucionalidade que se formulou em alguns
dos arestos supra referidos seja directamente transponível para a situação que
agora nos ocupa.
Vejamos.
10.1. Em primeiro lugar, verifica-se que, enquanto que a finalidade que a
penhora visa alcançar - a satisfação integral de um crédito não voluntariamente
satisfeito - não é, em circunstâncias normais, afectada, de modo definitivo,
pela impossibilidade de atingir uma parte - considerada necessária à garantia de
uma sobrevivência minimamente condigna - da pensão do respectivo titular -, uma
vez que, em princípio, o crédito poderá ser ainda integralmente satisfeito,
embora ao longo de um período de tempo mais dilatado -, as legítimas finalidades
de natureza repressiva e preventiva que fundamentam a pena disciplinar, ao
invés, seriam sempre, ao menos em parte, definitivamente prejudicadas pela
inaplicabilidade, decorrente de um eventual juízo de inconstitucionalidade da
norma que agora vem questionada. E, no presente caso, numa situação em que, além
do mais, foi o próprio trabalhador que, voluntariamente, optando pela reforma
antecipada ainda no decurso do processo disciplinar, se colocou na situação de
pensionista.
Com efeito, não sendo possível aumentar o número de meses de perda de pensão em
que o recorrente foi condenado (para eventualmente compensar, do ponto de vista
do mero equilíbrio financeiro, o facto de não ser porventura suspensa a
totalidade da pensão), o sacrifício económico que o mesmo teria de suportar caso
a pena prevista no artigo 15º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes
da Administração Central, Regional e Local não pudesse ser integralmente
cumprida seria sempre inferior àquele que, no momento da decisão, foi
considerado necessário para a satisfação daquelas legítimas finalidades
retributivas e preventivas que a sanção visa prosseguir.
Ora, uma tal diferença intrínseca das situações justifica que seja dada, a nível
do juízo de constitucionalidade sobre as normas relevantes, uma diferente
solução.
10.2. Por outro lado, para o juízo de inconstitucionalidade que se formulou em
alguns dos arestos supra citados, foi sempre essencial a consideração de que
estaria já demonstrado nos autos que o devedor não possuía outros bens
susceptíveis de lhe garantir o rendimento mínimo indispensável à satisfação das
suas necessidades essenciais. Não é, porém, isso que se verifica nos presentes
autos, em que nada se demonstrou acerca da existência ou inexistência, no
património do recorrente, de outros bens capazes de garantir uma sobrevivência
minimamente condigna do agora pensionista.
10.3. Acresce, finalmente, que mesmo naquelas hipóteses em que isso aconteça -
isto é, nos casos em que da aplicação do preceito cuja constitucionalidade vem
questionada resulte a privação do mínimo considerado indispensável à garantia de
uma sobrevivência minimamente condigna do pensionista - sempre este poderá
recorrer aos mecanismos assistenciais normais, previstos no ordenamento jurídico
português, para fazer face a situações de inaceitável carência social, fazendo
aí a prova da alegada situação de necessidade. Ora, estando disponíveis no
sistema mecanismos que visam, no limite, assegurar uma sobrevivência minimamente
condigna do pensionista, não se poderá concluir, no caso, ponderados os diversos
valores em presença, que fica violado o princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana – “vector axiológico estrutural da própria Constituição”, como se
escreveu no acórdão nº 306/2005, já citado.
11. Nestas circunstâncias, em face do que se expôs, resta apenas concluir, no
presente caso, pela não desconformidade constitucional da norma constante do
artigo 15º, nº 1, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da
Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de
16 de Janeiro, na parte em que permite que aos funcionários e agentes
aposentados abrangidos por esse Estatuto possa ser aplicada, em caso de
infracção disciplinar, a pena de perda da pensão por tempo igual à pena de
inactividade que seria de aplicar não fora a situação de aposentação.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 12 de Julho de 2006
Gil Galvão
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Bravo Serra
Artur Maurício