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Processo nº 1061/05
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de recurso, vindos do Tribunal Central Administrativo
Sul, em que é recorrente A. e recorrido o Município de Loures, foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC).
2. Em 21 de Fevereiro de 2006, foi proferida decisão sumária, pela qual se
entendeu, nos termos do artigo 78º-A, nº 1, da LTC, não tomar conhecimento do
objecto do recurso.
É a seguinte a fundamentação constante desta decisão:
«Estabelece a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC que cabe recurso para o
Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo; tal suscitação
há-de ainda ter ocorrido “de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer” (artigo 72º, nº 2, da LTC).
No caso presente, o recorrente identifica claramente a decisão recorrida no
presente recurso de constitucionalidade – aquela que terá aplicado a norma
objecto do recurso – como sendo o acórdão proferido pelo Tribunal Central
Administrativo Sul.
Por outro lado, e face à exigência contida na parte final do nº 2 do artigo
75º-A da LTC, o recorrente indica haver suscitado a questão de
inconstitucionalidade que pretende que o Tribunal aprecie nas alegações do
recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, interposto da decisão
proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul – recurso de revista que,
como acima ficou relatado, não veio a ser admitido.
Ora, assim sendo, e independentemente da análise de outros elementos dos autos,
resulta manifesto que nunca poderá concluir-se que o recorrente tenha observado
o ónus da suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade: “(…) a
inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo,
quando tal questão se coloca perante o tribunal recorrido a tempo de ele a poder
decidir e em termos de ficar a saber que tem essa questão para resolver (...).
Bem se compreende que assim seja, pois que, se o tribunal recorrido não for
confrontado com a questão de constitucionalidade, não tem o dever de a decidir.
E, não a decidindo, o Tribunal Constitucional, se interviesse em via de recurso,
em vez de ir reapreciar uma questão que o tribunal recorrido julgara, iria
conhecer dela ex novo” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 569/94, Diário da
República, II Série, de 10 de Janeiro de 1995).
Sendo desde logo revelado pelo recorrente que apenas suscitou a questão que
pretende que o Tribunal Constitucional aprecie após a prolação da decisão que,
em seu entender, terá aplicado norma inconstitucional, importa concluir pela não
suscitação atempada da questão de inconstitucionalidade, circunstância que obsta
ao conhecimento do objecto do recurso e justifica a presente decisão sumária
(artigos 70º, nº 1, alínea b), e 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. Desta decisão vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo
do disposto no nº 3 do artigo 78º-A da LTC, através de requerimento que aqui se
transcreve:
«(…) no Processo Judicial que decorreu nos Instâncias Judiciais Administrativas,
a violação dos Princípios Constitucionais da Igualdade e da Legalidade Estrita
no Exercício da Jurisdição, por força da interpretação normativa que foi dada ao
art. 8.º, n.º 2, do Código Civil, de que “o dever de obediência à lei deve ser
afastado sempre que, em causa, estejam conteúdos de informações produzidas pelos
Serviços Públicos”, deu-se no Acórdão proferido pelo Tribunal Central
Administrativo Sul e não em momento processual anterior a este, nomeadamente, na
Sentença dimanada pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Se em 1.ª Instância não se levantaram quaisquer problemas de
inconstitucionalidade, em toda a fase procedimental, porque não existiram
violações de princípios ou/e de normas constitucionais, esta questão não poderia
ter sido suscitada nas alegações de Recurso para o Tribunal Central
Administrativo.
III – Assim, a problemática da inconstitucionalidade foi levantada, pelo
Reclamante, no momento processual adequado, ou seja, nas alegações de Recurso de
Revista, interposto do mencionado Acórdão, para o Supremo Tribunal
Administrativo.
IV – O referido Recurso de Revista não foi admitido, por Decisão Preliminar e
Sumária tomada no Supremo Tribunal Administrativo, com o fundamento de que “não
se verificam os pressupostos legais constantes do n.º 1 do art. 150.º do CPTA
para a sua admissibilidade atenta a natureza de revista excepcional nos termos
expostos, pois não está em causa uma questão de grande relevância jurídica ou
social.”
O Reclamante interpôs, atempadamente, o Recurso de Revista, o mesmo foi admitido
pelo Tribunal Central Administrativo Sul e as alegações de recurso foram,
tempestivamente, apresentadas.
Porém, na Conferência a que se refere o n.º 5 do art . 150.º do CPTA, o mesmo,
objecto de apreciação preliminar sumária, não foi admitido, porquanto por o
Recurso de Revista ter natureza excpcional no Processo Judicial Administrativo,
julgou-se que a questão submetida a apreciação, por um lado, não tinha grande
relevância jurídica ou social, e por outro, não era condição necessária a uma
melhor aplicação do direito.
V – Esta Apreciação Preliminar Sumária foi objecto de uma Reclamação onde, por
um lado, se invocou a violação de Princípios Constitucionais pelo Acórdão
proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul, e por outro, se considerou
que o Recurso de Revista deveria ser admitido como condição necessária para uma
melhor aplicação do direito atentas, entre outras, as ditas violações (vide III,
VII, IX e XI da Reclamação).
VI – Pelo exposto, não pode é o Reclamante ser prejudicado por esta omissão do
Supremo Tribunal de Justiça, que se traduziu em não admitir o Recurso de Revista
interposto do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, sob pena de se
sancionarem, assim, negativamente, as violações que o referido Acórdão faz aos
Princípios Constitucionais da Igualdade e da Legalidade Estrita no Exercício da
Jurisdição resultantes da interpretação normativa do art. 8.º, n.º 2, do Código
Civil, uma vez que, o Supremo Tribunal de Justiça se encontrava obrigado,
claramente, como condição necessária a uma melhor aplicação do direito, a
conhecer do já mencionado Recurso de Revista».
4. Notificado o recorrido, não foi apresentada qualquer resposta à reclamação.
5. Em cumprimento do disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil,
aplicável por força do artigo 69º da LTC, o recorrente e a recorrida foram
notificados para, querendo, se pronunciarem, no prazo de dez dias, sobre a
possibilidade de a conferência decidir não conhecer do objecto do recurso
interposto, com fundamento na não aplicação, pelo tribunal recorrido, como ratio
decidendi, da norma que o recorrente pretende ver apreciada, do ponto de vista
jurídico-constitucional (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC).
6. Respondeu apenas o recorrente, nos seguintes termos:
«I. A. interpôs um Recurso, para este Venerando Tribunal, de um Acórdão
proferido pelo Tribunal Central Administrativo. Todavia,
A Decisão Sumária proferida, pela Senhora Juíza Conselheira Relatora, nestes
autos, em 21 de Fevereiro de 2006, é desfavorável ao Recorrente, porquanto dela
resulta que não deve conhecer-se o objecto do Recurso, por força da não
verificação do requisito previsto na alínea b), do n.° 1, do art. 70.°, da Lei
de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
II. Porém, com todo o respeito que nos merece a Decisão Sumária em causa, a
Questão da Inconstitucionalidade susciptou-se durante o processo, mais
precisamente quando o Recorrente produziu as suas Alegações, no Recurso de
Revista que interpôs do Acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo –
Sul, para o Supremo Tribunal Administrativo.
III. Na verdade, o supra mencionado Acórdão, viola os Princípios Constitucionais
da Igualdade e da Legalidade Estrita, por força da interpretação normativa que
dá ao art. 8.°, n.° 2, do Código Civil, que determina que “o dever de obediência
à lei deve ser afastado sempre que, em causa, estejam conteúdos de informações
produzidas pelos Serviços Públicos.”
IV. Ora, por o Recurso de Revista, embora de natureza ordinária, por força do
Capítulo II, do Título VII, em que se insere, ter um discutível carácter
excepcional no âmbito do Código de Processo dos Tribunais Administrativos
(CPTA), o mesmo, não foi admitido, pelo Supremo Tribunal Administrativo, com o
fundamento de “não se verificarem os pressupostos legais constantes do n.° 1 do
art. 150.° do CPTA para a sua admissibilidade atenta a natureza de revista
excepcional nos termos expostos, pois não está em causa uma questão de grande
relevância jurídica ou social.”
V. Acresce que, dessa não admissão reclamou o Recorrente para o Colendo
Presidente do mesmo Alto Tribunal, Reclamação essa, na qual, defende que o
Recurso de Revista que interpôs reveste “indiscutível primazia jurídica” por se
encontrarem em causa Questões de “natureza Constitucional”, designadamente,
Princípios estruturantes do nosso Direito.
VI. Assim, tendo em conta o art. 70.°, n.°s 2 e 3, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, o Recorrente esgotou os
recursos ordinários que, no caso em apreço, cabiam, uma vez que o Recurso de
Revista se insere, no Capítulo II, do Título VII, do CPTA, dedicado aos recursos
ordinários no âmbito do processo judicial-administrativo, sendo que, o
Recorrente até reclamou da Apreciação Preliminar que, no Supremo Tribunal
Administrativo, não admitiu o seu Recurso de Revista.
VII. Mesmo que se entenda que o Recurso de Revista, apesar da sua natureza de
recurso ordinário, só é, excepcionalmente, admitido das decisões proferidas em
2.ª instância, a violação de Princípios Constitucionais pelo Acórdão do Tribunal
Central Administrativo – Sul implicava que a sua admissão se tornava,
claramente, necessária e obrigatória para uma melhor aplicação do direito (art.
1 50.°, n.° 1, do CPTA).
Deste modo, o facto de o Recorrente ter recorrido de Revista do referido Acórdão
não faz precludir o seu direito de interpor o presente Recurso de
Inconstitucionalidade (art. 70.°, n.° 6, da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional).
VIII. Resulta, de todo o exposto, que o Recurso de Inconstitucionalidade foi
interposto no momento, processualmente, adequado e que o Recurso de Revista do
Acórdão proferido pela 2.ª instância devia ter sido admitido, por a sua admissão
se revelar, inquestionável e claramente, necessária para uma melhor aplicação do
direito e, ainda que, o Supremo Tribunal Administrativo tinha uma obrigação
legal de o conhecer (art.S 150.°, n.° 1, do CPTA e 72.°, n.° 2, da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional).
Assim, esta omissão, manifesta, do Supremo Tribunal Administrativo não pode nem
deve prejudicar o Recorrente, atentos os Princípios estruturantes do nosso
ordenamento jurídico-constitucional violados pelo Acórdão do Tribunal Central
Administrativo – Sul».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Notificado da possibilidade de o Tribunal não conhecer do objecto do recurso com
fundamento na não aplicação, pelo tribunal recorrido, da norma que o recorrente
pretende ver apreciada (fls. 66 e 101 dos autos), o reclamante não demonstra, de
todo em todo, que o Tribunal Central Administrativo Sul a tenha aplicado, como
ratio decidendi. Não demonstrou que se verifica, no caso em apreço, este
requisito do recurso de constitucionalidade que pretendeu interpor (cf. artigos
71º, nº 1, alínea b), da LTC).
À mesma conclusão se chega atendendo à fundamentação de direito da decisão
recorrida:
«Versando o presente recurso jurisdicional também sobre o julgamento da matéria
de facto apurada em 1ª instância, ter-se-á de dar como não verificado, mesmo
perfunctoriamente, que o recorrido seja dono da construção edificada, por falta
da necessária prova documental, apenas se podendo ter em consideração que o
mesmo é um donos do terreno em que a mesma se encontra edificada, conforme
resulta do n° 2 da matéria de facto apurada e que presumivelmente, em razão
dessa titularidade e das regras da experiência da vida, será de facto um dos
donos do armazém referido nos autos, juntamente com os outros comproprietários
daquele terreno.
Nada mais é possível dar por assente neste momento, revogando-se o apurado no n°
20 da matéria de facto, a qual despojada daquele elemento não necessita de
qualquer outra alteração para a boa decisão do recurso jurisdicional e da
própria pretensão formulada nos autos.
No mais e salvo o devido respeito, não se sufraga o entendimento expresso em 1ª
instância que conduziu ao decretamento da providência, pois que o historial da
génese e da conclusão daquele armazém e da actuação do recorrido, relatado nos
n° 4 a 17 da matéria de facto, demonstram que o mesmo ao longo daquele “processo
construtivo clandestino” demonstrou o mais completo e total desprezo pela
legalidade urbanística, tem antecedentes nesse tipo de actividade construtiva
ilegal, e pelo menos até ao dia 4 de Novembro de 2004, declarou aos funcionários
do recorrente “que nada tinha a ver com a obra em causa”, só mais tarde se
assumindo como “proprietário da obra”, ao aperceber-se de que a estratégia
seguida do “não ter nada a ver com a obra” não seria impeditiva da ordem de
demolição do armazém.
Ou seja, consoante as circunstâncias e se tal se apresentasse como útil para
prosseguir na actividade construtiva ilegal “não se é dono”, porém, se a ordem
de demolição se prefigurar como provável e sobretudo se for necessário recorrer
a Tribunal na tentativa de manter a situação ilegal, intencionalmente criada,
prosseguida e concluída, já se é “dono” e a decisão suspenda será ilegal por o
embargo não lhe ter sido notificado de “forma pessoal, oficial e formal” - no
dizer da sentença recorrida -, quanto manifestamente se verifica que foi o
próprio recorrido que ardilosamente criou as condições objectivas para que tal
tivesse ocorrido, pois que só em meados de Novembro de 2004, por lhe ser
conveniente, revelou a sua ligação à obra em causa, não obstante ter tido
conhecimento do embargo da obra, logo em 20/5/2004, e, repete-se, afirmado em
4/11/2004 que “nada tinha a ver com a obra” (Cfr. 6, 16 e 17 da matéria de
facto)
O art° 126° do CPTA, precavendo a ocorrência de situações como a presente, de
abuso do exercício da tutela cautelar, estipula que os requerentes dos processos
cautelares respondem civilmente pelos danos causados aos requeridos, competindo
ao recorrente a opção pelo exercício dessa faculdade indeminizatória, que se nos
afigura poder ter efeitos pedagógicos na prevenção da ocorrência de situações
futuras semelhantes à presente.
De tudo o que vem a ser dito, decorre que o pedido formulado nos autos de
suspensão da ordem de demolição imediata das construções realizadas na Rua …, na
freguesia de Sacavém, não poderia nunca ser deferido por se verificar o recurso
abusivo à tutelar cautelar, nos termos explicitados, ou, no mínimo por não
existir o necessário nexo de causalidade adequada entre a execução do acto
suspendendo e os prejuízos invocados pelo requerente, os quais são única e
exclusivamente imputáveis à sua reiterada conduta ilegal, e não à execução do
acto que ordenou a demolição do armazém, pelo que não se verifica o requisito
“perigo na demora” referido no art° 120°/1/b), do CPTA».
Resta, assim, concluir pelo indeferimento da presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e, em consequência, confirmar a
decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício