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Processo nº 1040/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na sua actual versão (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8 de
Janeiro de 2003, que negou provimento ao recurso interposto de despacho do juiz
proferido nos autos de inquérito n.º 10043/01.1TDLSB, a correr termos no
Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa.
2 – Neste processo penal, o juiz indeferiu o pedido do ora
recorrente de constituição como assistente por, não obstante ter a posição de
ofendido, não estar representado por advogado e não poder litigar em causa
própria, e condenou-o ainda na taxa de justiça de ½ UCs., com base no disposto
no art. 84.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais (CCJ), por considerar que o
mesmo dera causa a uma ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do
processo.
3 – Inconformado com esta decisão, o requerente recorreu para o
Tribunal de Relação de Lisboa, mas este Tribunal negou provimento ao recurso.
Após o definitivo insucesso do seu propósito de ver
reapreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) as mesmas questões (com o
trânsito em julgado de Decisão sumária, proferida no Tribunal Constitucional, de
não conhecimento do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade,
interposto de acórdão proferido pelo STJ, que rejeitara o recurso para ele
interposto e admitido, apenas, em cumprimento de deferimento de reclamação
apresentada para o Presidente do STJ, pelo mesmo recorrente, contra despacho de
não admissão, do relator na 2.ª instância), o recorrente interpôs recurso, para
o Tribunal Constitucional, do mesmo acórdão da Relação, pretendendo a apreciação
da inconstitucionalidade das normas dos artigos:
“70.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), no segmento em
que determina que os assistentes são sempre representados por advogado, na
interpretação segundo a qual esta representação pode ser assegurada mediante
emissão de procuração a favor de advogado que não o advogado ofendido com
direito a ser constituído assistente, nos termos dos artigos 68.º, n.º 1, alínea
a), e 69.º do dito código” e
“84.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na interpretação segundo a qual o
ofendido-advogado, requerente de admissão como assistente, que pagou a
respectiva taxa de justiça, ainda pode ser condenado em custas de “incidente” em
virtude de o seu requerimento ter sido indeferido por não haver outorgado
procuração a outro advogado”,
pretextando que a primeira norma viola “os artigos 18.º,
n.º 2, 26.º, nºs 1 e 4 (nos segmentos relativos ao desenvolvimento da
personalidade e da capacidade civil), 32.º, n.º 7, 58.º, n.º 1, 59.º, n.º 1,
alínea b) (no segmento que tutela a realização pessoal do trabalhador), e 208.º
da Constituição da República” e que a segunda ofende os princípios da
legalidade, da tutela da confiança e da segurança jurídica implícitos no
princípio do Estado de direito democrático consignado no art. 2.º da
Constituição, e da tipicidade tributária consignado no art. 103.º, nºs 2 e 3, da
mesma Lei”.
4 – O recorrente alegou sobre o objecto do recurso de
constitucionalidade concluindo do seguinte jeito a argumentação esgrimida:
“1ª - No desenvolvimento do alegado na motivação do recurso para o Tribunal
da Relação, a norma do artigo 32.º, n.º 7, da Constituição ao conferir ao
ofendido o direito de intervir no processo penal, confere-lhe, desde logo, o
direito de escolher o advogado que deve assegurar o exercício dos direitos que a
lei lhe confere, não podendo esta restringir ou condicionar tal liberdade de
escolha.
2ª - O direito de escolha contido no direito conferido pelo artigo 32.º, n.º 7,
da Constituição, radica nos princípios do dispositivo e da autonomia privada e
do respeito pela dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1.º da
Constituição, dos quais decorre a máxima expansibilidade das faculdades contidas
naquele direito; pelo que a norma do artigo 70.º, n.º 1, 1.º segmento, segundo a
qual o ofendido advogado só pode intervir no processo penal como assistente,
desde que outorgue procuração a outro advogado, sendo restritiva daquele
direito, viola a norma do art. 32.º, n.º 7, da Constituição.
3ª - O direito do ofendido de intervir no processo penal como assistente,
visando a reintegração da sua esfera jurídica violada, goza da tutela do artigo
26.º, n.º 1 da Constituição, no segmento relativo ao desenvolvimento da sua
personalidade; pelo que, a norma do artigo 70.º, n.º 1, 1.º segmento, do CPP, ao
restringir o direito do ofendido/advogado de se constituir assistente em
processo penal, viola a norma do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição no segmento
relativo ao desenvolvimento da sua personalidade.
4ª - A norma do artigo 70.º, n.º 1, 1.º segmento, do CPP, interpretada em
conjugação com a do segundo segmento do mesmo preceito, é também restritiva do
direito conferido pelo artigo 32.º, n.º 7, da Constituição, a outros ofendidos
que hajam escolhido o ofendido/advogado para os representar.
5ª - Inexiste norma, princípio ou função constitucional que justifique a
restrição do direito do ofendido/advogado de se escolher a si próprio para
assegurar a sua intervenção no processo penal como assistente.
6ª - O direito conferido pelo artigo 32.º, n.º 7, ao ofendido, constitui um
acréscimo aos direitos que lhe são conferidos pelo artigo 20.º, nºs 1 e 4, os
quais integram o princípio do Estado de direito democrático consagrado no art.
2.º, todas da Constituição; pelo que a norma do artigo 70.º, n.º 1, 1.º
segmento, do CPP, na dimensão aplicada no acórdão recorrido, restritiva do
direito do ofendido/advogado de se escolher a si próprio para assegurar o
exercício dos direitos que a Constituição e a lei lhe conferem para intervir no
processo penal como assistente, viola os fundamentos e os fins do Estado de
direito democrático.
7ª- O advogado, enquanto profissional, goza dos direitos consagrados nos artigos
58º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
8ª - Incumbindo ao Estado promover a efectivação dos direitos consagrados nos
artigos 58.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, alínea b), conforme disposto no artigo 9.º,
alínea b), para concretização das garantias consignadas nos artigos 1.º e 2.º,
todos da Constituição, a norma do artigo 70.º, n.º 1, 1.º segmento, do CPP, na
dimensão aplicada no acórdão recorrido, viola a garantia daquele artigo 9.º,
alínea b).
9ª - As normas conjugadas dos artigos 53.º, n.º 1, e 164.º, n.º 1, do Estatuto
da Ordem dos Advogados, integram e concretizam a norma do artigo 208.º, 2.º
segmento, da Constituição, que conferem ao advogado a dignidade de elemento
essencial à administração da justiça; tais normas conferem ao advogado direitos
que integram a sua capacidade civil, pelo que, a norma do artigo 70.º, n.º 1,
1.º segmento, do CPP, na dimensão aplicada no acórdão recorrido, viola aquelas
normas dos artigos 208.º e 26.º, n.º 1, da Constituição.
10ª - A norma do artigo 84.º, n.º 2, do CCJ, aprovado pelo Dec. Lei n.º
224-A/96, de 26 de Novembro, na dimensão aplicada pela 1.ª instância e
confirmada pelo acórdão recorrido, é inovadora e absolutamente surpreendente,
por incluir na sua previsão como ocorrência estranha ao desenvolvimento do
processo actos que se encontra tipificados nos artigos 68.º, n.º 1, alínea a),
3, 4, e 5, e 519.º, n.º 1, do CPP; pelo que, a sua aplicação, viola a tutela da
confiança e da segurança jurídicas implícita no princípio do Estado de direito
democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.
11ª - A norma do artigo 84.º, n.º 2, do dito código, na dimensão aplicada, é
absolutamente indeterminada quer na sua previsão quer na sua estatuição; pelo
que, viola os princípios do Estado de direito democrático consagrado no artigo
2.º, sendo sancionada nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da
Constituição.
12ª- O acórdão recorrido, não tendo conhecido das questões de
inconstitucionalidade normativas suscitadas na motivação de recurso que
constitui o seu objecto, viola a norma do artigo 72.º, n.º 2, último segmento,
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro; pelo que, também por isso, e atento o
disposto nos artigo 201.º, n.º 1, e 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC, aplicáveis
ex vi art. 69.º daquela, deve ser revogado”.
5 – O Procurador-Geral Adjunto no Tribunal Constitucional
contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
“1 - Não é inconstitucional a norma do artigo 70.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, interpretada no sentido de estar vedada a constituição como
assistente a ofendido não representado por advogado, ainda que aquele também o
seja, já que não pode litigar em causa própria.
2 - Não é inconstitucional a norma do artigo 84.º, n.º 2, do Código das Custas
Judiciais ao integrar no conceito de ocorrência estranha ao desenvolvimento
normal do processo para efeito de condenação em taxa de justiça do
ofendido/advogado, que pretende constituir-se como assistente não estando
representado por outrem com a qualidade de advogado.
3 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso”.
B – Fundamentação
6 – Antes de mais, cumpre conhecer do pedido de revogação do
acórdão recorrido, efectuado na conclusão 12.ª das alegações apresentadas pelo
recorrente, no Tribunal Constitucional, por o mesmo não ter conhecido das
questões de constitucionalidade suscitadas na motivação do recurso para ele
interposto e ser de aplicar o disposto “nos artigos 201.º, n.º 1, e 668.º, n.º
1, alínea d) do CPC, aplicáveis ex vi do art. 69.º” da LTC.
Resulta, todavia, do disposto no 72.º, n.º 2, da LTC que “os
recursos interpostos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do art. 70.º [sendo que o
presente se integra na primeira hipótese] (só) podem ser interpostos pela parte
que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer” [itálico aditado].
Quer isto dizer que este preceito ultrapassa a questão da
eventual existência de uma nulidade da decisão recorrida, por esta não ter
conhecido de questão de constitucionalidade ou ilegalidade de que estava
obrigada a conhecer, e possibilita, logo, o conhecimento dessas questões por
parte do Tribunal Constitucional, como se houvera no tribunal a quo uma
pronúncia implícita sobre elas.
Trata-se de uma solução que encontra razão de ser quer na
circunstância de o Tribunal Constitucional não constituir um tribunal de
hierarquia que possa conhecer de alegadas violações de lei processual
reguladoras da actividade do tribunal a quo, mas, apenas, de um Tribunal que, no
domínio da fiscalização concreta, apenas conhece de questões de
(in)constitucionalidade de normas que hajam constituído ratio decidendi da
decisão recorrida, quer em razões de celeridade processual, porquanto a remessa
dos autos ao tribunal a quo para emitir pronúncia sobre as questões de
constitucionalidade, cujo conhecimento se omitira, não obviaria a que a decisão
sobre essas questões pudesse ser novamente sujeita à apreciação do Tribunal
Constitucional.
Por isso, se indefere o pedido de revogação efectuado com tal
fundamento e se passa a conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade.
7 – A questão de constitucionalidade da norma constante do
artigo 70.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), na dimensão concretizada.
7.1 – Relembremos, sinteticamente, que o recorrente imputa a
inconstitucionalidade à norma constante do artigo 70.º, n.º 1, do CPP, enquanto
entendida no sentido de o ofendido-advogado não poder representar-se a si
próprio na constituição como assistente no processo penal. E estriba essa
inconstitucionalidade em vários fundamentos cuja procedência se analisará.
A constituição do ofendido como assistente em processo penal
representa uma possibilidade legal que vem historicamente de longe (cf. para uma
resenha histórica, o Acórdão n.º 254/98, publicado no Diário da República II
Série, de 6 de Novembro de 1998), sendo que o seu figurino assenta não numa
qualquer concepção de carácter “vindicativo” do processo penal (cf. Acórdão n.º
690/98, publicado no Diário da República II Série, de 8 de Março de 1999) mas,
antes, na ideia de que o mesmo é um “colaborador do Ministério Público, a cuja
actividade subordina(m) a sua intervenção, no processo (art. 69.º, n.º 1, do
CPP), mas que não deixa – pese embora o não sugira, claramente, o texto legal –
de ter alguma autonomia.
A este respeito, pode lembrar-se aqui o que se escreveu no já
referido Acórdão n.º 690/98:
“Só que não se pode aceitar uma concepção tão redutora; o
assistente surge como um verdadeiro sujeito processual, com atribuições
próprias, permitindo-lhe a lei, pelo menos em determinadas situações, agir
sozinho ou até contra o Ministério Público (cfr., por ex., artigos 69º, n.º 2,
287º, n.º 1, b), e 401º, n.º 1, b), do CPP). Ainda que com limites, é certo, os
assistentes, pelo menos nessa medida, não subordinam totalmente a sua actuação à
do MP.
Certo que ao MP compete o exercício da acção penal, colaborando com o tribunal
na descoberta da verdade e na valorização do direito (cfr. artigo 53º, n.º 1, do
CPP). Mas, nos casos referentes a crimes particulares, a sua actividade
encontra-se desde logo condicionada pela apresentação da queixa e constituição
como assistente pelo ofendido, e nos crimes semi-públicos, depende também da
formalização da queixa pelo ofendido. É nos crimes públicos - como o dos autos -
que o MP não se encontra já condicionado por qualquer actividade do ofendido,
passando a ser a intervenção do assistente desnecessária para desencadear ou
prosseguir o processo; a intervenção do ofendido (ou seus representantes ou
sucessores) passa a ser uma faculdade, na discricionariedade deste. Mas não fica
como tal eliminada ou descaracterizada; como no próprio preâmbulo do CPP se pode
ler, 'o reforço da consistência do estatuto do assistente, com a intenção
manifesta de consolidar o papel de um dos protagonistas no campo da
conflitualidade real', foi uma das tónicas deste sistema processual.
Assim, nos casos de acção penal por crimes públicos, as atribuições do
assistente são as seguintes:
a) pode intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as
diligências necessárias;
b) pode deduzir acusação pelos factos acusados pelo MP, por parte deles ou por
outros que não importem alteração substancial daqueles;
c) no caso de o MP não acusar - arquivamento do inquérito -, pode requerer a
abertura da instrução;
d) pode interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o MP o não faça”.
A constituição de assistente, com o rol de poderes que lhe
estão atribuídos, concretizando o direito do ofendido de intervir no processo,
insere-se numa funcionalidade público-processual, qual seja a de poder tornar
possível um melhor e mais eficaz exercício da acção penal, por banda do
Ministério Público, a quem o respectivo poder está constitucionalmente conferido
(art. 219.º, n.º 1, da CRP), por ser de admitir que o titular dos interesses
jurídico-criminais, que a lei quis especialmente proteger com a incriminação,
tenha especial interesse em ver exercida em termos adequados a acção penal,
precisamente em abono da defesa daqueles seus interesses, e possa, também, ser
possuidor de relevantes conhecimentos de facto e de direito que possam
mostrar-se pertinentes a tal melhor exercício.
Nesta perspectiva, o estatuto jurídico-processual da pessoa do
assistente não tem de coincidir com o da pessoa que surge apenas como lesado com
a prática do acto criminoso. Como se diz no Acórdão, acabado de referir:
“Quase sempre - se não sempre - será o ofendido também um dos
lesados, mas estes podem ser ainda outras pessoas, que não apenas o ofendido. Os
meros lesados não poderão intervir no processo penal, a não ser como partes
civis, no pedido de indemnização cível.
Trata-se, pois, de realidades e institutos totalmente diferentes, prosseguindo
fins e atribuições distintas no processo penal; enquanto o ofendido, esse sim, é
um mero participante processual, o assistente, tal como acima referido, é já um
verdadeiro sujeito processual”.
Ora, o n.º 7 do artigo 32.º da Lei fundamental, consagrando o
reconhecimento constitucional deste sujeito processual, passou, com a revisão de
1997, a dispor que “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos
da lei”.
Mas, ao remeter para a lei o direito de intervir no processo,
não pode deixar de reconhecer-se que a Constituição quis deixar na
discricionariedade normativo-constitutiva do legislador a possibilidade quer da
determinação do universo dos processos ou crimes em que a intervenção do
ofendido poderia ocorrer, só não podendo abolir ou restringir esse direito de
forma desadequada, desnecessária ou arbitrária, quer da regulação dos termos a
que essa intervenção processual deverá obedecer.
Na mesma linha, aliás, se posiciona o art. 208.º da CRP, nos
termos do qual “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao
exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à
administração da justiça”.
É dentro de um tal quadro jusfundamental que deve entender-se a
disposição constante do art. 70.º, n.º 1, do CPP, segundo a qual “os assistentes
são sempre representados por advogado”.
E compreende-se a opção do legislador ordinário de o assistente
ter sempre de estar representado por advogado. Sendo o Ministério Público, a
quem se encontra cometido o exercício da acção penal, constituído por um corpo
de magistrados, funcionalmente apto para essa função, torna-se necessário que o
assistente, em ordem à boa condução e decisão do pleito, tenha, do ponto de
vista legal, capacidade para poder entender e aferir a actividade levada a cabo
por tais magistrados e a conveniência ou necessidade de prática de outras
diligências ou actos processuais, susceptíveis de ocorrer no processo penal, bem
como para poder intervir, no processo, de forma serena e desapaixonada.
É, em regra, no advogado, que exerce o mandato forense por
profissão (cf. art. 3.º, n.º 1, alínea b), e 53.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem
dos Advogados (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 16 de Março), que o
legislador vê essa capacidade de poder prosseguir, com o M.º P.º, a defesa
daqueles interesses que a lei quis proteger com a incriminação.
Mas, sendo assim, não pode, igualmente, deixar de reconhecer-se
ao legislador uma discricionariedade de ponderação quanto às circunstâncias que,
podendo interferir psicologicamente com o advogado, são, adequadamente,
susceptíveis de fazer perigar as exigências de uma intervenção serena e
desapaixonada no processo penal, tanto mais reclamáveis aqui quanto está em
causa a defesa de valores fundamentais da comunidade como são aqueles que são
prosseguidos pelo direito penal.
Ora, é seguramente diferente a situação psicológica do
advogado, potenciadora de se reflectir na serenidade com que deve ser discutida
a causa, quando intervém em representação de outrem, por via de mandato forense,
ou quando age em defesa de interesses pessoais.
Não pode, deste modo, considerar-se como sendo
desproporcionada, desadequada ou arbitrária uma avaliação do legislador, no
sentido de considerar esse advogado como não estando em condições objectivas de
poder prosseguir a defesa dos interesses que a lei quis proteger com a
incriminação de modo desapaixonado e sereno.
Estando em causa, no instituto da assistência em processo
penal, essencialmente, interesses de ordem pública (característica esta que não
se perde, mesmo quando o legislador torne o procedimento criminal dependente de
queixa ou de acusação do assistente), dado a acção penal não visar satisfazer
qualquer vindicta mas, essencialmente, interesses de prevenção geral e especial,
compreende-se, deste modo, que o legislador sujeite a representação forense do
assistente a regras diferentes consoante a questão que está em causa contende
com interesses de terceiros ou não, ou, então, quando a questão já não é uma
questão de assistência em processo penal mas, por natureza, uma relação
jurídico-privada, como é o caso do direito do lesado a ser ressarcido do dano
provocado com o crime.
Nesta medida, há-de entender-se gozar o legislador ordinário,
nos termos dos art.ºs 32.º, n.º 7, e 208.º da CRP), de discricionariedade
normativa no sentido de poder exigir que, sendo o titular dos interesses que a
lei penal quis proteger com a incriminação advogado, deva o mesmo conferir
mandato forense a outro advogado para se poder constituir assistente em processo
penal, e que já possa adoptar uma solução diferente quando esteja, simplesmente,
em causa, acção tendente a ressarcir do dano provocado com o crime.
7.2 – Argumenta o recorrente que a “norma do art. 70.º, n.º 1,
1.º segmento, do CPP, ao restringir o direito do ofendido/advogado de se
constituir assistente em processo penal viola a norma do art. 26.º n.º 1, da
Constituição, no segmento relativo ao desenvolvimento da sua personalidade.
Cabe acentuar, desde logo, e pelo que já se disse, que “o
direito do ofendido de intervir em processo penal como assistente não visa
reintegrar a sua esfera jurídica pessoal violada”, mas, antes, o de colaborar
como M.º P.º no sentido de, mediante o exercício da acção penal, se poder obter
a restauração da ordem social mediante a imposição ao infractor de uma pena que
cumpra os objectivos de prevenção geral e especial.
Não está em causa, no exercício da acção penal, qualquer
propósito de reintegração da esfera jurídica do titular dos bens que a lei penal
quis, especialmente, proteger com a incriminação.
A reintegração da esfera jurídica estritamente pessoal do
ofendido é acautelada através da conformação normativa da obrigação de
indemnização.
Não estando primacialmente em causa, na relação que é objecto
do processo penal, a tutela de qualquer interesse estritamente privado do
ofendido, na sua outra face como advogado, não se vê como é que, ao ser-lhe
vedada a possibilidade de se representar a si próprio, como assistente no
processo penal, lhe estejam a ser restringidos quaisquer direitos reconhecidos a
título de pessoa, como o direito ao desenvolvimento da sua personalidade, em
quaisquer das dimensões que esse direito comporta, entre as quais avultam o
direito geral de personalidade e a liberdade geral de acção (cf. Jorge
Miranda-Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2005, p. 286) ou,
maxime, o direito de autonomia privada, de que o recorrente fala, e que se
exprime, essencialmente, na possibilidade de dispor e regular as suas relações
de direito privado, dentro dos limites da lei (cf., também, art. 61.º, n.º 1, da
CRP).
O ofendido goza, no plano da constituição de assistente em
processo penal, do mesmo direito de qualquer outra pessoa que não detenha a
qualificação de advogado, podendo constituir mandato forense em outro colega.
7.3 – Defende ainda o recorrente que a norma do art. 70.º, n.º
1, do CPP, no segmento questionado viola os fundamentos e os fins do Estado de
direito democrático.
Ora, independentemente de o princípio constitucional do Estado
de direito democrático se reflectir em um variado leque de princípios
constitucionais e a alegação do recorrente se quedar por simples afirmações
genéricas, que não deixam entender que dimensão constitucional de tal direito é
posta em causa pela norma impugnada, cabe dizer que não se descortina que tal
princípio imponha que, detendo o titular dos interesses ou bens jurídicos que a
norma penal quis especialmente proteger a qualidade de advogado, tenha,
obrigatoriamente, o legislador ordinário de optar pela solução de aquele se
poder representar a si próprio como advogado no processo penal em que se queira
constituir como assistente.
Ao contrário, e como já se disse, ao dispor no art. 208.º que “
a lei […] regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da
justiça”, a CRP deixa aberta ao legislador ordinário a possibilidade de não
admitir o patrocínio forense em causa própria, pelo menos naqueles casos em que,
pela ausência de uma discussão desapaixonada e serena das questões a decidir, a
administração da justiça poderá sair prejudicada.
Foram, aliás, razões como estas que levaram o Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 578/01, publicado nos Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 51.º vol., p. 655) a responder negativamente à questão de
constitucionalidade das normas constantes dos artigos 61.º, 62.º, 63.º e 64.º do
Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de vedarem a um
arguido advogado a possibilidade de auto-defender-se.
Disse-se, então, aí:
“A esta questão responde o Tribunal negativamente.
Efectivamente, a tese do recorrente só seria de aceitar se se
partisse de uma posição de harmonia com a qual, sendo o arguido um advogado
(regularmente inscrito na respectiva Ordem), a sua «auto-representação» no
processo criminal contra si instaurado representasse, de modo objectivo, um
melhor meio de se alcançar a sua defesa e se a lei processual penal não
reconhecesse ao arguido um conjunto de direitos processuais estatuídos, verbi
gratia, no art. 61.º, n.º 1, e 63.º, nº 2, quanto a este último avultando o de
poder, pelo mesmo arguido. ser retirada eficácia a actos processuais praticados
pelo seu defensor em seu nome, se assim o declarar antes da decisão a tomar
sobre tal acto.
E é justamente dessa posição que se não pode partir.
Não se nega que, na óptica (naturalmente subjectiva) do recorrente, este possa
entender que a sua defesa em processo criminal seria melhor conseguida se fosse
prosseguida pelo próprio na qualidade de «advogado de si mesmo», do que se fosse
confiada a um outro advogado.
Só que, como este Tribunal já teve oportunidade de salientar (cfr. citado
Acórdão nº 252/97) '«há respeitáveis interesses do próprio interessado, a
apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal», sendo certo
que, «mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria
técnico-jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da
auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus
interesses seja feita de modo desapaixonada» , ou, como se disse no Acórdão n.º
497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14º volume, 227 a
247), 'mesmo relativamente aos licenciados em Direito (enquanto parte) se pode
afirmar, com Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p.85),
que «às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento psicológico)
[...] que se fazem mister à boa condução do pleito»'.
A opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige
que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele,
não se vê que seja contraditada pela Constituição.
O agir desapaixonado torna-se, desta arte e de modo objectivo, uma garantia mais
acrescida no processo criminal, o que só poderá redundar numa mais valia para as
garantias que devem ser prosseguidas pelo mesmo processo, sendo certo que, como
se viu acima, ao se não poder silenciar a corte de outros direitos consagrados
ao arguido pela lei adjectiva criminal, isso redunda na conclusão de que se não
descortina uma diminuição constitucionalmente censurável das garantias que o
processo criminal deve assegurar”.
A validade de uma tal argumentação tem força acrescida naqueles
casos, como o presente, em que, em socorro da tese oposta, não surge a
existência de uma garantia constitucional como a que reconhece o n.º 1 do art.
32.º da CRP – o princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido – em
cuja consideração se acaba por estear o voto de vencido.
7.4 – Pretexta ainda o recorrente que a norma em causa viola,
também, “o direito ao trabalho e à sua realização pessoal no exercício desse
direito”, consagrados nos artigos 58.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, alínea b), da
Constituição, asserção esta que terá de entender-se enquanto restringida à
impossibilidade de trabalhar para si próprio, ao não poder representar-se a si
próprio como advogado na constituição de assistente em processo penal, em que
figure como ofendido.
Ora, embora dirigido a um caso em que a questão que se colocava
era a da impossibilidade de os licenciados em direito poderem litigar em causa
própria de natureza cível, disse-se o seguinte no Acórdão n.º 497/89, publicado
in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º vol., p. 241 (e também seguido nos
Acórdãos nºs 252/97 e 326/97, igualmente publicados in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 36.º vol., pp. 645 e 819):
'[…] não pode recusar-se que, pela sua natureza, e pela sua directa
inserção no «processo» social e institucional da realização e da administração
da justiça, a advocacia é uma profissão cujo exercício não dispensa uma apurada
regulamentação, no tocante, quer às condições e requisitos exigidos para esse
mesmo exercício, quer ao controlo da sua verificação, quer à necessidade de
obediência, por parte dos respectivos profissionais, a um estrito código
deontológico, quer ainda, finalmente, à tutela disciplinar da observância de tal
código”.
[...]
[…] e vista a questão, por último, sob o prisma da garantia
constitucional da livre escolha de profissão ou género de trabalho – importa
recordar, antes de tudo, que, de acordo com o próprio texto expresso da
Constituição (…), tal liberdade só tem lugar “salvas as restrições legais
impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade”.
É a própria Constituição, portanto, que directamente faculta ao
legislador a possibilidade de impor condições ou limites ao exercício de certas
profissões - e entre tais condições, requisitos ou limites não se vê que não
possa estar justamente o da inscrição obrigatória dos profissionais em causa
numa associação pública «representativa» de todos eles”.
Consentindo a Constituição, como vem de dizer-se, a
possibilidade de o legislador ordinário “impor condições ou limites ao exercício
de certas profissões”, nestas, sendo de incluir as que visam salvaguardar que o
patrocínio forense cumpra a sua função de elemento essencial à administração da
justiça, não pode considerar-se desnecessária, desadequada ou desproporcionada
(art. 18.º, n.º 2, da CRP) uma restrição imposta ao direito de exercício da
profissão de advogado, quando esta se traduza em patrocínio forense em favor de
si próprio, como assistente em processo penal.
As restrições impostas encontram a sua razão de ser no facto de
o patrocínio forense dever cumprir uma função essencial à administração da
justiça e de esta pressupor a possibilidade de uma discussão da causa serena e
desapaixonada, sendo que a confusão entre o patrocinador forense e o concreto
titular dos interesses jurídico-penais, que a lei quis proteger com a
incriminação, não se mostra apta a acautelar estas exigências constitucionais.
Temos de concluir, portanto, que não se mostram ofendidos os
alegados parâmetros constitucionais.
8 – A questão de constitucionalidade do artigo 84.º, n.º 2, do
Código das Custas Judiciais
O recorrente questiona ainda a constitucionalidade do art.
84.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
224-A/96, de 26 de Novembro, “na interpretação segundo a qual o
ofendido-advogado, requerente de admissão como assistente, que pagou a
respectiva taxa de justiça, ainda pode ser condenado em custas de ‘incidente’ em
virtude de o seu requerimento ter sido indeferido por não haver outorgado
procuração a outro advogado”.
Sustenta que a norma “é inovadora e absolutamente
surpreendente, por incluir na sua previsão como ocorrência estranha ao
desenvolvimento do processo actos que se encontram tipificados nos artigos 68.º,
nºs 1, alínea a), 3, 4, e 5, e 519.º, n.º 1, do CPP, pelo que a sua aplicação
viola a tutela da confiança e da segurança jurídicas implícitas no princípio do
Estado de direito democrático” e “é absolutamente indeterminada quer na sua
previsão quer na sua estatuição, pelo que viola os princípios do Estado de
direito democrático consagrado no art. 2.º, sendo sancionada nos termos do
disposto no art. 3.º, n.º 3, da Constituição”.
A norma impugnada dispõe do seguinte jeito (transcreve-se
também o n.º 1 para melhor apreensão do sentido do preceito):
Artigo 84.º
(Taxa de justiça nos incidentes)
1 - Nos incidentes de recusa, de anulação do processado, de apoio judiciário, de
habeas corpus e de reclamação para a conferência, bem como noutras questões
legalmente configuradas como incidentes, é devida taxa de justiça entre metade
de 1 UC e 5 UC.
2 - Nas ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal do processo que devam
ser tributadas segundo os princípios que regem a condenação, é devida taxa de
justiça entre um quarto de UC e 5 UC.
Antes de mais, há que notar que, em causa, apenas pode estar a
constitucionalidade de um juízo interpretativo relativo a norma que estabelece a
tributação, em custas judiciais, de um determinado acto processual – no caso,
ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo – e não qualquer juízo
a respeito da concreta qualificação jurídica feita pelas instâncias,
relativamente à subsunção do acto processual, consubstanciado nos pedidos de
constituição de assistente e de admissão como advogado desse assistente ao
conceito de ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo.
Ora, o recorrente tanto imputa, confusamente, a violação da
tutela da confiança e da segurança jurídicas ao facto de que “nada permitia
prever sequer a possibilidade remota de se entender que uma ocorrência típica do
CPP (cf. artigos 68.º, n.º 1, alínea a), 3, 4, e 5, e 519.º, n.º 1) pudesse ser
havida como ocorrência estranha ao desenvolvimento normal do processo”, como a
atribui à circunstância de “ser inovadora e absolutamente surpreendente, por
incluir na sua previsão como ocorrência estranha ao desenvolvimento do processo
actos que se encontram tipificados nos artigos 68.º, n.ºs 1, alínea a), 3, 4, e
5, e 519.º, n.º 1, do CPP”.
Centrando-nos na primeira parte da sua alegação, verifica-se
que o que o recorrente acaba por impugnar é a correcção do juízo feito pela
decisão recorrida no sentido de considerar como correspondendo ao conceito de
ocorrência estranha ao desenvolvimento do processo a concreta actividade
processual por ele levada a cabo, ao requerer que fosse admitido a assumir o
patrocínio forense na sua constituição como assistente em processo penal em que
detinha a qualidade de ofendido.
Mas sendo assim, não tem qualquer sentido a convocação da
tutela constitucional decorrente dos princípios da tutela da confiança e da
segurança jurídicas, que estão direccionadas para a salvaguarda ou de
expectativas criadas à sombra da lei vigente em caso de alteração desse quadro
normativo (cf. a propósito, entre outros, os Acórdãos nºs 156/95 e 222/98,
publicados, respectivamente, in Diário da República II Série, de 21 de Junho de
1995, e 25 de Julho de 1998), ou de direitos reconhecidos, com trânsito ou
consolidação em julgado, à face da lei.
A alegação é, pois, nesta medida manifestamente improcedente.
Mas as coisas não mudam de figura se nos ativermos ao segundo
ponto de vista do recorrente: independentemente de uma tal acepção normativa não
vir assente da decisão recorrida e não caber nos poderes do Tribunal aferir se a
interpretação jurídica defendida pelo recorrente corresponde ao melhor direito,
a circunstância de a norma em causa poder incluir, na sua previsão, actos
tipificados em outro ponto do sistema jurídico das custas judiciais em vigor,
como passíveis igualmente de tributação não contende, em nada, com a salvaguarda
de quaisquer expectativas criadas à sombra de outro regime legal, diferente
daquele em que a questão do seu reconhecimento se coloque, ou de direitos
declarados, com trânsito em julgado, em aplicação de certa lei.
A questão, que nesta perspectiva se poderia colocar, era a da
eventual existência da figura de uma dupla tributação. Mas esta não é, per se,
constitucionalmente proibida e, não assumindo a decisão recorrida a definição de
quaisquer termos em que essa realidade poderá estar consubstanciada, não é
possível indagar se se verifica uma situação em que essa eventual dupla
tributação possa ofender normas ou princípios constitucionais.
Finalmente, alega o recorrente que a norma em causa é
absolutamente indeterminada quer na sua previsão, quer na sua estatuição, pelo
que viola os princípios do Estado de direito democrático, consagrados nos art.
2.º e 3.º, n.º 3, da CRP.
O Tribunal Constitucional vem repetidamente afirmando que a
Constituição da República Portuguesa não impõe a gratuitidade da administração
da justiça, pelo que poderá impor o pagamento de contrapartidas, pela utilização
de tal serviço, desde que essas contrapartidas não impeçam ou restrinjam, de
modo intolerável, o direito de acesso aos tribunais garantido pelo artigo 20.º.
Por outro lado, tem o Tribunal, igualmente, entendido que essa contrapartida tem
a natureza de taxa.
Ora, até à revisão constitucional de 1997, sendo de notar que a
criação da taxa em causa é anterior a esse momento, a definição do regime legal
das taxas não estava sequer sujeita a qualquer âmbito de reserva de lei formal,
só, então, tendo sido incluída, na reserva relativa da Assembleia da República,
a competência para definir o “regime geral das taxas e demais contribuições
financeiras a favor das entidades públicas”. A criação das taxas e seu regime
estavam sujeitos, apenas, ao princípio da legalidade administrativa, nas suas
duas vertentes – positiva e negativa (de precedência de lei e de prevalência de
lei).
Ao contrário do que sucede com os impostos em que o seu
fundamento garantístico assenta, essencialmente, na existência de um controlo
político, expresso no princípio da auto-tributação representativa, a garantia
das taxas assumia, essencialmente, uma natureza estritamente jurídica que se
exprimia através da exigência de verificação de um nexo de sinalagmaticidade ou
de uma relação de bilateralidade entre a prestação do obrigado tributário e a
contraprestação específica da autoridade pública e da sua subordinação, em
matéria da fixação do seu montante, ao princípio da proporcionalidade aplicado
por referência ao princípio da equivalência jurídica entre as prestações (nada
impedindo o legislador, neste domínio, de adoptar um outro método como o da
cobertura dos custos da contraprestação – o Kostendeckungsprinzip).
Tal diferente natureza e fonte das suas garantias não podem deixar de ter
reflexos no que tange às exigências relativas à criação dos dois tributos e à
densidade normativa dos critérios de tributação.
Ora, o Tribunal Constitucional vem admitindo (cf., a título de exemplo, o
Acórdão n.º 252/05, publicado in Diário da República II Série, de 23 de Junho de
2005, e os arestos aí mencionados), mesmo no domínio dos impostos, cuja
definição dos elementos essenciais está sujeita ao princípio da legalidade
tributária {reserva de lei formal do Parlamento ou de decreto-lei do Governo
emitido no uso de autorização legislativa [art. 103.º, n.º 2, e 165.º. n.º 1,
alínea i), da CRP]}, a utilização de conceitos jurídicos indeterminados, de
“certas cláusulas gerais”, de “conceitos tipológicos” (Typusbegriffe), de “tipos
discricionários” (Ermessenstatbestände) e de certos conceitos que atribuem à
administração uma margem de valoração – os designados “preceitos de poder”
(Kaann-Vorschrift) – na medida em que só desse modo se torna possível
surpreender certa riqueza ou certos rendimentos tributáveis e dar eficaz
execução ao princípio constitucional da tributação segundo a capacidade
contributiva (cfr. J. L. Saldanha Sanches, “A segurança jurídica no Estado
social de direito”, in Ciência e Técnica Fiscal, nºs 310/312, pp. 299 e segs.;
J. Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1998, pp. 373
e segs.).
Se isto é assim, no domínio dos impostos, onde ao pagamento da
prestação pecuniária em que se corporiza o imposto não corresponde qualquer
contraprestação específica a prestar pelo credor do imposto ao obrigado
tributário, maior razão existe para a possibilidade de utilização dos conceitos
jurídicos indeterminados, cláusulas gerais, de “tipos discricionários” ou de
“preceitos de poder” no campo das taxas, já que aqui a aplicação de preceitos
desses tipos hão-de supor sempre a realização de uma contraprestação específica
por parte do credor da taxa ao obrigado tributário.
E assim é no caso. Na verdade, a tributação em taxa de justiça,
que pode variar entre um quarto de UC e cinco UC, como incidente ou ocorrência
processual estranhos ao desenvolvimento da lide, prevista na norma impugnada,
supõe exactamente, como igualmente dela decorre, que se verifique uma situação
que justifique a tributação segundo “os princípios que regem a condenação” em
taxa de justiça.
Tal vale por dizer que a norma supõe que a ocorrência
processual estranha ao desenvolvimento normal da lide, precisamente porque o é,
acaba por obrigar o tribunal a prestar um mais oneroso serviço de justiça, ao
ter de deter-se na apreciação de pretensões em que o incidente se corporiza,
prestando desse modo, ao requerente, uma contraprestação específica de serviço
de justiça de valor diferente daquela que o normal desenvolvimento da lide
demandaria do órgão jurisdicional. E tal é o que se passa quando o requerente da
admissão como assistente em processo penal vê esse requerimento indeferido por,
sendo advogado, não ser admitido a litigar em representação de si próprio e não
haver constituído advogado.
É que a taxa de justiça prevista pela intervenção do assistente
em processo penal representa, apenas, a contraprestação específica pela
utilização dos serviços de justiça no que importa à actividade que, como sujeito
munido de certos direitos processuais, pode levar a cabo no processo, tendo em
vista o seu normal desenvolvimento.
Deste modo, pode concluir-se que não se verifica qualquer
“indeterminação da estatuição da norma” que ofenda o princípio do Estado de
direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, em qualquer das
suas possíveis acepções, nomeadamente, na de o poder de tributar em taxa de
justiça dever estar sujeito a princípios e regras jurídicas que garantam
segurança jurídica a quem acede e utiliza bens ou serviços públicos e que não
sejam arbitrárias ou injustas.
O recurso não merece, pois, provimento.
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide:
a) não julgar inconstitucionais as normas constantes:
aa) do artigo 70.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no
segmento em que determina que os assistentes são sempre representados por
advogado e na interpretação segundo a qual esta representação tem de ser
assegurada mediante emissão de procuração a favor de advogado que não o advogado
ofendido com direito a ser constituído assistente nos termos dos artigos 68.º,
n.º 1, alínea a), e 69.º do mesmo código;
ab) do artigo 84.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na interpretação
segundo a qual o ofendido-advogado, requerente de admissão como assistente, que
pagou a respectiva taxa de justiça, ainda pode ser condenado em custas de
“incidente” em virtude de o seu requerimento ter sido indeferido por não haver
outorgado procuração a outro advogado;
b) Negar provimento ao recurso;
c) Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça
em 20 UCs.
Lisboa, 18 de Maio de 2006
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos