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Processo n.º 60/06
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
1. A Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da
República, representada por Alexandre Miguel Pereira Araújo, mandatário
financeiro dessa candidatura, interpôs recurso, ao abrigo do n.º 3 do artigo
46.º da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro, da decisão da Entidades das
Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) de 12 de Janeiro de 2006 que, em
procedimento de contra-ordenação, lhe aplicou uma admoestação, por violação do
artigo 15.º da referida Lei n.º 2/2005.
Alega que não cometeu a aludida infracção pelo seguinte:
“A. As funções da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, que resultam
da sua natureza, são as de coadjuvar tecnicamente o Tribunal Constitucional na
apreciação e fiscalização das contas dos partidos político e das campanhas
eleitorais para Presidente da República…
B. A coadjuvação técnica passa por instruir os processos respeitantes às contas
dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.
C. E também pela fiscalização da correspondência entre os gastos declarados e as
despesas efectivamente realizadas.
D. E, ainda, pela realização de inspecções e auditorias de qualquer tipo ou
natureza e determinados actos, procedimentos e aspectos de gestão financeira das
contas dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.
E. As competências da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, previstas
na Lei, de instruir os processos respeitantes às contas, de fiscalizar a
correspondência entre os gastos declarados e as despesas efectivamente
realizadas e de realizar inspecções e auditorias a determinados actos,
procedimentos ou aspectos da gestão financeira das contas, são as competências
atribuídas pela Lei à ECFP que, claramente, só vigoram após a apresentação e na
presença das contas respectivas.
F. O conteúdo do ofício n.º 526/05, da Entidade das Contas e Financiamentos
Políticos é contraditório.
G. No pedido formulado no ofício n.º 526/05, da ECFP não é invocado qualquer
preceito legal.
H. O pedido formulado no ofício n.º 526/05, da ECFP é extemporâneo por falta de
suporte legal.
I. O pedido de aclaração do conteúdo do ofício 526/05 da Entidade das Contas e
Financiamentos Políticos é legítimo.
J. A candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da República não violou o
artigo 15º, da Lei 02/2005, de 10 de Janeiro.
Nestes termos, e nos mais que esse Tribunal suprirá, deve dar-se provimento ao
recurso, anulando-se a decisão de admoestação aplicada pela Entidade das Contas
e Financiamentos Políticos ao Mandatário Financeiro Nacional da Campanha
Eleitoral de Jerónimo de Sousa a Presidente da República.”
2. O Ministério Público entendeu “circunscrever a sua
intervenção à tomada de posição no sentido de se lhe afigurar que os autos estão
em condições de ser apreciados e decididos pelo Tribunal Constitucional, sem
necessidade de produção de prova quanto à matéria de facto, na medida em que
apenas estão em causa questões de direito”.
3. O relator proferiu despacho do seguinte teor:
“Pode razoavelmente colocar-se a hipótese de não dever tomar-se conhecimento do
objecto do recurso, por ilegitimidade do recorrente, tendo presente
- Que a decisão contenciosamente impugnada consiste numa admoestação que, embora
por factos praticados no exercício das funções de mandatário da candidatura de
Jerónimo de Sousa a Presidente da República, é pessoalmente dirigida a Alexandre
Miguel Pereira Araújo, a quem é imputada a contra-ordenação que, com essa
medida, se sanciona;
- Que o recurso, quer pela expressa identificação no seu intróito, quer pelo
teor do respectivo requerimento inicial, não parece poder ser considerado como
interposto pelo destinatário da medida, mas pela “Candidatura de Jerónimo de
Sousa a Presidente da República”;
- Que só tem interesse directo em impugnar a admoestação imposta em substituição
da coima quem foi considerado infractor e, por isso, sujeito a uma medida de tal
natureza.
Assim, ao abrigo do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, determino a
notificação do recorrente para se pronunciar, querendo, sobre esta questão, no
prazo de 10 dias.”
A que a recorrente respondeu nos seguintes termos:
“1. Do auto de notícia datada de 21 de Dezembro, de 2005, que deu origem ao
processo de contra-ordenação n.º 1/PR-2006, cuja decisão está na base do recurso
em análise nesse Tribunal Constitucional, consta como infractor a Candidatura de
Jerónimo de Sousa (doc. N.º 1, que se junta e aqui se dá por inteiramente
reproduzido).
2. Daí a resposta deduzida, nos termos do artigo 50°, do decreto-lei n.º 433/82,
de 27 de Outubro, ter sido apresentada pela Candidatura de Jerónimo de Sousa a
Presidente da República, embora assinada pelo seu Mandatário Financeiro
Nacional, como decorre da Lei.
3.Por outro lado, na decisão no processo de contra-ordenação, confirmava-se a
Candidatura de Jerónimo de Sousa como infractor, e no primeiro parágrafo
afirmava-se que a ECFP solicitou “a 5 Candidaturas”, para abaixo, embora sem
qualquer relevância para o processo de contra-ordenação, se voltar a referir
“Todas as Candidaturas...”.
4. Ou seja, em todo o processo o alegado infractor era a “Candidatura” e não o
Mandatário Financeiro, ou o Candidato, que, como prevê o artigo 47º, da lei n.º
2/2005, apenas são referidos como sujeitos da aplicação concreta de eventual
coima, em consequência de decisão de violação da Lei pela entidade que
representam.
5.Acresce que no cabeçalho do recurso, a Candidatura de Jerónimo de Sousa a
Presidente a República não se conforma com a admoestação ao seu Mandatário
Financeiro Nacional.
6. Sendo que é este que subscreve o recurso, como resulta da Lei.
7. Devendo, assim, considerar-se que o Mandatário, ao subscrever o recurso, com
ele concorda e o acompanha.
8. Pelo que deve ser considerado legitimamente interposto o recurso em
apreciação, impedindo-se, assim, que uma mera questão de interpretação obvie à
apreciação da questão de fundo ínsita no recurso.
9. Efectivamente, e como o Tribunal Constitucional só aprecia questões
concretas, o que se pretende com o recurso é saber se é correcta a interpretação
que a ECFP faz do artigo 15° da Lei 2/2005, de 10 de Janeiro que esteve na
origem do processo de contra-ordenação instaurado à Candidatura de Jerónimo de
Sousa a Presidente da República e que culminou com a aplicação de uma
admoestação por incumprimento do referido artigo 15°.
10. Ou, de outro modo, se a Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da
República violou a Lei e é legal a instauração do processo de contra-ordenação
e, consequentemente, os seus ulteriores termos.
11. Isto é, o recurso tanto interessa à “Candidatura” que o encabeça, como ao
“Mandatário”, que o subscreve.
12. Pelo que, ambas as entidades têm legitimidade na interposição do recurso.”
4. Considera-se provada, por documento, a matéria de facto
seguinte:
a) A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos remeteu a
Mário de Oliveira Nogueira, na qualidade de “Mandatário Financeiro da
Candidatura do Sr. Jerónimo de Sousa” [às eleições presidenciais de 2006] o
ofício ECFP-526/05, de 6 de Dezembro de 2005, com o seguinte teor:
“Tem essa candidatura afixado por todo o País cartazes com publicidade às
próximas Eleições Presidenciais.
Referimo-nos aos “out-doors” com “slogans” e outras menções anunciando e
publicitando o vosso Candidato.
Chamamos a vossa atenção para o facto dos custos respectivos, completos e bem
discriminados, terem de ser considerados nas Contas da Campanha, tal como se
refere nas nossas Recomendações.
Lembramos que, tal como também aí se refere, os dados relativos aos cartazes e
às estruturas onde são colocados, deverão ser comunicados à ECFP até ao dia
23/01/06 (30 dias após o envio do Orçamento de campanha).
Pretendemos que essa informação seja discriminada do modo seguinte:
- Apresentação do contrato com o(s) Prestador(es) de Serviços, donde resulte de
forma explícita, a dimensão dos suportes utilizados discriminados por tipo de
mensagem e acompanhado de suporte fotográfico digital, bem como a sua
localização geográfica (Distrito, Concelho, Freguesia + localização).
No entanto, tendo em vista um controlo mais eficaz por parte desta Entidade,
desde já solicitamos, que esta última especificação – nº e localização bem
precisa de cada estrutura com cartaz – nos seja remetida imperativamente até dia
15 de Dezembro p.f..”
b) Por carta de 14 de Dezembro de 2005, a “Candidatura de
Jerónimo de Sousa” esclareceu ser Alexandre Miguel Pereira Araújo – que assina a
carta nessa qualidade - o mandatário financeiro da candidatura e solicitou a
aclaração do último parágrafo do ofício referido na alínea anterior dizendo: “É
que, além do termo “imperativamente” ser manifestamente desadequado, a Lei n.º
2/2005 de 10 de Janeiro, que rege essa Entidade, no seu n.º 4, do artigo 16º,
estabelece expressamente que “o prazo para o cumprimento do dever de comunicação
de acções de campanha eleitoral realizadas e dos meios nelas utilizados termina
na data de entrega das respectivas contas”.
c) Em 21 de Dezembro de 2005, a ECFP instaurou processo de
contra-ordenação, com base em auto de notícia do seguinte teor:
“A 6 de Dezembro de 2005, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos
solicitou ao mandatário financeiro da Candidatura de Jerónimo de Sousa a
indicação da localização das estruturas que suportam os cartazes de propaganda
com vista à eleição do Presidente da República/2006.
A Candidatura mencionada não satisfez o solicitado pela Entidade das Contas.
A Candidatura de Jerónimo de Sousa tem sede na Rua Soeiro Pereira Gomes, nº 3,
em Lisboa, e o seu mandatário financeiro nacional é Alexandre Miguel Pereira
Araújo.
Dispõe o artigo 15º da Lei 2/2005, de 10 de Janeiro, que “A Entidade pode
solicitar a quaisquer entidades, públicas ou privadas, as informações e a
colaboração necessárias para o exercício das suas funções.”
Nos termos do artigo 9º, nº 3, do mesmo diploma, compete à Entidade “Realizar,
por sua iniciativa ou a solicitação do Tribunal Constitucional, inspecções e
auditorias de qualquer tipo ou natureza a determinados actos, procedimentos e
aspectos da gestão financeira, quer das contas dos partidos políticos quer das
campanhas eleitorais.”
Nesse sentido, os factos acima referidos prefiguram a violação do disposto no
citado artigo 15º, circunstância que constitui contra-ordenação para o
mandatário financeiro, candidato à eleição presidencial e primeiros proponentes
de grupos de cidadãos eleitores, punível nos termos do artigo 47º da mesma Lei
com coima de 2 salários mínimos mensais nacionais (€ 749,40) a 32 salários
mínimos mensais nacionais (€11.990,40), sendo da Entidade das Contas e
Financiamentos Políticos a competência para a aplicação da respectiva coima,
como prescreve o artigo 46º, nº 2, do referido diploma legal.
Assim, por deliberação da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos de 20
de Dezembro de 2005, é instaurado o devido processo de contra-ordenação.
Para constar se lavrou o presente auto que vai devidamente assinado.”
d) Pelo ofício ECFP-535/05, de 21 de Dezembro de 2005,
Alexandre Miguel Pereira Araújo, foi notificado nos seguintes termos:
“Para efeitos do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de
Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, fica
V. Exa. notificado para, no prazo de 15 (quinze) dias contínuos, se pronunciar
sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção em que incorre,
conforme auto de notícia de que junto fotocópia e documentos anexos.”
e) A “Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da
República”, dizendo-se notificada para se pronunciar no processo de
contra-ordenação, apresentou resposta em 6 de Janeiro de 2006, assinada pelo
respectivo mandatário financeiro nacional, Alexandre Miguel Pereira Araújo.
f) A 10 de Janeiro de 2006, a Entidade das Contas e
Financiamentos Políticos proferiu a seguinte decisão:
“OS FACTOS
A 6 de Dezembro de 2005, a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos
solicitou, a 5 candidaturas à próxima eleição do Presidente da República,
informação sobre a localização das estruturas que suportam cartazes de
propaganda com vista à eleição referida, tendo para o efeito determinado um
prazo.
Todas as candidaturas satisfizeram o pedido efectuado, à excepção da Candidatura
de Jerónimo de Sousa que ao mesmo, na pessoa do seu mandatário financeiro,
respondeu o seguinte:
«Relativamente à carta de V. Ex.ª acima referenciada, a candidatura de Jerónimo
de Sousa entende dizer o seguinte:
(…) Solicitar a aclaração do último parágrafo da carta de V. Ex.ª,
designadamente, quanto ao pedido que o número e localização bem precisa de cada
estrutura com cartaz seja remetida “imperativamente” até ao dia 15 de Dezembro
p.f..
É que, além do termo “imperativamente” ser manifestamente desadequado, a Lei nº
2/2005 de 10 de Janeiro, que rege essa Entidade, no seu nº 4, do artigo 16º,
estabelece expressamente que “o prazo para o cumprimento do dever de comunicação
de acções de campanha eleitoral realizadas e dos meios nelas utilizados termina
na data de entrega das respectivas contas”.»
Face à não prestação das informações solicitadas e tendo em conta que a
resposta, nos termos exactos em que foi efectuada, consubstanciava uma
discordância com a actuação da Entidade e não o intitulado pedido de aclaração,
veio a Entidades das Contas e dos Financiamentos Políticos instaurar
procedimento contra-ordenacional.
Procedeu-se, assim, ao levantamento de auto de notícia, no qual foram indicados
os factos relativos à infracção, bem como a transcrição das normas jurídicas
aplicáveis à situação - artigos 15º e 47º da Lei 2/2005, de 10 de Janeiro e,
ainda, acessoriamente, a alínea c) do nº 1 do artigo 9º do mesmo diploma (que,
apesar de transcrito, foi, por lapso de escrita, citado como sendo o nº 3 do
artigo 9º).
Em fase de audiência escrita, o mandatário financeiro da candidatura de Jerónimo
de Sousa pronunciou-se nos seguintes termos:
Numa 1ª parte denominada “Questões Prévias”, referiu que a Candidatura cumpre
escrupulosamente a lei, sem prejuízo da profunda discordância política que já
manifestou em relação à lei do financiamento, bem como considerou que se está a
fomentar um clima de total suspeição que não serve a Democracia, nem dignifica a
Vida Política, tendo a ECFP uma natureza técnica e pedagógica, com o objectivo
último da transparência e da correcção das contas partidárias e das campanhas
eleitorais. A parte dedicada à “Questão de Fundo” tem o teor que a seguir se
transcreve:
«1. Com data de 06.Dez.2005, a Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da
República, recebeu da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos o ofício
526/05 no qual se chamava a atenção (que se agradece) para alguns procedimentos
a levar em consideração nas contas e sobre o modo como as informações relativas
aos meios utilizados deverão ser fornecidas à ECFP, tudo referente à campanha
eleitoral para Presidente da República, nos termos (supõe-se porque não
invocado), dos artigos 10º e 11º, da Lei 2/2005, de 10 de Janeiro).
2. Mais se transmitia, num último parágrafo, em contradição, aliás, com a parte
inicial do ofício, que o “nº e localização bem precisa de cada estrutura com
cartaz” fosse remetida à ECFP imperativamente até ao dia 15 de Dezembro p.f.”.
3. Na resposta dada pela Candidatura de Jerónimo de Sousa, além de se rectificar
o nome do Mandatário Financeiro Nacional da Candidatura, solicitava-se, e tão
só, a aclaração do conteúdo do último parágrafo do mencionado ofício.
4. De facto, o referido parágrafo, além de contraditório, repete-se, com a
primeira (e fundamental) parte do ofício, também não invoca qualquer preceito
legal em que suporte a solicitação e tem um carácter imperativo que não se
aceita, não está na natureza, nem nas atribuições da Entidade das Contas e dos
Financiamentos Políticos.
5. Quando no artigo 2º da Lei 2/2005, de 10 de Janeiro se comete à Entidade das
Contas e Financiamentos Políticos a atribuição de coadjuvar tecnicamente o
Tribunal Constitucional na apreciação e fiscalização das contas dos partidos
políticos e das contas das campanhas eleitorais … (e é esta a sua natureza
legal), está-se a afirmar que, no que se refere aquelas contas, o dever de
colaboração prevista no artigo 15º, da Lei nº 2/2005, só ocorre “à posteriori”,
ou seja, que só são devidas informações e colaboração para esclarecer as contas
apresentadas.
6. E não antes, embora a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos o possa
solicitar, mas apenas às entidades exteriores àquelas outras que apresentaram as
contas, nomeadamente aos fornecedores constantes das contas para efeito de
cruzamento de informação, o que embora a custo, se pode aceitar.
7. Finalmente, nos termos dos artigos 16º, nº 4 e 5 e 17º, nº 1 da Lei 2/2005,
de 10 de Janeiro, a relação entre a Entidade das Contas e Financiamentos
Políticos e os Partidos Políticos ou Campanhas Eleitorais, no que concerne à
fiscalização das contas, inicia-se com a entrega das contas dos partidos
políticos ou com a entrega dos orçamentos da campanha a que se segue a entrega
das respectivas contas, e não antes sem prejuízo, como prevê o artigo 10º, da
definição, através de regulamento, das regras necessárias à normalização de
procedimentos no que se refere à apresentação de despesas pelos partidos
políticos e campanhas eleitorais, ou, nos termos do artigo 11º, ambos da Lei
acima referida, de emitir recomendações genéricas.
8. É de salientar, à laia de conclusão, que não deixa de ser interessante do
ponto de vista da pura especulação intelectual, que no primeiro contacto com a
Entidade das Contas e Financiamentos Políticos e a Candidatura de Jerónimo de
Sousa a Presidente da República e perante a solicitação de uma aclaração do
conteúdo de um ofício, que o próprio Código do Processo Civil contempla para as
sentenças judiciais, venha, de imediato, a ser instaurado um processo de
Contra-Ordenação visando a aplicação de uma coima.
9. Situação que não se aceita e se repudia, desde logo por tudo o que atrás
ficou dito mas também, e não menos importante, porque não houve qualquer recusa
expressa ou subentendida à solicitação feita à Candidatura de Jerónimo de Sousa
a Presidente da República, solicitação, aliás, ilegítima quer por ausência de
invocação legal, que por extemporânea.
Nestes termos deve o processo de Contra-Ordenação ser arquivado por não ter
havido qualquer violação da Lei 2/2005, de 10 de Janeiro, designadamente, dos
seus artigos 15º e 9º, nº 2, invocados no auto de notícia.»
O DIREITO
I) Entidade competente para o processamento da contra-ordenação e a aplicação da
coima.
É da competência da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, adiante
designada por ECFP, a aplicação das sanções previstas na Lei Orgânica 2/2005, de
10 de Janeiro, ou seja, a aplicação das coimas aos mandatários financeiros,
candidatos às eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista,
primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores e partidos políticos, pelo
incumprimento dos deveres de comunicação e colaboração (artigos 46º e 47º do
diploma mencionado).
Das decisões da ECFP cabe recurso de plena jurisdição para o Tribunal
Constitucional, em plenário.
II) As normas aplicáveis
As matérias relativas ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas
eleitorais encontram expressão legal na Lei 19/2003, de 20 de Junho, e na Lei
Orgânica 2/2005, de 10 de Janeiro.
Os mencionados diplomas legais entraram em vigor no início de 2005 e
introduziram diversos aspectos inovadores comparativamente ao quadro legal
anteriormente aplicável e que consistem, entre outros, na ampliação e reforço
das atribuições da nova entidade fiscalizadora, no acréscimo de deveres e
obrigações dos partidos e candidaturas, na introdução de novos comandos ao nível
das receitas e despesas e num quadro sancionatório mais penalizador, prevendo,
nalgumas situações, a pena de prisão.
No actual regime do financiamento dos partidos e das campanhas está instituído o
dever de colaboração para com a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.
Conforme o disposto no artigo 15º da Lei Orgânica 2/2005, a ECFP pode solicitar
a quaisquer entidades, públicas ou privadas, as informações e a colaboração
necessárias ao exercício das suas funções.
A violação do preceito referido constitui contra-ordenação punível nos termos do
artigo 47º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Incumprimento dos deveres de
comunicação e colaboração” e cujo teor é o seguinte:
«1 - Os mandatários financeiros, os candidatos às eleições presidenciais, os
primeiros candidatos de cada lista e os primeiros proponentes de grupos de
cidadãos eleitores que violem os deveres previstos nos artigos 15.º e 16.º são
punidos com coima mínima no valor de 2 salários mínimos mensais nacionais e
máxima no valor de 32 salários mínimos mensais nacionais.
2 - Os partidos políticos que cometam a infracção prevista no n.º 1 são punidos
com coima mínima no valor de 6 salários mínimos mensais nacionais e máxima no
valor de 96 salários mínimos mensais nacionais.»
Âmbito subjectivo das normas:
O artigo 15º supra mencionado dirige-se abstractamente a quaisquer entidades
públicas ou privadas, nela cabendo um elenco imensurável de destinatários.
Contudo, a norma punitiva (artigo 47º já referido) tem um alcance muito menor e
determina quais as entidades que, ofendendo o referido dever de colaboração,
estão sujeitas a punição.
Assim são alvos preferenciais do dever de colaboração consignado no artigo 15º
os responsáveis pelas candidaturas - mandatários financeiros, candidatos às
eleições presidenciais, primeiros candidatos de cada lista e primeiros
proponentes de grupos de cidadãos eleitores - e os partidos políticos.
Âmbito objectivo das normas:
O poder da ECFP (e correspondente dever por parte das outras entidades) de obter
informações e colaboração está intimamente ligado às atribuições que lhe estão
cometidas por lei, nomeadamente a de fiscalizar a correspondência entre os
gastos declarados e as despesas efectivamente realizadas – alínea b) do nº 1 do
artigo 9º da LO 2/2005.
A complementar esta incumbência, tem ainda a ECFP a atribuição de realizar
inspecções e auditorias de qualquer tipo ou natureza a determinados actos,
procedimentos e aspectos da gestão financeira das contas das campanhas
eleitorais (bem como das contas dos partidos políticos) – alínea c) do artigo 9º
da LO 2/2005.
Circunscrevendo a presente análise à matéria das campanhas eleitorais, diremos
que as aludidas atribuições só são exequíveis através de um acompanhamento das
campanhas das candidaturas e na posse de elementos que, em tempo útil, só as
candidaturas podem fornecer.
De facto, em sede de fiscalização da correspondência das despesas declaradas e
realizadas, se os “gastos declarados” são aqueles que constarão das contas
apresentadas, já as “despesas efectivamente realizadas” são apuradas no momento
em que ocorrem, através de um acompanhamento das campanhas eleitorais, de
pedidos de informações às candidaturas no decorrer do processo eleitoral
(temporalmente entendido nos termos artigo 19º, nº 1 da Lei 19/2003). e, ainda,
da realização de auditorias ou inspecções sempre que se considerar oportuno.
Nessa medida, cabe à ECFP determinar quais as informações e elementos
necessários ao cabal cumprimento das suas funções em obediência à lei.
ANÁLISE JURÍDICA E DECISÃO
A ECFP solicitou informações às candidaturas com vista ao exercício das
atribuições que lhe estão cometidas por lei.
O mandatário financeiro da candidatura de Jerónimo de Sousa, em resposta ao
pedido, invocou que solicitava, tão só, a aclaração do conteúdo do pedido.
Ora, a aclaração consiste no esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade
que o texto contenha, quando seja ininteligível ou de difícil interpretação.
Pode ler-se em vários Acórdãos do STJ sobre esta temática que «não há
ambiguidade na decisão quando o reclamante a compreendeu embora com ela não
concorde.» Ou seja, «haver-se decidido bem ou mal, de forma correcta ou
incorrecta, em sentido contrário ao preconizado pela requerente, é coisa
totalmente diversa da existência de obscuridade ou ambiguidade do acórdão.»
(entre outros, Acórdãos do STJ de 13.11.2002 e 27.11.2003).
É o que sucede na resposta da candidatura em causa, da qual resulta claramente
que compreendeu bem o pedido e apenas não concordou com ele. O inconformismo com
o solicitado não constitui, assim, fundamento para pedido de esclarecimento.
Nesse sentido, verifica-se que o mandatário da candidatura de Jerónimo de Sousa
não correspondeu ao pedido de informações e colaboração da ECFP. Ora, tal
conduta é punida nos termos do artigo 47º da LO 2/2005.
Cumpre agora analisar o caso sub judice em função dos fundamentos invocados pelo
arguido.
É negado um dever de colaboração a todo tempo, referindo o arguido que aquele
apenas tem lugar a posteriori, isto é, após a entrega das contas apresentadas.
Como se pode observar, o dever de colaboração consignado no artigo 15º da LO
2/2005 não está temporalmente limitado, nem a intervenção da ECFP está
circunscrita ao período de verificação das contas.
Por um lado, o dever de colaboração não se restringe aos esclarecimentos que as
candidaturas devem prestar face à efectiva verificação das contas (constante do
artigo 30º, nº 5 da mesma Lei Orgânica), nem se confunde com o processo de
suprimento de irregularidades (fixado no nº 6 do artigo 27º da Lei 19/2003, 13
de Junho).
Por outro lado, a intervenção da ECFP não só é possível a todo o tempo, como lhe
é legalmente exigido que o faça, face às atribuições consagradas no artigo 9º da
LO 2/2005 – nº 1, alíneas b) e c), (também constantes do artigo 24º, nº 2 e 4 da
Lei 19/2003). Tais atribuições são de execução permanente e as razões que as
fundamentam devem ser, igualmente, de preocupação contínua por parte da ECFP.
Daqui decorre que a relação da ECFP com as candidaturas é possível a partir do
momento que são realizados actos de campanha (nos 6 meses anteriores ao acto
eleitoral), no uso das respectivas funções e em toda a sua extensão.
A não ser assim, como pretende a candidatura em questão ao limitar a actuação da
ECFP apenas à instrução dos processos respeitantes às contas, as atribuições
consagradas nos artigos 9º da LO 2/2005 e 24º da Lei 19/2003 seriam letra morta,
tendo como resultado a não assunção por parte da ECFP das suas
responsabilidades.
Importa, ainda, afirmar que é inerente ao pedido de informações/esclarecimentos
a fixação de prazo para responder ao solicitado e que, na falta de disposição
especial, o mesmo é determinado pela autoridade que intervém no processo, em
função do grau de necessidade das informações indispensáveis ao bom andamento do
processo. Por sua vez, no caso concreto, a natureza imperativa é conferida pelo
comando legal que institui um dever de colaboração e pela existência de
cominação legal.
Resta mencionar que as candidaturas têm conhecimento das regras legais que regem
o financiamento das campanhas, nomeadamente o dever geral de colaboração a que
estão obrigadas para com a ECFP, imposto pelo artigo 15º da LO 2/2005.
Portanto, qualquer solicitação oriunda da ECFP em matéria de contas das
campanhas é feita ao abrigo do referido comando legal. A invocação de razões que
se prendam com o desconhecimento da lei ou com uma divergente interpretação que
se faça de uma norma jurídica não é suficiente para fundamentar a actuação dos
sujeitos. É sabido por todos que a ignorância ou má interpretação da lei não
justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela
estabelecidas - Princípio geral estabelecido no artigo 6º do Código Civil.
Pelo exposto, não procedem as considerações da candidatura em causa quando
invoca a ilegitimidade e extemporaneidade da actuação da ECFP no presente caso.
Deste modo, verifica-se que o mandatário financeiro da Candidatura de Jerónimo
de Sousa negou colaboração e esclarecimentos à ECFP, estando preenchidos os
requisitos legais determinantes da violação previstos nas normas dos artigo 15º
e 47º da LO 2/2005, de 10 de Janeiro.
Entende-se que o arguido, ao actuar do modo descrito, agiu com dolo, pelo que a
sua conduta é culposa, típica e ilícita, por se inserir no tipo legal previsto
no artigo 15º da LO 2/2005 e punível com coima nos termos do artigo 47º do mesmo
diploma.
A punição concreta deverá ser determinada em função da gravidade da
contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente, e do benefício
económico que este retirou da prática da contra-ordenação, como dita o artigo
18º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO - DL 433/82, 27 de
Outubro).
Porém, não obstante resultar de todo o expendido que o comportamento do arguido
é censurável e violador da ordem jurídica, entende-se que, atenta a diminuta
gravidade da infracção e ainda a circunstância de estarmos perante uma nova
legislação do financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, as
finalidades da norma punitiva podem ser asseguradas por via da aplicação de uma
admoestação, pelo que se entende utilizar a faculdade prevista no artigo 51º do
Regime Geral das Contra Ordenações (DL 433/82, 27 Outubro).
CONCLUSÃO
Julga-se o Mandatário Financeiro da Candidatura de Jerónimo de Sousa, Alexandre
Miguel Pereira Araújo, autor da contra-ordenação prevista e punida no artigo 47º
da Lei Orgânica 2/2005, de 10 de Janeiro.
Julgada verificada a infracção e ponderados os factores que devem ser atendidos,
afigura-se possível o restabelecimento da paz jurídica necessária proferindo-se
para o efeito uma admoestação, que se fará nos termos seguintes:
“Adverte-se o Mandatário Financeiro da Candidatura de Jerónimo de Sousa que
observe o estrito cumprimento do preceituado no artigo 15º da Lei Orgânica
2/2005, de 10 de Janeiro, em toda a sua extensão e alcance jurídico.”
Esta decisão torna-se definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada
nos termos do artigo 59º do Decreto Lei 433/82, de 27 de Outubro, com as
alterações introduzidas pelo Decreto Lei 244/95, de 14 de Setembro e pela Lei
109/2001, de 24 de Dezembro, e do artigo 46º, n.º 3 da Lei Orgânica 2/2005 de 10
de Janeiro.”
5. Cumpre começar por decidir a questão da legitimidade do
recorrente, o que pressupõe as seguintes determinações intermédias:
- quem é o arguido no processo de contra-ordenação, ou melhor,
quem é o destinatário da decisão impugnada;
- quem deve considerar-se ter a qualidade de recorrente;
- não havendo coincidência, se terceiros podem impugnar a
decisão em causa.
É impugnada uma decisão da ECFP, que foi proferida em processo
de contra-ordenação, ao abrigo da competência sancionatória prevista no n.º 2 do
artigo 46.º da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro. Não sofre dúvidas que
o destinatário dessa decisão é Alexandre Miguel Pereira Araújo, a título
individual.
Com efeito, dúvidas que existissem em fase anterior do procedimento
administrativo, designadamente face ao auto de notícia, quanto a saber quem era
o arguido no processo contra-ordenacional, não são legítimas perante o texto da
decisão, sendo perfeitamente harmónicos o seu teor literal, o seu tipo legal e
os termos em que foi comunicada. Basta ver que na parte conclusiva do acto
recorrido se julga aquele cidadão autor da contra-ordenação prevista e punida no
artigo 47.º da referida Lei Orgânica e que é a ele que, por essa autoria, se
aplica a admoestação. É, portanto, a ele que se censura o incumprimento do dever
de colaboração que se entende consubstanciar ilícito de mera ordenação social e
é na sua esfera jurídica que directa e imediatamente se produzem os efeitos dos
poderes sancionatórios que a Entidade das Contas e Financiamentos Políticos, no
caso, entendeu exercer.
Ora, o presente recurso não pode considerar-se interposto pelo arguido e
destinatário da decisão, ou seja, pelo sujeito passivo da relação punitiva
concretamente estabelecida.
Na verdade, no requerimento inicial do presente recurso de impugnação
identifica-se o recorrente nos seguintes termos:
“A Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da República, notificada da
decisão da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos de admoestar o
Mandatário Financeiro Nacional da Campanha Eleitoral de Jerónimo de Sousa a
Presidente da República, proferida no processo de contra‑ordenação à margem
referenciado, não se conformando com a mesma, vem interpor o presente recurso
(…).”
E o desenvolvimento do texto está de acordo com essa
identificação contida no intróito da peça definidora dos elementos (objectivos e
subjectivos) da instância, mencionando-se várias vezes “a Recorrente” (cfr. n.º
1, n.º 3 e n.º4, da petição de recurso).
Qualquer possibilidade de abertura a interpretação diversa da
petição ficou arredada com a resposta da recorrente ao convite do relator a
pronunciar-se sobre esta questão prévia, uma vez que nessa intervenção
processual se assume que a qualidade de recorrente cabe à “Candidatura”. O que
se defende é que o recurso interessa tanto à “Candidatura” que o encabeça, como
ao “Mandatário” que o subscreve, porque o que está em causa é saber “se é
correcta a interpretação que a ECFP faz do artigo 15° da Lei 2/2005, de 10 de
Janeiro que esteve na origem do processo de contra-ordenação instaurado à
Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da República e que culminou com a
aplicação de uma admoestação por incumprimento do referido artigo 15°” ou, dito
de outro modo, “se a Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da República
violou a Lei e é legal a instauração do processo de contra-ordenação”.
Sucede que, como estabelece o n.º 2 do artigo 59.º do Regime
Geral das Contra‑Ordenações, só o arguido (por si, ou pelo seu defensor) tem
legitimidade para impugnar a decisão final da autoridade administrativa em
processo de contra-ordenação.
Efectivamente, em princípio, só a esfera jurídica do arguido é susceptível de
ser desfavoravelmente afectada pela decisão sancionatória. Admite-se que a
terceiros possa ser reconhecida, nos termos gerais, legitimidade para impugnar
as decisões das autoridades admini
strativas proferidas em processo de contra-ordenação. Mas para tanto é
necessário que, por existir regime jurídico especial quanto à responsabilidade
ou produção de efeitos da decisão, ou pelo concreto conteúdo do acto decisório
impugnado, este contenha ou incorpore um segmento que, de modo directo e
imediato, afecte a esfera jurídica do (terceiro) recorrente (v.gr., apreensão ou
perda de objectos).
Ora, nada disto acontece com a decisão impugnada, que se limita
a verificar que Alexandre Miguel Pereira Araújo, na qualidade de mandatário da
candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente da República, omitiu o cumprimento
de deveres de colaboração, tal como a ECFP entende que sobre ele impendiam, e a
extrair as consequências que julgou adequadas no domínio do ilícito de mera
ordenação social de que o considerou autor. Que essa decisão se tenha quedado
pela admoestação, em vez de lhe aplicar uma sanção pecuniária (uma coima) é
irrelevante para a questão da verificação do pressuposto processual que agora
examinamos. No capítulo da produção de efeitos jurídicos próprios do acto
impugnado – e só esse é aqui relevante, independentemente do interesse de que a
solução da questão que está na génese do litígio, a definição do âmbito
objectivo ou do conteúdo do dever de colaboração estabelecido pelo artigo 15.º
da Lei Orgânica n.º 2/2005, pudesse revestir-se para outros fins ou para outras
entidades – nada do que se decidiu extravasa a esfera jurídica individual do
referido mandatário financeiro. Só ele teria legitimidade para a respectiva
impugnação (suposta a recorribilidade do acto, aspecto que não é necessário
examinar, face à solução dada à questão da legitimidade).
6. Fica, assim, prejudicada a possibilidade de o Tribunal
apreciar se houve violação do dever de colaboração estabelecido pelo artigo 15.º
da Lei Orgânica n.º 2/2005 e de se pronunciar sobre as questões que desse juízo
são instrumentais, designadamente sobre a regularidade do concreto procedimento
da ECFP que desencadeou a aplicação da sanção.
7. Decisão
Pelo exposto, julgando procedente a excepção da ilegitimidade
da recorrente, rejeita-se o recurso.
Lisboa, 5 de Julho de 2006
Vítor Gomes
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Paulo Mota Pinto
Bravo Serra
Benjamim Rodrigues
Gil Galvão
Maria João Antunes
Mário José de Araújo Torres
(vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por entender que: (i) a
Candidatura de Jerónimo de Sousa tinha legitimidade para impugnar a decisão da
Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP); (ii) mesmo que se
entendesse que a legitimidade recaía no respectivo Mandatário Financeiro, o
facto de ser justamente este o subscritor da impugnação era suficiente para que
o Tribunal Constitucional conhecesse do respectivo mérito; e que (iii)
conhecendo do mérito da impugnação, é patente a sua procedência, com a revogação
da decisão questionada.
1. No processo de candidatura de Jerónimo
Carvalho de Sousa às eleições para Presidente da República realizadas em 22 de
Janeiro de 2006, apresentado e arquivado neste Tribunal, consta a designação de
Alexandre Miguel Pereira Araújo como Mandatário Financeiro Nacional (documento
n.º 8) e Mário de Oliveira Nogueira como Mandatário Nacional (documento n.º 9).
Apesar de a ECFP ter tido acesso a esse
processo, constata‑se que o ofício n.º ECFP‑526/05, de 6 de Dezembro de 2005, em
que era solicitado que a indicação especificada do “número e localização bem
precisa de cada estrutura com cartaz” fosse remetida à ECFP “imperativamente até
ao dia 15 de Dezembro p. f.”, foi pessoalmente endereçado a Mário de Oliveira
Nogueira, erradamente qualificado como “Mandatário Financeiro da Candidatura do
Sr. Jerónimo de Sousa” (cf. fls. 2 e 3 destes autos).
Na sequência de pedido de esclarecimento
formulado pelo Mandatário Financeiro, a ECFP instaura, sem mais, processo de
contra‑ordenação, do qual sempre consta como “Infractor” a “Candidatura de
Jerónimo de Sousa”: cf. “auto de notícia” de fls. 6 e “decisão” de fls. 13‑18.
No “auto de notícia”, após se referir que, em 6
de Dezembro de 2005, a ECFP havia solicitado “ao mandatário financeiro da
Candidatura de Jerónimo de Sousa” a indicação da localização das estruturas que
suportam os cartazes de propaganda (o que, como se assinalou, não corresponde à
realidade, pois essa solicitação foi endereçada à pessoa do Mandatário
Nacional), consigna‑se que “A Candidatura mencionada não satisfez o solicitado
pela Entidade das Contas” (sublinhado acrescentado). Isto é: imputa‑se
directamente à Candidatura, em si mesma considerada, a autoria da infracção.
Na sequência da notificação deste auto de
notícia, a resposta foi apresentada pela Candidatura de Jerónimo de Sousa a
Presidente da República (fls. 8‑11), sem qualquer objecção por parte da ECFP,
que, ao longo da sua decisão (fls. 13‑18), sempre imputou a “falta de
colaboração” à Candidatura, concluindo que “[p]elo exposto, não procedem as
considerações da candidatura em causa quando invoca a ilegitimidade e
extemporaneidade da actuação da ECFP no presente caso” (sublinhado
acrescentado), embora, no final, a sanção apelidada de “admoestação” seja
direccionada ao respectivo Mandatário Financeiro.
Neste contexto, considero que a Candidatura de
Jerónimo de Sousa tem legitimidade para impugnar a decisão sancionatória em
causa, já que, como se evidenciou, ela sempre foi considerada, pela entidade
sancionadora, ao longo de todo o procedimento contra‑ordenacional, como a
responsável pela pretensa infracção. A tal não obsta a circunstância de a sanção
a final aplicada ter sido direccionada ao Mandatário Financeiro da Candidatura,
uma vez que o titular desse cargo não foi admoestado uti cives, mas como órgão e
representante da Candidatura, repercutindo‑se a reprovação pública inerente a
essa sanção na própria Candidatura, em si mesma considerada (tal como, se acaso
tivesse sido aplicada uma coima, a despesa inerente ao seu pagamento seria
imputada nos custos da Candidatura).
Recorde‑se que, nos termos do artigo 7.º do
Regime Geral das Contra‑Ordenações (Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro –
doravante designado por RGCO), “as coimas podem aplicar‑se tanto às pessoas
singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade
jurídica” (n.º 1) e que “as pessoas colectivas ou equiparadas serão
responsáveis pelas contra‑ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício
das suas funções” (n.º 2). Ora, as “candidaturas” em causa devem ser
qualificadas juridicamente como “comissões especiais”, reguladas nos artigos
199.º a 201.º do Código Civil, e dotadas de personalidade judiciária, nos termos
do artigo 6.º, alínea b), in fine, do Código de Processo Civil (cf. António
Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, Tomo III – Pessoas,
Coimbra, 2004, pp. 735‑737).
2. Mas mesmo que se entendesse – como
considerou o precedente acórdão – que a legitimidade para impugnar a decisão
sancionatória recaía no Mandatário Financeiro da Candidatura, e não nesta, mesmo
assim não se justificava, a meu ver, a rejeição da impugnação, por elementar
respeito da regra da preferência das decisões de mérito sobre as decisões de
forma, inerente à garantia constitucional da tutela jurisdicional efectiva, e
atendendo ao princípio da proporcionalidade dos ónus processuais.
Como salientou Sérvulo Correia (“Errada
identificação do autor do acto recorrido. Efectividade da garantia
constitucional de recurso contencioso”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 54,
III, Dezembro de 1994, republicado em Estudos de Direito Processual
Administrativo, ed. Lex, Lisboa, 2002, pp. 243‑253): “a preservação dos meios de
discussão jurisdicional dos actos de poder (…) encontra‑se estreitamente
relacionada com o modo da tramitação do processo perante o tribunal. E a
efectividade da protecção jurisdicional não é compatível com a imposição de
obstáculos desproporcionados de ordem processual”. No contexto, o exercício do
poder inquisitório por parte do tribunal deve ser orientado para a ultrapassagem
de obstáculos irracionais à realização da justiça material, “contribuindo para
superar as limitações à justiça material que poderiam resultar das falhas de
conhecimento ou de diligência processual das partes”. As considerações tecidas
neste estudo, embora a propósito do erro na identificação do autor do acto
contenciosamente recorrido, podem ser transpostas para o presente caso, em que
supostamente se teria verificado erro na indicação da entidade recorrente (que
no cabeçalho da petição surge como sendo a Candidatura), embora a petição seja
subscrita por quem o Tribunal Constitucional entende que detém legitimidade
activa (o respectivo Mandatário Financeiro). E, assim, com as necessárias
adaptações, também se dirá que a “ideia de que o erro na identificação só
releva na medida em que provoque a impossibilidade de trazer à lide uma das
partes necessárias” corresponde “a uma das mais pujantes linhas de renovação do
processo contencioso administrativo contemporâneo: a da sobreposição do
imperativo da justiça material aos conceitualismos formalistas que
desnecessariamente inibem a reposição da legalidade nas situações concretas. É
o processo que deve servir a justiça material e não o contrário. O valor
segurança põe, é certo, limites à relativização das exigências de carácter
meramente formal ou instrumental. Mas tais limites devem confinar‑se àquelas
situações em que a confiança de outros particulares merece ser tutelada ou em
que, sem a sua observância, fique prejudicado o contributo que os mecanismos
processuais deverão prestar à existência de condições de racionalidade da
decisão jurisdicional. Ora parece que esses limites infranqueáveis apenas
surgem, quando se trata de um erro involuntário na identificação do autor do
acto recorrido, nas hipóteses em que o erro provoca a incerteza absoluta sobre
os sujeitos do litígio.”
No presente caso, segundo o entendimento
maioritário do Tribunal, não haveria dúvida, face aos elementos constantes do
processo e aos termos da impugnação apresentada, que os sujeitos do litígio eram
a ECFP e o Mandatário Financeiro da Candidatura de Jerónimo de Sousa. Foi este
último o subscritor da aludida impugnação, invocando expressamente essa
qualidade, mas o Tribunal acabou por não conhecer da impugnação, por pretensa
ilegitimidade do recorrente, só porque, no cabeçalho da petição impugnatória,
se indicou como recorrente a Candidatura de Jerónimo de Sousa. Mesmo admitindo a
existência de erro nesta indicação – erro, aliás, claramente desculpável, desde
logo por ter sido essa Candidatura quem, ao longo do procedimento
contra‑ordenacional, sempre figurou como infractora –, é óbvio que essa pretensa
falha podia e devia ser superada pelo exercício do poder inquisitório do
Tribunal, considerando suficiente para o prosseguimento da impugnação o facto de
ser o Mandatário Financeiro – tido como dotado de legitimidade activa – o
subscritor da respectiva petição.
Em rigor, não se conheceu do recurso por não
ter sido usada, no cabeçalho da impugnação, a expressão utilizada no seu termo:
Mandatário Financeiro Nacional da Candidatura de Jerónimo de Sousa a Presidente
da República. Não havendo dúvidas sobre a identidade dos sujeitos do litígio e
sobre a vontade do sujeito considerado como titular de legitimidade activa de
impugnar o acto sancionatório e sendo manifesto que o erro eventualmente
cometido, para além de manifestamente desculpável, em nada afectaria a
racionalidade do julgamento da impugnação, a decisão de dela não conhecer
representa, a meu ver, uma violação do dever de privilegiar a emissão de
pronúncia sobre o mérito das pretensões formuladas, que constitui componente
essencial da tutela jurisdicional efectiva constitucionalmente consagrada.
3. Conhecendo do mérito da impugnação, a sua
procedência surge como uma evidência, dada a patente não verificação dos
elementos objectivo e subjectivo da “infracção” sancionada.
Expondo sumariamente os fundamentos deste
entendimento, há que salientar, desde logo, que a ECFP não pode, sob a capa da
solicitação de informações ou de colaboração, prevista no artigo 15.º da Lei
Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Fevereiro, impor às candidaturas obrigações em
desconformidade com o directamente estatuído nessa Lei. Ora, o artigo 16.º
expressamente dispõe que o prazo para o cumprimento do dever de comunicação à
ECFP das “acções de campanha eleitoral que realizem, bem como os meios nelas
utilizados, que envolvam um custo superior a um salário mínimo” (n.º 1, de cujo
teor já resulta que se trata de acções já realizadas) “termina na data de
entrega das contas” (n.º 4). É, assim, destituída de base legal a determinação
da ECFP que impunha a comunicação do número e localização das estruturas com
cartazes de propaganda até 15 de Dezembro de 2005. Sendo ilegal (“sem lei, para
além da lei e contra a lei”) tal determinação, nunca o seu eventual desrespeito
seria susceptível de integrar a prática de qualquer ilícito.
Depois, falta de todo o elemento subjectivo da
infracção. Perante uma intimação de cuja conformidade legal suspeitava, a
Candidatura em causa solicitou a prestação de esclarecimentos. A ECFP, sem
prestar esses esclarecimentos, instaurou de imediato procedimento
contra‑ordenacional, por entender que essa solicitação de esclarecimentos
“consubstanciava uma discordância com a actuação da Entidade e não o intitulado
pedido de aclaração”. A este propósito, é descabida a invocação, pela ECFP, da
jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a respeito dos pedidos de
aclaração de decisões judiciais: nem a ECFP é um órgão jurisdicional que profira
decisões judiciais (mas antes um órgão, de natureza administrativa, ancilar do
Tribunal Constitucional), nem a Candidatura em causa apresentou qualquer pedido
de aclaração de decisão judicial ao abrigo 669.º, n.º 1, alínea a), do Código de
Processo Civil, mas antes solicitou a prestação de informações e esclarecimentos
que o órgão administrativo em causa tinha a obrigação legal de fornecer (artigo
7.º, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo). Surge, assim,
como inteiramente indemonstrada a existência de dolo por parte do pretenso
infractor.
Refira‑se, por último, que, embora apelidada de
“admoestação” (que “consiste numa solene censura … feita ao agente” – artigo
60.º, n.º 4, do Código Penal, aplicável por força do artigo 32.º do RGCO), a
sanção efectivamente aplicada (“Adverte‑se o Mandatário Financeiro da
Candidatura de Jerónimo de Sousa que observe o estrito cumprimento do
preceituado no artigo 15.º da Lei Orgânica n.º 2/2005, de 10 de Janeiro, em
toda a sua extensão e alcance jurídico”) representa antes uma intimação ou
injunção, medidas estas não previstas na lei.
Eis, em suma, as razões pelas quais votei no
sentido do conhecimento do mérito da impugnação e da sua procedência, com
revogação da decisão impugnada.
Mário José de Araújo Torres