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Processo n.º 154/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária:
“1. No processo comum singular n.º 34/99.6TBBGAO do Tribunal Judicial da Comarca
de Baião, em que é arguido A. e assistente B., por sentença de 07-03-2002 (cfr.
fls. 299 a 317), no que agora interessa, foi decidido:
- condenar o arguido como autor material de um crime de ofensas à integridade
física p.p. pelo artigo 143 nº 1 do Código Penal, na pena de 2 meses de prisão,
substituídos 60 dias de multa e de um crime de sequestro p.p. pelo artigo 158 nº
1 do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão substituída por 120 dias de
multa, e em cúmulo jurídico, na pena de 5 meses de prisão, substituída por 150
dias de multa, à taxa diária de Esc. 1 200$00, perfazendo Esc. 180 000$00 ou em
Euros 897.8.
- absolvê-lo do crime de violação p.p. pelo artigo 164 nº 1 do Código Penal;
A assistente interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da Relação do
Porto, sustentando, além do mais, que se justificava a aplicação ao arguido de
uma pena de prisão efectiva.
Por acórdão de 30 de Março de 2005, o Tribunal da Relação do Porto negou
provimento ao recurso. Relativamente à questão da escolha e medida da pena,
ponderou-se nesse acórdão o seguinte:
“No que se refere à última questão, torna-se, de imediato, forçoso salientar que
os assistentes têm a posição processual de colaboradores do Mº Pº, a cuja
actividade subordinam a sua intervenção no processo, salvas as excepções da lei
(Art.º 69°, n.º 1 do C.P.Penal).
Porém, nos termos da alínea c) do n.º 2 do supra aludido normativo, é-lhes
reconhecido o direito de recorrer das decisões que os afectem, mesmo que o Mº Pº
o não tenha feito.
Em consequência, estabelece-se, assim, no Art.º 401°, n.º 1, alínea b) do
sobredito diploma de direito adjectivo penal, a legitimidade do assistente para
recorrer de decisões contra ele proferidas.
Não pode, ainda, deixar de se sustentar que decisão proferida contra o
assistente é a decisão proferida contra a posição que ele tenha sustentado no
processo (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III,
Edição de 1994, Pág. 315).
Contudo, para além da legitimidade para recorrer é necessário que se afirme o
interesse em agir (cfr. Art.º 401°, n.º 2, do supra aludido Código). Ora, de
acordo com a jurisprudência fixada pelo Assento n.º 8/99 do S.T.J de 30-10-1997,
o assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Mº Pº,
relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um
concreto e próprio interesse em agir. E tal asserção decorre do entendimento de
que a legitimidade do assistente para recorrer, quer da espécie, quer da medida
da pena, não pode ser a firmada ou negada de forma genérica e abstracta, antes
depende da existência, in casu, de um concreto e próprio interesse em agir.
No que para esta última parte releva, alega a assistente que tem um interesse
directo, imediato e pessoal na matéria em causa por estar em jogo a sua honra,
dignidade e a sua vida psíquica, afectiva e a sua integridade física, tal a
brutalidade da agressão, não podendo ficar à mercê do Mº Pº que nada lhe
acautelou.
Respigando os autos, sobressai que, embora o Mº Pº tivesse determinado o
arquivamento dos autos relativamente ao denunciado crime de violação, deduziu,
no entanto, o mesmo acusação contra o arguido pela prática, em autoria material
e concurso real, de um crime de ofensa à integridade física e de um crime de
sequestro (cfr. fls. 202 a 209), pelos quais veio, aliás, este a ser condenado.
Notificada do predito arquivamento, não veio a assistente, nos termos do Art.º
287°, n.º 1, alínea b) do C.P.Penal, requerer a abertura de instrução, conforme
podia ter feito.
Verifica-se, também, que a assistente, para além de não ter acompanhado a
acusação pública, nem sequer deduziu qualquer pedido cível.
Já no decurso da audiência de julgamento, entendeu o Tribunal a quo que se podia
verificar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, a qual se
manifestava susceptível de ter, como consequência, a imputação ao arguido também
de um crime de violação.
Como não houve oposição por parte de qualquer dos intervenientes processuais,
continuou o julgamento pelos novos factos, tal como já se deixou exarado supra.
Perante o teor da sentença ora em causa, apresenta a assistente como ultima
ratio do recurso que deduziu a pretendida condenação do arguido também pela
prática do supra referido crime de violação.
No entanto, afigura-se-nos ser despicienda, no que a tal concerne, a
argumentação por ela apresentada, conforme deixámos já expresso quando se
procedeu à análise das anteriores questões.
Pelo que, não subsistindo a possibilidade de condenação do arguido pela prática
de tão hediondo crime (violação), falece, desde logo, o concreto e
próprio interesse da assistente no que se prende com a espécie e medida da pena
que foi escolhida e subsequentemente aplicada àquele em função da respectiva
condenação pelos crimes de ofensa à integridade física e de sequestro.
E este entendimento resulta, prima facie, da necessária interligação que tem de
ser feita, quer com a natureza dos crimes em causa, quer com a posição que a
assistente tomou ao longo do processo, a qual já se deixou devidamente
salientada em momento precedente.
Por outro lado, não se pode deixar de salientar que a intervenção de um
particular em processo penal tem de visar, como desiderato final, a realização
da justiça e nunca a prossecução de um qualquer interesse próprio que se possa
eventualmente configurar como de vindita pessoal ou, represália.
Ainda para mais, nem sequer se consegue vislumbrar que, de toda a actividade do
Mº Pº nestes autos, seja possível deduzir que tal órgão de administração da
justiça nada tenha acautelado no que concerne aos legítimos interesses e
expectativas da assistente.
Perante estas constatações, penas nos resta concluir pela ilegitimidade da
assistente para, nesta parte, interpor recurso, desacompanhada do Mº
Pº, uma vez que é patente a sua falta de interesse em agir.”
2. A assistente interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional,
ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, que foi admitido por despacho que não vincula o Tribunal
Constitucional (n.º 3 do artigo 76.º da LTC).
No requerimento de interposição, sem expressamente identificar a norma cuja
conformidade à Constituição quer ver apreciada, a recorrente afirmou que
“invocou a inconstitucionalidade material do disposto no artigo 401º, n.º 1,
alínea b) e nº 2 do Código de Processo Penal e, implícita e consequentemente, do
Assento n.º 8/99 do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 1997, por
violação do disposto nos artigos 20º, 25º e 32º da Constituição da República
Portuguesa – violação do acesso ao direito, da dignidade humana e das garantias
do processo crime, aplicáveis, de forma abrangente, às próprias vítimas”.
Já neste Tribunal, o relator convidou a recorrente a proceder à indicação
precisa da interpretação ou sentido normativo cuja inconstitucionalidade quer
ver apreciada (n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC). Ao que esta respondeu com um
requerimento em que expõe vicissitudes processuais e que termina com as
seguintes afirmações:
“Assim, a interpretação acolhida pelo acórdão em apreço no sentido do referido
assento colide com os referidos princípios constitucionais, já que os factos em
causa, sua tipificação penal e a circunstância da recorrente ter sido a vítima
justificam uma interpretação mais abrangente, lata e actualista do disposto no
artigo 401º, nº 1, al. b) e nº 2 do Código de Processo Penal, de forma a não
restringir ou impossibilitar a interposição do recurso, sob pena de
inconstitucionalidade;
12º
Ou seja, o facto da vítima e ora recorrente, quando estão em causa crimes do
tipo daqueles pelos quais o arguido veio a ser condenado – de ofensas
voluntárias à integridade física e de sequestro – tem ínsito um interesse em
recorrer, que é pessoal, concreto e inalienável, pelo que a interpretação
acolhida pelos Tribunais comuns das citadas disposições do Código de Processo
Penal de não ter legitimidade para interpor recurso viola os aludidos princípios
constitucionais, devendo, por isso, ser declarada a sua inconstitucionalidade,
face à interpretação que lhe foi feita.”
3. Incumbe ao recorrente proceder, logo no requerimento de interposição de
recurso, à identificação da norma cuja (in)constitucionalidade pretende ver
apreciada pelo Tribunal Constitucional (n.º 1 do artigo 75.-ºA da LTC). E,
quando questione uma certa interpretação normativa, esse ónus de delimitação
objectiva do recurso exige que o interessado enuncie de modo preciso o sentido
que tem por constitucionalmente desconforme, de tal modo que, suposto que a
norma venha a ser julgada inconstitucional com esse sentido, o Tribunal possa
reproduzir essa enunciação no seu julgamento, por forma que o tribunal recorrido
saiba exactamente, ao reformar a decisão em cumprimento do julgado, qual o
sentido da norma que não pode ser utilizado (cf., a título de exemplo de prática
jurisprudencial repetida e constante, acórdão n.º 178/95, publicado no Diário da
República, II Série, de 21 de Junho de 1995).
Recordemos que está em causa a parte do acórdão que não reconheceu legitimidade
à assistente para pedir o agravamento (lato sensu, quanto à espécie ou medida)
da pena pelos quais o arguido foi condenado, desacompanhada do Ministério
Público (mais rigorosamente de recurso do Ministério Público, porque na resposta
ao recurso da assistente o Ministério Público acompanhou-a, neste particular).
Esse entendimento foi fundado na interpretação das disposições da alínea b) do
n.º 1 e do n.º 2 do artigo 401.º do CPP mediada pelo Assento n.º 8/99, de que o
assistente só tem tal legitimidade “quando demonstrar um concreto e próprio
interesse em agir” e resultou, nas palavras do acórdão, ” da necessária
interligação que tem de ser feita, quer com a natureza dos crimes em causa
[ofensas à integridade física e sequestro] quer com a posição que a assistente
tomou ao longo do processo”.
Ora, à recorrente foi dada a oportunidade de suprir a deficiência inicial do
requerimento de interposição. Respondeu ao convite, mas não de modo a que, nas
circunstâncias do caso e mesmo tendo presente que é a definição de uma ideia e
não a perfeição de uma fórmula que se visa obter, possa dar-se tal exigência por
satisfeita.
Com efeito, nessa resposta a recorrente procedeu à descrição ou crítica de
actuações de outros sujeitos processuais que condicionaram a sua intervenção.
Descrição esta que pode revelar as razões da sua discordância com os termos em
que a sua conduta processual é valorada pelo acórdão recorrido – e, portanto,
censurar o juízo sobre a (não) existência de um “concreto e próprio interesse em
agir” –, mas não versa sobre matéria incluída no âmbito da competência do
Tribunal, porque respeita à aplicação do direito ordinário. E as transcritas
afirmações finais, onde se resumem as razões da sua discordância, ainda que
delas se faça uma leitura que privilegie os termos que favorecem o seu
aproveitamento enquanto propósito de referenciação de um sentido normativo à
Constituição sobre aqueles que mais se identificam com a crítica à própria
decisão, não permitem retirar, de modo inequívoco, qual seja esse critério
normativo de decisão que se quer ver desaplicado.
Sabe-se, pela exposição, que esse sentido não é simplesmente aquele que nos
referidos preceitos foi projectado pelo citado acórdão de fixação e
jurisprudência (Se o fosse, haveria de ponderar-se a possibilidade de proferir
decisão sumária de improcedência, no seguimento do acórdão n.º 205/2001,
publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Junho de 2001). Mas para
determinar qual o sentido específico a confrontar com a Constituição – arredada,
obviamente, a censura ao acórdão enquanto simples aplicação daquele primeiro
sentido – teria o Tribunal de substituir-se à recorrente na definição dele.
4. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não tomar
conhecimento do objecto do recurso e condenar a recorrente nas custas, fixando a
taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta, sem prejuízo do benefício de
apoio judiciário.”
2. A recorrente reclamou desta decisão para a conferência, nos termos do n.º 3
do artigo 78.º-A da LTC, sustentando o seguinte:
“Ora, e salvo o devido respeito por tão douta decisão, continua a Recorrente a
entender que a sua posição como vítima directa do arguido lhe confere o
necessário interesse para recorrer e se justifica como assistente que é.
A interpretação resultante do assento n.° 8/99 e das citadas disposições, como
foi acolhida, não acautela os interesses das vítimas de forma manifesta.
E a entender-se assim, como foi nas instâncias, serão tais normas, também face à
interpretação do referido Assento - artigo 401°, n° 1, alínea b) e n° 2 do
Código de Processo Penal - materialmente inconstitucionais por violação do
disposto nos citados artigos 20°, 25° e 32° da Constituição da República
Portuguesa.
Pelo exposto, atentas as razões invocadas e as citadas disposições legais, e com
o douto suprimento do Tribunal, admitindo-se o recurso, com as legais
consequências, far-se-á Justiça.”
O Ministério Público respondeu que a reclamação é
manifestamente improcedente porque “a argumentação da reclamante em nada abala
os fundamentos da decisão reclamada, no que concerne à incapacidade da
recorrente em cumprir o ónus de delinear uma questão de inconstitucionalidade
normativa, susceptível de integrar o objecto idóneo do recurso interposto”.
3. A reclamação da recorrente não abala os fundamentos da
decisão sumária, designadamente no que concerne ao incumprimento do ónus de
enunciação da norma proposta ao juízo de fiscalização concreta de
constitucionalidade.
Com efeito, há que ter presente, como a decisão sumária
salienta, que o entendimento do Tribunal da Relação, para denegar legitimidade à
assistente para pedir o agravamento da pena, se fundou na interpretação das
disposições da alínea b) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 401.º do CPP mediada pelo
Assento n.º 8/99 (publicado no Diário da República, I série, de 10 de Agosto de
1999), de que o assistente só tem tal legitimidade “quando demonstrar um
concreto e próprio interesse em agir” e resultou ” da necessária interligação
que tem de ser feita, quer com a natureza dos crimes em causa […] com a posição
que a assistente tomou ao longo do processo”. Ora, vedada que está ao Tribunal a
revisão do concreto juízo subsuntivo efectuado pelo acórdão recorrido, continua
sem dispor-se de enunciação idónea do objecto do recurso, em termos que permitam
saber se aquilo que a recorrente tem por inconstitucional é, (i) em termos
gerais, a exigência de demonstração de um concreto e próprio interesse em agir,
(ii) a exigência de demonstração de um concreto e próprio interesse em agir
quando estejam em causa crimes ofensas à integridade física e sequestro, (iii)
ou, mais estritamente, o afastamento do interesse em agir por parte de um
sujeito processual que assuma (ou omita ) determinada conduta processual.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar a
recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta, sem prejuízo do regime de apoio judiciário.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Vítor Gomes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício