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Processo n.º 350/06
3ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Vila do Conde foi o ora
reclamante, A., condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal,
na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 5
anos, com a condição de o arguido pagar ao Estado determinada quantia, até ao
final do período de suspensão.
2. Inconformado com esta decisão o arguido recorreu para o Supremo Tribunal de
Justiça tendo, a concluir a alegação que então apresentou e para o que ora
releva, alegado que:
“[…] a interpretação do art.º 14° do RGIT - no sentido de que é possível impor
arguido, como no caso concreto aconteceu, e condicionar a sua liberdade ao
pagamento dos impostos e juros em falta superiores à sua capacidade contributiva
e financeira - é inconstitucional, por constituírem uma forma de adiamento da
pena efectiva de prisão ao cidadão arguido que não possua capacidade económica e
financeira de satisfação dessa condição.
20- Tal condição viola frontalmente o princípio da razoabilidade previsto no
art.º 51° do C.Penal e o disposto no art.º 27°, n° 1 da C. Rep. Portuguesa, por
prática discriminatória dos cidadãos em razão da sua condição económica - nesse
sentido também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, mais concretamente ao
art.° 1° do 4° Protocolo Adicional […]”.
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 14 de Março de 2006, negou
provimento ao recurso, afirmando, nomeadamente:
“[...] De resto, como este Supremo Tribunal já decidiu, nomeadamente no acórdão
de 12 de Dezembro de 2002, com o mesmo relator e 1.º Adjunto, proferido no
recurso n.º 4218/02-5, «Não é desconforme à Constituição o condicionamento da
pena suspensa, nomeadamente ao pagamento da indemnização devida ao lesado ou do
imposto em dívida ao Estado, no caso das infracções tributárias.»
E o Tribunal Constitucional tem decidido no mesmo sentido:
Conhecem-se, pelo menos, três decisões daquele Tribunal a não julgar
inconstitucional esta norma, na interpretação já referida.
Trata-se dos Acórdãos de 21/05/2003, proc. 647/02, de 07/07/2003, proc. n.°
282/03 e de 15/07/2003, proc. 3/2003, todos consultáveis em texto integral em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos. Em suma: não se mostra violada
nenhuma das normas invocadas pelo recorrente, pelo que recurso improcede
manifestamente”.
4. Desta decisão foi interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70º da
LTC, recurso para este Tribunal, através de um requerimento que tem o seguinte
teor:
“[...], notificado do Acórdão desse Tribunal de 14 de Março de 2006 e não se
conformando com o mesmo, vem dele interpor Recurso para o Tribunal
Constitucional nos termos da alínea b) do art. 70º da Lei 28/82 de 15 de
Novembro, pretendendo a declaração de inconstitucionalidade do art.º 14º do
Regime Geral das Infracções Tributárias - Lei 15/2001, de 5 de Junho - quando
interpretado no sentido em que é possível condicionar a liberdade do arguido ao
pagamento dos impostos e juros em falta superiores à sua capacidade contributiva
e financeira apurada nos autos, na medida em que constitui, no caso concreto, o
adiamento da pena efectiva de prisão, por incompatibilidade com o preceituado
nos art.ºs 18°, nº 2, 25°, 27°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa”
5. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao
abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro,
na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária negando provimento ao recurso. É o seguinte, na parte agora relevante, o
seu teor:
“O Tribunal Constitucional teve já, por diversas vezes, oportunidade de se
pronunciar sobre a constitucionalidade do artigo 14º, nº 1, do RGIT, na parte em
que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo
arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais. Fê-lo,
designadamente, nos acórdãos nºs 256/03, 335/03 e 500/05 (todos disponíveis na
página Internet do Tribunal em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acórdãos),
sempre tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade.
No primeiro dos arestos citados, para cuja fundamentação, em boa parte, remetem
os demais, ponderou o Tribunal:
“10.4. Comparando o artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA com o (posterior) artigo 14º do
RGIT, verifica-se que ambos condicionam a suspensão da execução da pena de
prisão ao pagamento das quantias em dívida.
Não sendo pagas tais quantias, o primeiro preceito remetia (em parte) para o
regime do Código Penal relativo ao não cumprimento culposo das condições da
suspensão; já o segundo preceito – que englobou tal regime do Código Penal – é
mais dúbio, porque não faz referência à necessidade de culpa do condenado.
De qualquer modo, deve entender-se que a já referida aplicação subsidiária do
Código Penal, prevista no artigo 3º, alínea a), do RGIT (cfr. os artigos 55º e
56º do referido Código), bem como a circunstância de só o incumprimento culposo
conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do
delinquente implicam a conclusão de que o artigo 14º, n.º 2, do RGIT, quando se
refere à falta de pagamento das quantias, tem em vista a falta de pagamento
culposa (refira-se, a propósito, na sequência de Jorge de Figueiredo Dias,
Direito Penal Português / Parte Geral, II – As Consequências Jurídicas do Crime,
Aequitas, 1993, pp. 342-343, que pressuposto material de aplicação da suspensão
da execução da pena de prisão é a existência de um prognóstico favorável a esse
respeito).
[...]
10.7. A questão que ora nos ocupa tem algumas afinidades com uma outra que já
foi discutida no Tribunal Constitucional.
Assim, no acórdão n.º 440/87, de 4 de Novembro (publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 10º volume, 1987, p. 521), o Tribunal Constitucional
não julgou inconstitucional a norma do artigo 49º, n.º 1, alínea a), do Código
Penal de 1982 (versão originária), na parte em que ela permite que a suspensão
da execução da pena seja subordinada à obrigação de o réu “pagar dentro de certo
prazo a indemnização devida ao lesado”. Nesse acórdão, depois de se ter
salientado que se deve considerar como princípio consagrado na Constituição a
proibição da chamada “prisão por dívidas”, entendeu-se, para o que aqui releva,
o seguinte:
“(...)nos termos do artigo 50º, alínea d), do actual Código Penal, o tribunal
pode revogar a suspensão da pena, «se durante o período da suspensão o condenado
deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres impostos na sentença», v.g.,
o de «pagar dentro de certo prazo a indemnização devida ao lesado» [artigo 49º,
n.º 1, alínea a), primeira parte]. Nunca, porém, se poderá falar numa prisão em
resultado do não pagamento de uma dívida: – a causa primeira da prisão é a
prática de um «facto punível» (artigo 48º do Código). Como se escreveu no
acórdão recorrido, «o que é vedado é a privação da liberdade pela única razão do
não cumprimento de uma obrigação contratual, o que é coisa diferente».
Aliás, a revogação da suspensão da pena é apenas uma das faculdades concedidas
ao tribunal pelo citado artigo 50º para o caso de, durante o período da
suspensão, o condenado deixar de cumprir, com culpa, qualquer dos deveres
impostos na sentença: – na verdade, «conforme os casos», pode o tribunal, em vez
de revogar a suspensão, «fazer-lhe [ao réu] uma solene advertência [alínea a)],
exigir-lhe garantias do cumprimento dos deveres impostos» [alínea b)] ou
«prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas
não por menos de um ano» [alínea c)].”
Por outro lado, no acórdão n.º 596/99, de 2 de Novembro (publicado no Diário da
República, II Série, n.º 44, de 22 de Fevereiro de 2000, p. 3600), o Tribunal
Constitucional não considerou inconstitucional, designadamente por violação do
artigo 27º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 51º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal, na parte em que permite ao juiz condicionar a
suspensão da execução da pena de prisão à efectiva reparação dos danos causados
ao ofendido. Foram os seguintes os fundamentos dessa decisão:
“(...) 8. A alegada inconstitucionalidade do artigo 51º, nº 1, alínea a) do
Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
Dispõe o artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal que «a suspensão da
execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres
impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente pagar
dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a
indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução
idónea».
Trata-se mais uma vez, no entender do recorrente, da previsão de uma situação de
«prisão por dívidas», proibida pela Constituição.
Desde logo deve notar-se que tem inteira razão o Ministério Público quando
refere que, a proceder, a argumentação do recorrente acabaria por redundar em
seu próprio prejuízo, «na medida em que a considerar-se inconstitucional a norma
ora objecto de recurso, estaria afastada a possibilidade de suspensão da
execução da pena – que só se justifica pela ‘condição’ estabelecida naquele
preceito – restando-lhe o inexorável cumprimento da pena de prisão que a decisão
recorrida, em primeira linha, lhe impôs...».
É, no entanto, manifestamente improcedente a alegação de que a norma que se
extrai do artigo 51º, nº 1, alínea a) do Código Penal, traduz uma violação do
princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de
não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e
à segurança (artigo 27º, n.º 1 da Constituição).
Na realidade, e mais uma vez, não se trata aqui da impossibilidade de
cumprimento como única razão da privação da liberdade, mas antes da consideração
de que, em certos casos, a suspensão da execução da pena de prisão só permite
realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se a ela –
suspensão da execução – se associar a reparação dos danos provocados ao lesado,
traduzida no pagamento (ou prestação de garantia de pagamento) da indemnização
devida.(...).”
Apesar da afinidade com a questão de que ora cumpre apreciar, nos arestos
citados não estava em causa o problema da conformidade constitucional (à luz dos
princípios da adequação e da proporcionalidade) da imposição de uma obrigação
que, no próprio momento em que é imposta, pode ser de cumprimento impossível
pelo condenado, mas um outro (que Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 353,
aliás, considerou absolutamente infundado), que era o de “saber se o
condicionamento da suspensão pelo pagamento da indemnização não configuraria,
quando aquele pagamento não viesse a ser feito, uma (inconstitucional) prisão
por dívidas”.
De qualquer modo, dos arestos citados extrai-se uma ideia importante para a
resolução da presente questão: é ela a de que não faz sentido analisá-la à luz
da proibição da prisão por dívidas. Na verdade, mesmo que se considere – e é
isso que importa determinar – desproporcionada a imposição da totalidade da
quantia em dívida como condição de suspensão da execução da pena, o certo é que
o motivo primário do cumprimento da pena de prisão não radica na falta de
pagamento de tal quantia, mas na prática de um facto punível.
10.8. A questão em análise tem também algumas afinidades com a questão da
conformidade constitucional do estabelecimento dos limites da pena de multa em
função do valor da prestação em falta, analisada pelo Tribunal Constitucional a
propósito dos artigos 24º, n.º 1, e 23º, n.º 4, do RJIFNA (cfr., por exemplo, os
acórdãos n.ºs 548/01, de 7 de Dezembro, e 432/02, de 22 de Outubro,
respectivamente publicados no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de
Julho de 2002, p. 12639, e n.º 302, de 31 de Dezembro de 2002, p. 21183).
Neste último aresto, disse-se nomeadamente o seguinte:
“(...) Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de
liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se
afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado
na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade,
proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o
recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao
crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a
conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais
elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem
jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. (...).”
Desta passagem retira-se uma importante consideração para o problema que nos
ocupa.
É ela a de que, podendo a realização dos fins do Estado – dependente do
cumprimento do dever de pagar impostos – justificar a adopção do critério da
vantagem patrimonial no estabelecimento dos limites da pena de multa, não há
qualquer motivo para censurar, como desproporcionada, a obrigação de pagamento
da quantia em dívida como condição da suspensão da execução da pena. As razões
que, relativamente à generalidade dos crimes, subjazem ao regime constante do
artigo 51º, n.º 2, do Código Penal [...] não têm necessariamente de assumir
preponderância nos crimes tributários: no caso destes crimes, a eficácia do
sistema fiscal pode perfeitamente justificar regime diverso, que exclua a
relevância das condições pessoais do condenado no momento da imposição da
obrigação de pagamento e atenda unicamente ao montante da quantia em dívida.
[...]
10.9. As normas em apreço não se afiguram, portanto, desproporcionadas, quando
apenas encaradas na perspectiva da automática correspondência entre o montante
da quantia em dívida e o montante a pagar como condição de suspensão da execução
da pena, atendendo à justificável primazia que, no caso dos crimes fiscais,
assume o interesse em arrecadar impostos.
Cabe, todavia, questionar se não existirá desproporção quando, no momento da
imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito
provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o
fazer.
Esta impossibilidade, que não chegou a ser declarada pelo tribunal recorrido –
pois que este analisou a questão em abstracto, sem averiguar se o ora recorrente
efectivamente estava impossibilitado de cumprir [...] –, não altera, todavia, a
conclusão a que se chegou.
Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a
possibilidade de suspensão da execução da pena.
Dir-se-á que tal exclusão se encontra implícita na lei, atendendo a que não
seria razoável que a lei permitisse ao juiz condicionar a suspensão da execução
da pena de prisão ao cumprimento de um dever que ele próprio sabe ser de
cumprimento impossível.
Todavia, tal objecção não procede, pois que traz implícita a ideia de que o juiz
necessariamente elabora um prognóstico quanto à possibilidade de cumprimento da
obrigação, no momento do decretamento da suspensão da execução da pena. Ora,
nada permite supor a existência de um tal prognóstico: sucede apenas que a lei –
bem ou mal, mas este aspecto é, para a questão de constitucionalidade que nos
ocupa, irrelevante –, verificadas as condições gerais de suspensão da execução
da pena (nas quais não se inclui a possibilidade de cumprimento da obrigação de
pagamento da quantia em dívida), permite o decretamento de tal suspensão. O
juízo do julgador quanto à possibilidade de pagar é, para tal efeito,
indiferente.
Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da
imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode
suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja
possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida.
A imposição de uma obrigação de cumprimento muito difícil ou de aparência
impossível teria assim esta vantagem: a de dispensar a modificação do dever
(cfr. artigo 51º, n.º 3, do Código Penal) no caso de alteração (para melhor) da
situação económica do condenado. E, neste caso, não se vislumbra qualquer razão
para o seu tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos
princípios da proporcionalidade e da adequação.
Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação
não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente
decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, n.º 7, do
RJIFNA, bem como do n.º 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma
possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado (supra,
10.4.).
Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e
proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, n.º 7, do RJIFNA, e no
artigo 14º do RGIT. [...]”.
5. Esta conclusão, e a fundamentação que a sustenta, além de aplicáveis ao caso
que ora nos ocupa, merecem concordância, pelo que, reiterando-a, importa
concluir, uma vez mais, pela não inconstitucionalidade do artigo 14º do RGIT.”
6. Inconformado com esta decisão, o requerente reclama para a conferência,
“pretendendo, a final, nos termos do n.° 5 do art.º 78°-A da LTC, o
prosseguimento do processo e a sua notificação para apresentar alegações”.
Invoca, no essencial, que “não pretendeu fundamentar o seu recurso, como resulta
do, respectivo requerimento, [no] instituto [da prisão por dívidas], nem
questionou a “subordinação da suspensão da pena de prisão à reposição das
contribuições devidas ao Estado”, questões sobre as quais a decisão sumária se
teria pronunciado; [...] que “pretende a obtenção de declaração de
inconstitucionalidade do art° 14° do RGIT, quando interpretado no sentido já
supra referenciado, por incompatibilidade com os princípios constitucionais da
adequação e da proporcionalidade” e que “ao arguido não foi dada a hipótese de
explanar a sua tese, em sede de alegações, não sendo cumprido o Princípio do
Contraditório”; e, finalmente, que “na Decisão Sumária [se afirma] que nos
crimes fiscais, não deve existir qualquer limitação de proporcionalidade ou
adequação, uma vez quê se deve atender apenas ao montante em dívida, atenta
«...a eficácia do sistema fiscal» (?!). Não é referenciada qualquer decisão
desse Tribunal que tenha decidido em tal inesperado sentido.”
7. Notificado para responder, disse o Ministério Público reclamado:
“1. A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2. Na verdade, a questão de constitucionalidade normativa, suscitada pelo
recorrente, já foi apreciada e dirimida em vários arestos, pelo Tribunal
Constitucional, não invocando, aliás, o reclamante qualquer razão válida para
questionar, de modo inovatório, o juízo de conformidade à Constituição emitido.”
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. Na decisão sumária reclamada foi decidido, por remissão para a anterior
jurisprudência do Tribunal, designadamente para a firmada nos acórdãos nºs
256/2003, 335/2003 e 500/2005, não considerar inconstitucional o artigo 14º, nº
1, do RGIT, na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão
ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos legais,
negando provimento ao recurso interposto.
Com a presente reclamação o reclamante pretende “o prosseguimento do processo e
a sua notificação para apresentar alegações”. Não tem, porém, como se verá já de
seguida, qualquer razão.
O reclamante invoca, em primeiro lugar, que na fundamentação da decisão
reclamada o Tribunal se pronunciou sobre questões que não havia colocado. Tendo
efectivamente a decisão ora reclamada remetido para a jurisprudência anterior do
Tribunal, é verdade que aqui se confronta a norma em causa com outros princípios
ou normas constitucionais. Não se vê, porém, em que é que tal possa aproveitar à
reclamação que agora vem interposta, uma vez que, como o Tribunal tem
reiteradamente afirmado, estando embora vinculado à apreciação da
constitucionalidade da norma cuja apreciação é solicitada pelo recorrente, o
Tribunal pode apreciar a compatibilidade dessa norma com outros preceitos ou
princípios constitucionais além dos indicados pelo recorrente.
Em segundo lugar, admitindo que “na última parte do recurso [quererá referir-se
à decisão] o Sr. Conselheiro Relator aborda, em concreto, a questão focada pelo
recorrente para sustentar a desconformidade do Acórdão do STJ com a Lei
Fundamental”, alega, porém, que “ao arguido não foi dada a hipótese de explanar
a sua tese, em sede de alegações, não sendo cumprido o Princípio do
Contraditório”. Ora, sendo simples a questão de constitucionalidade a decidir,
designadamente, como era o caso, por já ter a mesma sido objecto de várias
decisões anteriores do Tribunal, sempre no sentido da não inconstitucionalidade
da norma em causa, pode a mesma, desde logo e por remissão para essa
jurisprudência, ser dirimida através de decisão sumária do Relator, exercendo-se
o contraditório precisamente através do exercício do direito a dela reclamar
para a conferência, nada havendo de constitucionalmente censurável neste
procedimento (cfr., por exemplo, Acórdão n.º 104/2005, disponível na página
Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Sendo ainda certo que nada de inovatório apresenta o reclamante para infirmar o
juízo de não desconformidade com a Constituição que tem sido sistematicamente
emitido quanto à norma questionada.
Finalmente, afirma o reclamante que na decisão sumária reclamada se concluiu que
“nos crimes fiscais, não deve existir qualquer limitação de proporcionalidade ou
adequação, uma vez que se deve atender apenas ao montante em dívida, atenta
«...a eficácia do sistema fiscal.». Não é referenciada qualquer decisão desse
Tribunal que tenha decidido em tal inesperado sentido”. Trata-se,
manifestamente, de uma leitura errada do conteúdo da decisão reclamada. Com
efeito, dela não consta nenhuma afirmação com esse sentido, mas, diversamente,
por transcrição do Acórdão n.º 256/2003, a afirmação de que “mesmo parecendo
impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a
suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna
do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da
quantia em dívida […], e, neste caso, não se vislumbra qualquer razão para o seu
tratamento de favor, nem à luz do princípio da culpa, nem à luz dos princípios
da proporcionalidade e da adequação”.
Nestas circunstâncias, há que concluir pela manifesta improcedência da presente
reclamação, com a consequente confirmação do juízo sobre a questão de
constitucionalidade que se formulou na decisão sumária reclamada.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada que negou provimento ao recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 11 de Maio de 2006
Gil Galvão
Bravo Serra
Artur Maurício