Imprimir acórdão
Processo n.º 999/05
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam no Tribunal Constitucional
1. O Banco A., SA, melhor identificado nos autos, foi acusado pelo
Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca de Montijo, no processo de
transgressão n.º 1911/05. 2TBMTJ, da prática de infracções previstas e punidas
nas Bases LII, LIII, e no n.º 1 da Base LVI, das Bases da Concessão aprovadas
pelo Decreto-Lei n.º 168/94 de 15 de Junho, e artigos 57º, 58º e 61º do Segundo
Contrato de Concessão aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
121-A/94 – transposição das barreiras de portagem da Ponte Vasco da Gama, nas
vias reservadas ao pagamento pelo sistema da via verde, não tendo efectuado o
pagamento das respectivas taxas de portagem.
Porém, por sentença de 21 de Junho de 2005, aquele Tribunal rejeitou a acusação
com fundamento em inconstitucionalidade orgânica da norma incriminadora,
constante no n.º 1 da Base LVI das Bases da Concessão aprovada pelo Decreto-Lei
n.º 168/94 de 15 de Junho, ordenando, em consequência, o arquivamento do
processo.
Face a tal decisão, o representante do Ministério Público no Tribunal Judicial
da Comarca de Montijo recorreu, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º
da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), para o Tribunal Constitucional. O
recurso foi admitido.
Sustenta, em suma, o Ministério Público, em alegações produzidas neste Tribunal,
o seguinte:
A decisão recorrida fundamenta a recusa de aplicação em inconstitucionalidade
orgânica, por entender que o Governo carecia de credencial parlamentar para
legislar em matéria contravencional, não o podendo fazer ao abrigo do disposto
no artigo 201°, nº 1, alínea a), da Constituição, conforme é expressamente
invocado no citado Decreto-Lei nº 168/94, correspondente hoje ao artigo 198°, nº
1, alínea a).
Entendeu o Tribunal 'a quo' que se estava na presença de matéria de exclusiva
competência da Assembleia da República, face ao disposto no então artigo 165°,
nº 1, alíneas c) e d), da Constituição que corresponde actualmente ao artigo
168°, n.º 1, alíneas c) e d).
Tal entendimento revela-se, porém, inadequado.
Com efeito, as normas em apreciação não tratam da 'definição dos crimes, penas,
medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo penal' nem
têm por objecto o 'regime geral de punição das infracções disciplinares, bem
como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo'.
Por outro lado, as normas em apreciação nem sequer são inovadoras, podendo-se
recolher exemplos de normas semelhantes, designadamente, na Base XVIII, nos 7 e
10, anexa e aprovada pelo Decreto-Lei nº 193/92, de 8 de Setembro.
Relativamente a esta norma do n.º 7 da citada Base XVIII que previa a existência
de uma multa contravencional para o não pagamento de taxas de portagem,
pronunciou-se o Acórdão nº 61/99, do Tribunal Constitucional, publicado no
Diário da República, II Série, de 31 de Março de 1999, em moldes que importa
realçar, dado que têm plena aplicação ao caso em apreço. Aí se disse que:
'De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada
(1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão,
por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado
pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, o art. 123° do Código Penal
aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cfr., quanto a este último
aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 188/87 e 308/94,
publicados na 2a Série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto
de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, toma-se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da
«taxa» de portagem devida pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma
ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se
ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito
passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, então
(tal como se disse no referido Acórdão nº 308/94, embora a propósito de outra
norma) há-de concluir-se que 'o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser
o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a
prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar'.
Neste particular, não se pode olvidar que a prática do facto punível pela norma
sub specie representa, sem que grandes dúvidas a esse respeito se possam
levantar, uma infracção no domínio estradal, cumprindo recordar que práticas
semelhantes foram sancionadas anteriormente (…)”
São igualmente válidas as considerações que aí se fazem relativamente à posição
seguida pelo Acórdão deste Tribunal nº 308/94, publicado no Diário da República,
II Série, de 29 de Agosto de 1999, o qual concluiu no caso que apreciou, que não
se estava perante uma infracção com a ressonância ética bastante para poder ser
qualificada como de natureza criminal e também porque não lhe correspondia pena
privativa de liberdade, pelo que o tratamento seria o equivalente às
contra-ordenações, não sendo exigência constitucional a prévia definição do tipo
e de punição concreta em lei parlamentar. Diga-se, também, que a fé em juízo dos
autos de notícia levantados pelos portageiros da entidade concessionária, com
competência para o efeito idêntica à das entidades fiscalizadoras do trânsito,
nenhuma questão levanta em sede de inconstitucionalidade orgânica, sendo certo
que o Tribunal Constitucional por mais de uma vez decidiu que a fé em juízo 'não
acarreta qualquer presunção de culpabilidade, nem envolve, necessariamente,
qualquer manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo' – cfr. Acórdãos
do Tribunal Constitucional nº 87/87 e 118/87, publicados no Diário da República,
II Série, de 16 de Abril de 1987 e 2 de Junho de 1987.
Não merece pois censura constitucional, ter o governo legislado como o fez, em
matéria contravencional, sem prévia autorização parlamentar.
3. Conclusão
Nestes termos e face ao exposto, conclui-se:
I – As normas dos nº 1 e 4 da Base LVI, anexa ao Decreto-Lei nº 168/94, de 15 de
Junho, reportando-se à punição com multa contravencional dos comportamentos
integradores do não pagamento ou pagamento viciado de portagem e à competência
dos portageiros para levantamento de autos de notícia, devem ter um tratamento
correspondente ao que é conferido às contra-ordenações, relativamente as quais a
Constituição não exige a prévia definição do tipo e de punição concreta em lei
parlamentar, que igualmente se não impõe na equiparação a funcionários públicos
das autoridades com poderes de disciplina de tráfego, afectos à entidade
concessionária.
2 - Tais normas, que não introduzem, aliás, qualquer inovação na ordem jurídica,
não padecem do vício de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que o Governo
não carecia de credencial parlamentar para as produzir sob a forma de
Decreto-Lei.
3 - Termos em que deverá o presente recurso proceder.
2. Cumpre decidir.
A decisão recorrida apresenta a seguinte fundamentação.
Questão Prévia.
O arguido encontra-se acusado de não ter procedido ao pagamento de taxas de
portagem nas vias reservadas ao pagamento pelo sistema Via Verde.
Tal contravenção encontra-se prevista e punida na Base LII, LIII, no n.º 1 da
Base LVI, das Bases de Concessão aprovadas pelo Dec. Lei n.º 168/94 de 15 de
Junho e art. 57°, 58° e 61° do Segundo Contrato de Concessão aprovado pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º121-A/94.
O n.º 1 da Base LVI das Bases de Concessão aprovadas pelo Dec. Lei n.º 168/94 de
15 de Junho prevê a aplicação de uma pena de multa de montante mínimo igual a 20
vezes o valor de portagem fixado para os veículos de classe 1 e máximo igual a
20 vezes o valor de portagem fixado para os veículos de classe 4, para a falta
de pagamento de qualquer taxa de portagem.
Esta norma inserta num diploma elaborado pelo Governo ao abrigo do disposto no
art. 201°, n.º 1, a) da Constituição da República Portuguesa.
Ou seja, no exercício das funções legislativas que lhe permite fazer
Decretos-Lei em matérias não reservadas à Assembleia da República.
De facto, o escopo fundamental do Dec.-Lei n.º 168/94 de 15 de Junho é o da
concessão da concepção, do projecto, da construção, do financiamento, da
exploração e da manutenção da nova travessia rio Tejo em Lisboa.
Por esse motivo, não terá sido solicitada qualquer autorização à Assembleia da
República.
No entanto, o diploma supra referido tem inserta uma norma que estipula
expressamente a aplicação de uma pena de multa.
Constitui por esse motivo uma tipificação ao nível do direito criminal ou de
mero de contra-ordenação social.
Ora, a possibilidade de legislar sobre estas matérias está vedada ao Governo,
pois face ao estipulado nas alíneas c) e d) do n.º 1 do art. 168°: 'é da
exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre a definição dos
crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como
processo criminal e sobre o regime geral da punição das infracções
disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do
respectivo processo. '
Ou seja, o Governo legislou sobre a aplicação de uma multa, matéria e reserva
relativa de competência da Assembleia da República sem ter tido autorização
prévia para o efeito.
Mais, a norma atribui competência aos portageiros para levantarem autos de
notícia, equiparando-os a funcionários públicos também se encontra inserta na
Base LVI, n.º 4 das Bases Concessão aprovadas pelo Dec. Lei 168/94 de 15/6.
Esta norma não podia ter sido elaborada pelo Governo pois também se encontra no
âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia República.
Note-se que tais autos fazem fé em juízo.
A necessidade de a Assembleia da República autorizar o Governo a legislar sobre
tais matérias já foi até reconhecida pelo legislador quando através da Lei n.º
20/90 de 3 de Agosto foi concedida autorização ao Governo para legislar sobre o
processamento e julgamento de contravenções e transgressões.
Foi com base nessa Lei que o Governo, posteriormente elaborou o Dec. Lei n.º
17/91 de 10 de Janeiro no qual se estabeleceram as normas para o processamento
das contravenções e transgressões.
Resulta expressamente da mencionada Lei de Autorização legislativa que a
autorização em causa é dada ao abrigo do art. 168°, n.º 1, c) e d) da CRP.
Ou seja, o legislador não tem qualquer dúvida que a matéria das contravenções
constitui matéria da competência relativa da AR.
Segundo Gomes Canotilho (in Constituição Anotada) o art. 168° da CRP “ao referir
o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a referência à figura das
contravenções (que era tradicional no direito português até ao Código Penal de
1982) a Constituição deixa entender claramente que ela desapareceu como tipo
sancionatório autónomo, pela que as contravenções que subsistirem ou que forem
de novo criadas têm de ser tratadas de acordo com a natureza que no caso tiverem
(criminal ou de mera ordenação social).”
Do supra referido resulta que a norma referida na acusação que imputa que ao
arguido a prática da contravenção em causa padece do vício da
inconstitucionalidade orgânica.
Cabe a este Tribunal efectuar um controlo difuso e concreto da
constitucionalidade, podendo e devendo o juiz recusar a aplicação de uma norma
inconstitucional.
Esse princípio resulta claramente do disposto no art. 204° da nossa Lei
Fundamental que dispõe: “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os
Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os
princípios nela consignados.”
'O dever judicial de não aplicar normas inconstitucionais estende-se a todos os
casos em que os Tribunais são chamados a aplicar normas infraconstitucionais,
portanto independentemente de qualquer feito submetido a julgamento e mesmo
quando desempenham funções não jurisdicionais, como consequência directa do
princípio da subordinação à lei, o que começa por ser submissão à Lei
Fundamental (op. cit., pg. 797).
DECISÃO;
Face ao exposto e por considerar organicamente inconstitucional a norma prevista
e punida no n.º 1 da Base LVI das Bases de Concessão aprovadas pelo Dec. Lei n.º
168/94 de 15 de Junho e porque não irei aplicar a mencionada norma, recuso-me a
receber a acusação dirigida contra o arguido Banco A. S.A.
2.1. Importa, para já, delimitar o âmbito do presente recurso, uma vez
que, por força do disposto nos artigos 70º n.º 1 alínea a) e 71º n.º 1 da LTC, o
conhecimento do Tribunal se restringe à questão de constitucionalidade
suscitada. Deve, por isso, entender-se que o objecto do recurso é definido pela
concreta questão de inconstitucionalidade normativa suscitada pelo Ministério
Público no requerimento de interposição.
Tal requerimento é do seguinte teor:
O Ministério Público, notificado da douta sentença proferida nos autos à margem
referenciados a fls. 108 a 112 dos autos, em que foi desaplicada a norma do n.º
1 da Base LVI das Bases de Concessão aprovadas pelo D.L. n.º 168/94, de 15 de
Junho, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do
disposto no art. 168.º, n.º 1, als. c) e d), da Constituição da República
Portuguesa (ainda na redacção da Lei Constitucional n.º 1/92), na medida em que
o Governo legislou sobre a aplicação de uma multa, matéria de reserva relativa
da Assembleia da República (nos termos da norma legal supra mencionada) sem ter
existido lei de autorização legislativa prévia para o efeito, vem, por
imperativo legal, interpor recurso da mesma, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1,
al. a), 72.º, n.ºs 1, al. a) e 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(L.O.T.C.), para o Tribunal Constitucional.
Do teor do requerimento, apura-se, sem margem para dúvida, que o objecto do
recurso interposto para o Tribunal Constitucional consiste na questão relativa à
desaplicação 'da norma do n.º 1 da Base LVI das Bases de Concessão aprovadas
pelo D.L. n.º 168/94, de 15 de Junho, com fundamento em inconstitucionalidade
orgânica'.
O preceito tem a seguinte redacção:
Base LVI
Não pagamento de portagens
1 - O não pagamento ou o pagamento viciado de portagens, qualquer que seja o
meio de pagamento utilizado, é punido com multa, cujo montante mínimo será igual
a 20 vezes o valor de portagem fixado para os veículos de classe 1 e o máximo
igual a 20 vezes o valor de portagem fixado para os veículos de classe 4.
2 - A detecção das infracções previstas no n.º 1 pode ser efectuada através de
equipamentos técnicos que registem o veículo com o qual a infracção foi
praticada.
3 - Os aparelhos a utilizar para o fim mencionado no número anterior devem ser
previamente aprovados pela Direcção-Geral de Viação, nos termos e para os
efeitos do n.º 5 do artigo 64.º do Código da Estrada.
4 - Para além das autoridades com poderes de disciplina de tráfego, o pessoal
afecto à concessão é, equiparado, para todos os efeitos legais, a funcionário
público, tendo competência para o levantamento de autos de notícia sobre as
transgressões à cobrança de portagens ou às demais normas aplicáveis ao trânsito
nas travessias e seus acessos.
5 - A importância das multas cobradas por falta de pagamento das portagens ou
por transgressão às regras de trânsito nas travessias e seus acessos reverte em
60% para o concedente e em 40% para a concessionária, devendo esta depositar
mensalmente o montante que reverte para o concedente nos cofres do Tesouro
Público por meio de guia de depósito.
6 - As sanções pelo não pagamento ou pagamento viciado de portagens são
aplicadas aos utentes prevaricadores nos termos do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10
de Janeiro.
O requerimento de interposição definiu o objecto inicial do recurso restrito à
norma constante do n.º 1 deste preceito, assim delimitando a questão à norma que
prevê e pune a infracção.
Situa-se, portanto, fora do âmbito do recurso a matéria relacionada com a norma
constante do n.º 4 do mesmo preceito, razão pela qual o Tribunal não poderá
conhecer dessa questão, que surge inovadoramente tratada na alegação do
recorrente.
2.2. Importa, enfim, saber se a norma do n.º 1 da Base LVI das bases da
concessão da concepção, do projecto, da construção, do financiamento, da
exploração e da manutenção da nova travessia sobre o rio Tejo em Lisboa,
aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 168/94, de 15 de Junho, que prevê a aplicação de
uma pena de multa de montante mínimo igual a 20 vezes o valor de portagem fixado
para os veículos de classe 1 e máximo igual a 20 vezes o valor de portagem
fixado para os veículos de classe 4, para a falta de pagamento de qualquer taxa
de portagem, é organicamente inconstitucional por violar o disposto no artigo
168º, n.º 1, alíneas c) e d) da Constituição (actual artigo 165º).
A questão não é nova. Recentemente, nas Decisões Sumárias n.ºs 101/06 e 147/06,
o Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade
da referida norma, fundamentando-se, aliás, em doutrina anteriormente já
adoptada pelo Tribunal.
Pode ler-se na Decisão Sumária n.º 101/06:
«A norma desaplicada prevê um comportamento consubstanciado na prática de um
facto punível apenas com uma sanção pecuniária. Para além disso, o n.º 6 da Base
LVI em causa estabelece que «as sanções pelo não pagamento ou pagamento viciado
de portagens são aplicadas aos utentes prevaricadores nos termos do Decreto-Lei
n.º 17/91, de 10 de Janeiro», diploma que regula o processamento e julgamento
das contravenções e transgressões.
Assim, e não obstante a remissão para o Decreto-Lei n.º 17/91, não se pode
deixar de concluir que o tratamento que deve ser conferido à norma desaplicada
há-de ser o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição
não exige a prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar.
Uma tal conclusão alcança-se sem dificuldade através da comparação com o caso
sobre que incidiu o Acórdão n.º 61/99, deste Tribunal, publicado no Diário da
República, II Série, de 31 de Março de 1999, em que se decidiu não ser
inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, n.º 1, alínea d)
(actual artigo 165º), da Constituição, a norma do n.º 7 da Base XVIII anexa ao
Decreto-Lei n.º 315/91, de 20 de Agosto, na redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 193/92, de 8 de Setembro, nos termos da qual «a falta de
pagamento de qualquer taxa de portagem devidamente aprovada é punida com multa,
nunca inferior a 5000$, cujo montante mínimo será igual a 10 vezes o valor da
respectiva taxa de portagem e o máximo o quíntuplo do mínimo».
Afirmou-se no mencionado cordão n.º 61/99, com interesse para o caso que nos
ocupa, o seguinte:
«3.1. Efectivamente, haverá, em primeira linha, que acentuar que,
independentemente da questão de saber se, após a revisão constitucional operada
pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de Setembro, é possível a criação, ex
novo, de contravenções, o certo é que a norma em apreço veio instituir (e para
se utilizarem algumas das palavras do artigo 3º do Código Penal de 1886) a
previsão de um comportamento consubstanciado na prática de um ‘facto voluntário’
‘punível’ (in casu tão só com uma pena pecuniária) e que ‘consiste unicamente na
violação ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e
regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica’ (cf., sobre o
conceito de contravenção, Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pp. 218 a 221 e
Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal, edição da A.A.F.D.L., I, 168).
De outro lado, atento o momento temporal em que a norma em apreço foi editada
(1992), a sanção pecuniária nela prevista não podia ser convertível em prisão,
por se ter de haver por revogado, pela entrada em vigor do Código Penal aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, o artigo 123º do Código Penal,
aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (cf., quanto a este último
aspecto, por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 188/87 e 308/94,
publicados na 2ª série do Diário da República de, respectivamente, 5 de Agosto
de 1987 e 29 de Agosto de 1994).
Ora, torna-se inquestionável que o comportamento em causa (o não pagamento da
‘taxa’ de portagem devida pela utilização das auto-estradas) não pode ter uma
ressonância ética tal que o haja de o qualificar como um crime; e, se se
ponderar que esse comportamento foi, já em 1992, tido como integrando um ilícito
passível de ser publicamente sancionado com uma pena meramente pecuniária, então
(tal como se disse no referido Acórdão n.º 308/94, embora a propósito de outra
norma) há-de concluir-se que ‘o tratamento que lhe deve ser conferido há-de ser
o correspondente às contra-ordenações, para as quais a Constituição não exige a
prévia definição do tipo e da punição concreta em lei parlamentar’.
Neste particular, não se pode olvidar que a prática do facto punível pela norma
sub specie representa, sem que grandes dúvidas a esse respeito se possam
levantar, uma infracção no domínio estradal, cumprindo recordar que práticas
semelhantes foram sancionadas anteriormente, verbi gratia pelos Decretos-Leis
números 43.705, de 22 de Maio de 1961 (punição, com pena pecuniária, pelo não
pagamento da taxa de portagem pela utilização do lanço de auto-estrada
Lisboa/Vila Franca de Xira – cfr. artº 6º), e 47.107, de 19 de Julho de 1966
[punição, com pena pecuniária, pelo não pagamento da taxa de portagem pela
utilização da Ponte sobre o Tejo – hoje denominada Ponte 25 de Abril – cfr. artº
3º, § 4 –, e a que, por intermédio do Decreto-Lei n.º 199/95, de 31 de Julho,
veio a ser dada a natureza de contra-ordenação – cfr. artº 1º, alínea c)].».
De resto, a conclusão segundo a qual a norma desaplicada deve ser tratada como
consubstanciando um ilícito de mera ordenação social decorre também da própria
sentença recorrida, quando nela se afirma que «segundo Gomes Canotilho [in
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, p. 673] o
art. 168º da CRP ‘ao referir o ilícito de mera ordenação social, omitindo toda a
referência à figura das contravenções (que era tradicional no direito português
até ao Código Penal de 1982), a Constituição deixa entender claramente que ela
desapareceu como tipo sancionatório autónomo, pelo que as contravenções que
subsistirem ou que forem de novo criadas têm de ser tratadas de acordo com a
natureza que no caso tiverem (criminal ou de mera ordenação social) ‘».
Não podem, pois, restar dúvidas que a norma desaplicada nos autos, dando origem
a uma sanção meramente pecuniária, deverá ser tratada como um ilícito de mera
ordenação social.
Assim sendo, não pode duvidar-se também que, conforme vem sendo uniformemente
entendido por este Tribunal, – integra-se na competência legislativa concorrente
da Assembleia da República e do Governo a criação ex novo de contra-ordenações
ou a conversão em contra-ordenações de anteriores contravenções puníveis com
pena não restritiva de liberdade e, bem assim, a fixação da respectiva punição
(cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 110/95, in Diário da República, II Série, de
21 de Abril de 1995, e jurisprudência aí citada).
Quanto a este último ponto, porém, tem-se entendido que, sob pena de
inconstitucionalidade, o Governo não pode ultrapassar o regime geral de punição
fixado no Decreto-Lei n.º 433/82, o que significa que não pode fixar à coima um
limite mínimo inferior nem um limite máximo superior aos fixados no artigo 17º
daquela lei-quadro.
Pode, no entanto, fixar às coimas limites mínimos superiores ou limites máximos
inferiores aos fixados pelo mencionado artigo 17º (cfr., neste sentido, para
além do citado Acórdão n.º 110/95, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 305/89,
428/89, 324/90, 435/91, 447/91 e 314/92, publicados no Diário da República, II
Série, de 12 de Junho e 15 de Setembro de 1989, 19 de Março de 1991, 24 de Abril
de 1992, I Série de 11 de Janeiro de 1992 e 2ª série de 1 de Março de 1993,
respectivamente, bem como os Acórdãos n.ºs 355/92, 385/93 e 424/93, ainda
inéditos).
Ora, muito embora, a questão não haja sido abordada na decisão recorrida, não
restam dúvidas que tais limites não foram ultrapassados, atentos os montantes
referidos a fls. 10 dos autos.»
A Decisão Sumária n.º 147/06 reiterou a mesma doutrina.
Em suma, pelos fundamentos constantes do citado Acórdão n.º 61/99 e das
referidas Decisões Sumárias, conclui-se que a norma do n.º 1 da Base LVI das
Bases de Concessão aprovadas pelo DL 168/94, de 15 de Junho, não é, ao contrário
do que julgou o Tribunal do Montijo, organicamente inconstitucional.
3. Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e revogar
a decisão recorrida que deverá ser reformada de acordo com o julgamento de não
inconstitucionalidade que ora se formula.
Lisboa, 11 de Julho de 2006
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
Maria João Antunes, Declaração de voto
Votei o juízo de não inconstitucionalidade orgânica da norma do nº 1 da Base LVI
das Bases de Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei nº 168/94, de 15 de Junho, por
entender que apenas o regime geral das contravenções integra a reserva relativa
de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165º, nº 1,
alíneas c) e d), da Constituição da República Portuguesa). Independentemente da
natureza pecuniária da sanção imposta pela norma desaplicada nos presentes
autos, que qualifico como sanção penal.
Artur Maurício