Imprimir acórdão
Processo n.º 445/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do
Tribunal Constitucional,
1. A. vem “requerer a aclaração” da decisão
sumária do relator, de 22 de Maio de 2006, que decidiu, no uso da faculdade
conferida pelo n.º 1 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento
e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), não conhecer do objecto do recurso. No entanto, esse pretenso pedido de
esclarecimento configura verdadeira reclamação para a conferência, nos termos do
n.º 3 do mesmo preceito, e como tal deve ser tratada (neste sentido, cf., por
último, os Acórdãos n.ºs 282/2006 e 283/2006).
1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte
teor:
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional contra o
acórdão da Tribunal da Relação de Lisboa, de 6 de Abril de 2006, que negou
provimento a recurso por ela interposto contra o acórdão do Tribunal Colectivo
da 3.ª Vara Criminal de Lisboa, de 15 de Julho de 2004, que a condenara, pela
prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º,
n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), com referência ao artigo 202.º, alínea b),
todos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.
O requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional é do seguinte teor:
«– O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram
introduzidas pela Lei n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7
de Setembro, pela Lei n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro – Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional.
– Pretende‑se ver apreciada a constitucionalidade das normas
dos artigos 127.º, 340.º, 369.º, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, alínea c), 410.º,
n.º 2, alíneas a), b) e c), 412.º, n.º 3, ex vi artigo 430.º, n.º 1, todos do
Código de Processo Penal, com a interpretação com que foram aplicadas na
decisão recorrida do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que violam
directa e explicitamente o disposto nos artigos 32.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n.º 1, e
13.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, e como se retira ex abundanti das alegações de
recurso e, maxime, conclusões de págs. 41 a 47, a decisão recorrida violou as
mais elementares regras de ónus da prova. De facto, esta é, notoriamente,
insuficiente, aleatória, contraditória, não isenta, incerta e até improvável.
Mais,
– Partiu de um pressuposto e preconceito errado, admitindo como
“ponto de partida” indemonstrado que a arguida exercia “práticas de
adivinhação”, sem sequer definir, concretamente tais “práticas”, como se prova,
até à exaustão, nas múltiplas transcrições, mormente a fls. 1, 2, 3 e 4 do seu
recurso.
Aliás, conforme se extrai das alegações de recurso, a fls. 6,
“(...) a convicção do tribunal, nesta situação, tenha de ser essencialmente
assente em elementos racionais e objectivável, a fim de afastar toda e qualquer
dúvida razoável, sob pena de se estar a entrar no campo de pura subjectividade,
onde os bons fundamentos da decisão dificilmente conseguem encontrar eco no seio
da comunidade...”.
– Nenhuma prova minimamente consistente e credível –
testemunhal ou documental – quer no tangente à actividade de “práticas de
adivinhação” da arguida, quer das alegadas “entregas” de dinheiro pelas
assistentes, foi efectivamente produzida se se pretender ver com “olhos de ver”
a referida (não) prova produzida e as declarações das testemunhas arroladas.
A decisão recorrida baseou‑se em pressupostos indemonstrados e
até indemonstráveis (“práticas de adivinhação”, “fragilidade psíquica de ordem
emotiva das assistentes”, “pormenores relacionados com o falecimento do pai da
assistente B.”) (vide conclusão 5.ª do recurso). Donde se conclui que toda esta
matéria, devidamente sindicada no recurso, devia ter‑se dado como não provada.
In casu, com a sua interpretação foi postergado e violado o
princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, que proíbe o arbítrio,
a distinção irrazoável entre arguido e assistentes sem qualquer fundamento
material, atenta a particular especificidade e delicadeza da situação em causa.
O Tribunal utilizou ab initio dois pesos e duas medidas.
– São inúmeras as transcrições feitas no recurso ora recorrido
que, por manifestamente redundantes e economia de esforço, nos permitimos
dispensar de enumerar (vide conclusões 1.ª a 9.ª do recurso).
– Também aqui a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 374.º
(10.ª conclusão do recurso) conduz directa e explicitamente à infracção do
sufragado no n.º 2 do artigo 32.º e n.º 1 do artigo 13.º (princípio da
igualdade), ambos da CRP, mormente no âmbito da protecção deste princípio nas
suas diversas dimensões (proibição de arbítrio, proibição de discriminação,
proibição de diferenciação).
Está‑se aqui perante uma inconstitucionalidade material, por
violação do princípio da igualdade, dada a ausência de fundamento material
suficiente por falta de razoabilidade e consonância com o sistema
constitucional.
Embora o princípio da igualdade não proíba que a lei estabeleça
distinções, não pode deixar em claro a existência de arbítrio (nas decisões) e
discriminação, como no caso sub judice, no tratamento que mereceu pelo Tribunal
a quo a arguida e as assistentes.
– Pretende‑se ver apreciada a norma do n.º 3 do artigo 127.º do
Código de Processo Penal na sua interpretação que, alegadamente, foi caprichosa,
arbitrária e discricionária. De facto, conforme está, até enfastiadamente,
descrito nas alegações de recurso, o julgador, ao apreciar livremente a prova,
ao procurar através dela atingir a verdade material, alegadamente não recorreu
às regras de experiência comum nem utilizou, como método de avaliação na
aquisição do conhecimento, critérios objectivos, genericamente susceptíveis de
motivação e controlo.
Estamos mais uma vez perante uma inconstitucionalidade, por
violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no n.ºs 1 e 2 do artigo
32.º da CRP, uma vez que a norma constante do artigo 127.º do Código de Processo
Penal foi alegadamente interpretada no sentido de admitir que o princípio da
livre apreciação da prova se baseou em pressupostos indemonstrados e
indemonstráveis (pré‑conceitos), não devidamente motivada e fundamentada (13.ª
conclusão do recurso).
– Igualmente, pretende‑se ver apreciada a constitucionalidade
da norma do artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo
Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida do Tribunal
da Relação de Lisboa, por violação directa e explícita das normas
constitucionais, uma vez que foi cerceado, de modo evidente, o direito de defesa
da recorrente.
De facto, também aqui, aquando da impugnação da matéria de
facto, a recorrente indicou e concretizou, exaustiva e abundantemente, os
segmentos da decisão recorrida que não estão de harmonia com o que vem defendido
no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, sendo, grosseiramente, violado o princípio in
dubio pro reo, ínsito no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, sindicado na 18.ª
conclusão do recurso recorrido [sic], uma vez que todos os factos julgados
relevantes para a prova recolhida não puderam ser subtraídos a uma “dúvida
razoável” do tribunal, não podendo portanto serem considerados provados. Aliás,
existia uma vinculação do tribunal à necessidade e dever de reunir todas as
provas, o que não foi realizado. Donde se infere que a falta delas (provas) não
possa de modo algum desfavorecer a posição da arguida e ora recorrente: um non
liquet na questão da prova tem de ser valorado a favor daquela. É com este
sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.
Pretende‑se, ainda, ver apreciada a constitucionalidade das
normas dos artigos 412.º, n.º 3, ex vi artigo 430.º, n.º 1, ambos do Código de
Processo Penal, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida do
Tribunal da Relação, sendo que foram focados no recurso, pormenorizada e
especificadamente, os aspectos da matéria de facto que a recorrente considerou
incorrectamente julgados.
– Idem, no que concerne à constitucionalidade da interpretação
do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) (existência de erro notório na apreciação da
prova), em virtude de os factos enumerados como provados e não provados não
serem uma sequência lógica e natural da prova produzida (Acórdão do STJ, V, 3,
210, de 16 de Outubro de 1997) (conclusão 23.ª das alegações de recurso).
– Igualmente, pretende‑se que seja apreciada a
constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 369.º do Código de Processo
Penal, uma vez que o Tribunal a quo se escusou, no que concerne à medida da
sanção aplicada, a valorar a ausência de antecedentes criminais da recorrente,
com violação directa e notória das garantias de defesa da recorrente ínsitas no
n.º 2 do artigo 32.º da CRP.
– Finalmente seja escrutinada a constitucionalidade das normas
dos artigos 191.º e 193.º do Código de Processo Penal, com a interpretação com
que foi aplicada na decisão do Tribunal da Relação, por violação directa e
explícita das mesmas normas constitucionais, uma vez que não foram correctamente
aplicados os princípios da legalidade e adequação ínsitos naqueles incisos
legais (25.ª conclusão do recurso).
Tais interpretações daquelas normas violam, directa, clara e
explicitamente, os princípios constitucionais consagrados nos n.ºs 5, 1 e 2 do
artigo 32.º da CRP, sendo que aquela questão de constitucionalidade já havia
sido suscitada a fls. 46 e conclusão 18.ª das alegações de recurso endereçadas
ao Tribunal da Relação, mormente quando se referiu: “(...) foi grosseiramente
violado o princípio in dubio por reo ínsito no n.º 2 do artigo 32.º da CRP,
donde se deve retirar um non liquet na questão da prova que foi sempre valorada
pelo tribunal a favor das assistentes”.»
O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do Tribunal
da Relação de Lisboa, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal
Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro –
LTC). E, de facto, entende‑se que o recurso não é admissível, o que possibilita
a prolação de decisão sumária, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade,
a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
Acresce que, quando o recorrente questiona a conformidade
constitucional de uma interpretação normativa, deve identificar essa
interpretação com o mínimo de precisão, não sendo idóneo, para esse efeito, o
uso de fórmulas como «na interpretação dada pela decisão recorrida» ou
similares. Com efeito, constitui orientação pacífica deste Tribunal a de que
(utilizando a formulação do Acórdão n.º 367/94) «ao suscitar‑se a questão de
inconstitucionalidade, pode questionar‑se todo um preceito legal, apenas parte
dele ou tão‑só uma interpretação que do mesmo se faça. (...) [E]sse sentido
(essa dimensão normativa) do preceito há‑de ser enunciado de forma que, no caso
de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua
decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os
operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido
com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, violar a
Constituição.»
3. No presente caso, a recorrente não suscitou, perante o
tribunal recorrido, de forma processualmente adequada, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, jamais tendo identificado, com o mínimo de
precisão, as interpretações normativas que reputava inconstitucionais,
limitando‑se, em rigor, a imputar directamente a violação das normas e
princípios constitucionais à própria decisão judicial, mais precisamente à
decisão de valoração das provas, o que, manifestamente, não constitui objecto
idóneo de recurso de constitucionalidade.
Para comprovar as precedentes considerações, basta reproduzir
as conclusões da motivação do recurso da recorrente para o Tribunal da Relação,
onde, directa ou indirectamente, se faz alusão a normas ou princípios
constitucionais:
«10 – De tudo o que antecede, profusa e abundantemente, fluí
que o douto acórdão recorrido não revelou um procedimento lógico seguido pelo
tribunal na formação da decisão, contrariando e violando o n.º 2 do artigo
374.º do Código de Processo Penal.
11 – A indicação das provas exigidas pela parte final do n.º 2
do artigo 374.º do Código de Processo Penal deve ser compreendida nos seus
antecedentes históricos, o que não foi tido em consideração pelo tribunal a
quo.
12 – Foi também violado o n.º 3 do artigo 365.º do Código de
Processo Penal em virtude de os meios de prova que serviram para formar a
convicção do tribunal terem sido inadequadamente apurados.
13 – A livre convicção do julgador não poderá ser uma
convicção puramente subjectiva. Essa convicção só existirá quando o tribunal
convencer‑se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Essa é
a leitura que deve ter a norma inserta no artigo 127.º do Código de Processo
Penal, que foi, assim, explicitamente desrespeitada pelo tribunal, no caso em
análise, em que os meios de prova produzidas foram, manifestamente,
insuficientes.
14 – Foi infringido o n.º 1 do artigo 128.º do Código de
Processo Penal por ter sido aceite pelo tribunal prova produzida por
testemunhas sem um conhecimento directo dos factos.
15 – O acórdão recorrido é nulo, dado que não teve em conta o
depoimento da única testemunha arrolada pela arguida, violando, assim, o
disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
16 – Foi também infringido o disposto no n.º 1 do artigo 340.º
do Código de Processo Penal por o tribunal não ter procedido ex officio à
peritagem do valor das jóias objecto de apreensão para daí extrapolar o valor
atribuído às mesmas.
17 – Foi violado o n.º 2, alíneas a), b) e c), do artigo 410.º
do Código de Processo Penal.
18 – Foi grosseiramente violado o princípio in dubio pro reo,
ínsito no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, donde se
deve retirar um non liquet na questão da prova que foi sempre valorada pelo
tribunal a favor das assistentes.
19 – Escasseiam elementos que, podendo e devendo ser
apreciados pelo tribunal, se tornavam necessários à descoberta da verdade
material.
20 – Houve contradição insanável da fundamentação por ter
inexistido um raciocínio lógico‑dedutivo na apreciação dos factos que deveria
ter conduzido à absolvição da arguida por falta ou insuficiência de provas.
21 – Perante as inúmeras dúvidas que ao longo da audiência de
discussão e julgamento foram suscitadas pelos depoimentos das testemunhas, o
tribunal optou por decidir contra a arguida, em sentido contrário do que
decidiu o acórdão do STJ, de 7 de Julho de 1999, em clara violação do princípio
in dubio pro reo.
22 – Por conseguinte, pretende‑se que seja feita a renovação de
toda a produção de prova, à excepção dos factos fundamentados nos artigos 18.º,
19.º, 22.º, 34.º, 36.º, 37.º, 38.º, 40.º, 43.º, 44.º e 45.º, nos termos do
disposto no artigo 412.º, n.º 3, ex vi artigo 430.º, n.º 1, ambos do Código de
Processo Penal.
23 – Também existiu erro notório na apreciação da prova,
contrariando o disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), por «quando os
factos enumerados como provados e não provados não sejam uma sequência lógica e
natural da prova produzida (acórdão do STJ, de 16 de Outubro de 1997, Acórdãos
do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, tomo 3, p. 210) [sic].
24 – Foram violados o n.º 4 do artigo 97.º e n.º 2 do artigo
327.º do Código de Processo Penal.
25 – Foram ainda violados os princípios da legalidade e da
adequação e proporcionalidade, ínsitos, respectivamente, nos artigos 191.º e
193.º do Código de Processo Penal.
26 – Não foi devidamente ponderado pelo tribunal a quo o facto
de a arguida não ter, nem antes nem depois do processo sub judice, quaisquer
antecedentes criminais, conforme se retira do seu certificado de registo
criminal junto aos autos.
27 – Por não ter sido obtida prova capaz e suficiente, não
foram preenchidos os elementos típicos do crime de burla qualificado previsto e
punido pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea a), com referência ao
artigo 202.º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
28 – Cessados os pressupostos daquele crime, consequentemente,
deve o pedido de indemnização civil ser considerado improcedente, por não
provado.»
Como é patente, em parte alguma a recorrente imputa a qualquer
norma ou interpretação normativa minimamente identificada a violação de normas e
princípios constitucionais. É à própria actividade judicial de valoração da
prova que é reportada a violação de princípios legais e constitucionais, o que –
repete‑se – não é idóneo a abrir a via ao recurso de constitucionalidade.
4. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do n.º 1 do artigo
78.º‑A da LTC, não conhecer do objecto do presente recurso, por
inadmissibilidade.”
1.2. A reclamação da recorrente apresenta a
seguinte fundamentação:
“– Pese embora se reconheça que tudo quanto se expendeu no
requerimento de interposição de recurso para esse Altíssimo Tribunal seja algo
prolixo e difuso, não entende a ora recorrente que, como se escreve na douta
decisão aclaranda, a actividade judicial de valoração da prova seja, em
absoluto, inidónea para abrir a via ao recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade. Com efeito,
– Parece ser relativamente pacífica a jurisprudência desse
Tribunal que, por norma, se deve entender, entre o mais, «um critério de
decisão» eleito por quem teve de aplicar a lei. Ou seja,
– Norma poderá ser, não só norma material escrita stricto
sensu, mas também um critério de decisão que resulte de normas materiais
escritas ou dos princípios que delas se possam extrair.
– Aliás, não foi por certo, por acaso, que o falecido e saudoso
Mestre Antunes Varela escreveu «A força vinculativa especial de que goza o caso
julgado era manifestamente empolado, e de certo modo desvirtuado, pelo antigos
autores, ao afirmarem que a sentença fazia do branco preto e do quadrado redondo
(facit de albo nigrum aequat quadrata rotundis) ou mudava o falso em verdadeiro
(falsumque mutat in vero)» (in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág.
705, in fine).
– Assim sendo, o que se pretende ver esclarecido é se, in casu,
a valoração da prova escapa imune a qualquer e toda a fiscalização concreta de
constitucionalidade, desde que os restantes pressupostos legais se mostrem
verificados.”
1.3. As recorridas queixosas não responderam,
mas o recorrido Ministério Público apresentou resposta no sentido de que “a
decisão reclamada é perfeitamente clara e insusceptível de gerar dúvida
objectiva nos respectivos destinatários”, “pelo que carece ostensivamente de
fundamento o pedido de «aclaração» deduzido”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A recorrente não impugna, em rigor, o
fundamento da decisão sumária de não conhecimento: não ter suscitado, perante o
tribunal recorrido, a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação
normativa minimamente identificada, imputando a violação de normas de direito
ordinário e de princípios constitucionais directamente à própria actividade
judicial de valoração da prova, em si mesma considerada.
Interroga agora a recorrente se a actividade
judicial de valoração da prova pode ser idónea para abrir a via ao recurso de
fiscalização concreta da constitucionalidade. A resposta é, obviamente,
negativa, atendendo á natureza não normativa dessa “actividade”, em si mesma
considerada, inseparável das específicas particularidades do caso concreto.
Diferente seria a situação se, precedendo essa
actividade decisória, o tribunal formulasse critérios normativos, dotados de
generalidade e abstracção, e se a violação de normas ou princípios
constitucionais fosse imputada a esses critérios. Mas não foi isso o que ocorreu
no presente caso, em que jamais a recorrente identificou, com o mínimo de
densidade, esses hipotéticos critérios, limitando‑se a criticar a concreta
actividade de valoração da prova produzida no caso, o que – repete‑se – não
constitui objecto idóneo de recurso de constitucionalidade.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a
presente reclamação.
Custas pela recorrente, fixando‑se a taxa de
justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 27 de Junho de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos