Imprimir acórdão
Processo n.º 493/06
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
1. O Presidente da Assembleia de Freguesia da Costa da Caparica submeteu ao
Tribunal Constitucional, para efeitos de fiscalização preventiva da
constitucionalidade e da legalidade, ao abrigo do artigo 25.º da Lei Orgânica
n.º 4/2000, de 24 de Agosto (LORL – diploma a que pertencerão os preceitos
legais doravante citados sem outra referência), a deliberação de realização de
um referendo local, tomada na sessão extraordinária dessa assembleia de
freguesia que teve lugar em 17 de Maio de 2006.
O requerimento vem instruído com cópia autenticada dos pedidos de convocação
de uma sessão extraordinária da assembleia de freguesia, do respectivo edital,
do projecto de deliberação e da acta da reunião em que a iniciativa referendária
foi aprovada.
Por despacho do Presidente do Tribunal, o pedido foi liminarmente admitido e
foi ordenada a distribuição do processo (artigos 28.º, n.º 3, e 29.º da LORL).
2. Resulta dos documentos juntos aos autos o seguinte:
a) Por comunicação escrita de 6 de Maio de 2006, três membros da assembleia
de freguesia da Costa da Caparica, eleitos pelo Partido Social Democrata,
solicitaram ao presidente deste órgão a convocação de uma sessão extraordinária
para deliberar sobre a realização de um referendo local “sobre a construção de
um bairro de habitação social na Mata de Santo António, previsto no plano de
pormenor II – Jardim Urbano, do programa Polis”.
b) Para o efeito juntaram o seguinte “projecto de deliberação”:
“A Assembleia de Freguesia da Cidade da Costa da Caparica, reunida em sessão
extraordinária de 17 de Maio de 2006, delibera o seguinte:
Considerando que,
1. A cidade da Costa da Caparica encontra-se a ser alvo do programa de
requalificação urbana e ambiental denominado Polis;
2. Que o programa Polis compreende sete planos de pormenor que incidem sobre
sete áreas distintas de intervenção;
3. Que o plano de pormenor II - Jardim Urbano, tem como objecto de intervenção a
mata de Santo António, em terrenos da propriedade da Junta de Freguesia da Costa
da Caparica, inscrito na matriz predial rústica sobre o art.º 2 da secção A-1,
com a área de 59.969 m2;
4. Que o referido plano de pormenor prevê a construção de três campos de ténis,
dois restaurantes, um parque de merendas, ringue de patinagem, área de
piqueniques e 144 fogos de habitação social;
5. Que para efectuar as obras, a sociedade Costapolis tem que tomar a posse
administrativa dos referidos terrenos, através de expropriação ou de protocolo
de cedência aprovado em sessão de Assembleia de Freguesia;
Propõe-se, nos termos do disposto na Lei Orgânica n.º 4/2000 de 24 de Agosto,
efectuar uma consulta local à população recenseada na cidade da Costa da
Caparica, devendo ser‑lhes efectuadas as seguintes questões:
1. Concorda com a construção de qualquer tipo de habitação, em terrenos da
propriedade da Junta de Freguesia da Costa da Caparica, na mata de Santo
António?
- Sim
- Não
2. Concorda com a construção de três campos de ténis, dois restaurantes, um
parque de merendas, ringue de patinagem e área de piqueniques, na mata de Santo
António, em terrenos da propriedade da Junta de Freguesia da Costa da Caparica;
- Sim
- Não”
c) No dia 8 de Maio de 2006, quatro outros membros da assembleia de
freguesia, eleitos pelo Partido Socialista, formularam idêntico pedido, mas sem
apresentarem projecto de deliberação.
d) O presidente da referida assembleia de freguesia convocou uma sessão
extraordinária desse órgão para o dia 17 de Maio de 2006, com a seguinte agenda:
“(…)
4. Período da Ordem do Dia
4.1. Apreciação e votação da proposta da minuta de protocolo sobre o Jardim
Urbano, a celebrar com a Costapolis e a Câmara Municipal de Almada no âmbito do
Programa POLIS.
4.2. Apreciação e votação da proposta sobre a realização de Referendo Local,
referente à construção de habitação social no Jardim Urbano no âmbito do
Programa POLIS.”
e) Da acta dessa sessão extraordinária da Assembleia de Freguesia da Costa
da Caparica consta, após o relato da discussão sobre o último ponto da ordem do
dia, o seguinte:
“(…)
O Senhor Presidente da Assembleia de Freguesia tomou a palavra dizendo que,
relativamente à primeira questão a colocar no referendo local, havia que decidir
entre a pergunta apresentada pela mesa da assembleia e a apresentada pelo
Partido Socialista.
O Sr. Pacheco Alves usou, de novo, da palavra para esclarecer que a pergunta
apresentada pela bancada socialista acaba por não estar completa porque há
sempre que ligar a questão com a Freguesia e para isso tem sempre que se
especificar que a construção vai ser feita em terrenos propriedade da Junta de
Freguesia, para que a freguesia tenha legitimidade para levar esta questão a
referendo.
O Sr. Presidente da Assembleia de Freguesia procedeu à leitura da redacção final
da primeira questão a ser colocada no referendo à população:
1- Concorda com a construção de qualquer tipo de habitação, em terrenos da
propriedade da Junta de Freguesia da Costa da Caparica, na mata de Santo
António?
- Sim
- Não
Passou-se à sua votação, tendo sido aprovada por maioria com sete votos a favor,
sendo quatro do PS e três do PSD, e seis votos contra, sendo três do PSD e três
da CDU.
Foi, em seguida, lida a redacção final da segunda questão a ser colocada no
referendo à população:
2- Concorda com a construção de três campos de ténis, dois restaurantes, um
parque de merendas, ringue de patinagem e área de piqueniques, na mata de Santo
António, em terrenos da propriedade da Junta de Freguesia da Costa da Caparica?
- Sim
- Não
Passou-se à votação, tendo sido aprovada por maioria com sete votos a favor,
sendo quatro do PS e três do PSD, e seis votos contra, sendo três do PSD e três
da CDU.”
3. Compete ao Tribunal Constitucional, em fiscalização preventiva
obrigatória, verificar a constitucionalidade e a legalidade do referendo,
incluindo a apreciação dos requisitos relativos ao respectivo universo eleitoral
[cfr. artigo 223.º, n.º 1, alínea f), da Constituição, artigos 11.º e 105.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e artigos 25.º e seguintes da LORL].
O requerente tem legitimidade para o pedido de fiscalização preventiva do
referendo local, na qualidade de presidente do órgão da autarquia que deliberou
a sua realização, e o processo mostra-se regularmente instruído (artigos 25.º e
28.º, n.º 1, da LORL).
A deliberação foi tomada em 17 de Maio de 2006 e o requerimento, remetido
sob registo do correio em 25 de Maio de 2006, só deu entrada no Tribunal
Constitucional em 26 de Maio de 2006. Porém, o facto de o pedido não ter sido
recebido no Tribunal dentro do prazo estabelecido pelo artigo 25.º da LORL não
suscita qualquer questão processualmente relevante, uma vez que o n.º 6 do
artigo 28.º da mesma Lei expressamente dispõe que o incumprimento desse prazo
não prejudica a admissibilidade do requerimento.
4. O referendo local pode resultar de iniciativa representativa (artigo
10.º, n.º 1) ou de iniciativa popular (artigo 10.º, n.º 2). No caso presente, a
iniciativa referendária foi protagonizada por membros do órgão com competência
para decidir a realização de referendo de freguesia [artigo 23.º da LORL e
alínea q) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro]. Deve
assinalar-se que, diversamente do que sucedia no anterior regime jurídico do
referendo local [artigo 8.º, alínea b), da Lei n.º 49/90, de 24 de Agosto], a
lei actual não impõe um número mínimo de subscritores quando a iniciativa
referendária seja de membros da respectiva assembleia municipal ou de freguesia.
O pedido de convocação de uma sessão extraordinária para deliberar sobre a
realização do referendo foi dirigido ao presidente do órgão deliberativo por
sete dos treze membros que compõem a assembleia de freguesia. Muito embora esse
pedido tenha sido veiculado em documentos autónomos, um deles subscrito por três
membros eleitos pelo Partido Social Democrata e o outro por quatro membros
eleitos pelo Partido Socialista, o certo é que convergiram no sentido da
realização da sessão extraordinária membros do órgão em número superior ao
necessário para obter a sua convocação (cfr. artigo 14.º da Lei n.º 169/99).
Verifica-se que só o primeiro grupo de requerentes da convocação apresentou o
projecto exigido pelo artigo 11.º da LORL. Porém, esse facto não interfere com a
validade da deliberação, desde logo porque, como se referiu, a lei não exige um
número mínimo de proponentes e a apreciação e votação da assembleia incidiu
sobre um projecto regularmente apresentado, sendo o resultado de tal votação que
agora se sujeita a fiscalização preventiva de constitucionalidade e legalidade.
A deliberação da realização do referendo foi tomada no prazo a que se refere
o n.º 1 e obteve a maioria de votos estabelecida pelo n.º 5 do artigo 24.º da
LORL para que se considere aprovada, tendo-se registado sete votos a favor e
seis votos contra o projecto, sem abstenções. Não se coloca qualquer dúvida
relativa ao quorum de deliberação, uma vez que estiveram presentes e intervieram
na votação os treze membros que compõem a Assembleia de Freguesia da Costa da
Caparica, como se retira do mapa oficial do resultado das eleições para os
órgãos das autarquias locais de 9 de Outubro de 2005, publicado no Diário da
República, I Série-B, de 6 de Fevereiro de 2006, 910-(527).
Pode, portanto, concluir-se pela inexistência de irregularidades formais ou
de procedimento de que cumpra conhecer, passando-se à apreciação dos demais
aspectos que possam contender com a constitucionalidade e legalidade do
referendo em perspectiva.
5. A possibilidade de realização de consultas referendárias a nível local
está prevista no n.º 1 do artigo 240.º da Constituição que dispõe que as
autarquias locais podem submeter a referendo dos respectivos cidadãos eleitores
matérias incluídas nas competências dos seus órgãos, nos casos, nos termos e com
a eficácia que a lei estabelecer.
Atendendo ao objecto do referendo em análise, não são imediatamente
evidentes hipóteses de possível desconformidade material entre qualquer dos
sentidos possíveis do resultado da consulta popular e a Constituição, isto é,
não se antevê que qualquer das duas eventuais respostas que venham a ser dadas
às perguntas formuladas determine a prática de actos ou a adopção de normas
legais desconformes com a Constituição (No sentido de no âmbito do controlo da
constitucionalidade do referendo se inscrever a apreciação da
constitucionalidade material da questão colocada, pronunciou-se o Tribunal no
acórdão n.º 288/98, Diário da República, I Série‑A, de 18 de Abril de 1998).
Pode, assim, passar-se directamente à análise do objecto do referendo no que
respeita à inserção da matéria na competência dos órgãos da autarquia, em que a
verificação do respeito pelo limite constitucional (“… incluídas nas
competências dos seus órgãos”) se desloca para o confronto com o regime jurídico
constante da lei ordinária. É esta, aliás, a prática que o Tribunal tem seguido
na fiscalização preventiva de referendos locais (cfr., por exemplo, acórdãos n.º
518/99, Diário da República, II Série, de 14 de Outubro de 1999, n.º 93/2000,
Diário da República, II Série, de 30 de Março de 2000 e n.ºs 94/2000 e 95/2000,
Diário da República, II Série, de 29 de Março de 2000).
6. Dispondo o n.º 1 do artigo 3.º da LORL que o referendo local só pode ter por
objecto questões de relevante interesse local que devam ser decididas pelos
órgãos autárquicos municipais ou de freguesia e que se integrem nas suas
competências, quer exclusivas quer partilhadas com o Estado ou com as Regiões
Autónomas e elencando o artigo 4.º algumas matérias que expressamente estão
excluídas do âmbito do referendo, a primeira tarefa consiste em saber se a
questão que se pretende colocar ao eleitorado versa sobre matéria relativamente
à qual os órgãos da freguesia disponham de competência legalmente atribuída
(limite positivo) e verificar se ocorre alguma dessas situações de exclusão
expressa (limite negativo).
Como o Tribunal reconheceu logo no acórdão n.º 390/98 (Diário da República, II
Série, de 9 de Novembro de 1998), a revisão constitucional de 1997 eliminou a
exigência que, ao menos para o entendimento dominante, até então a Constituição
fazia (cfr. n.º 3 do anterior artigo 241.º) de que a questão submetida a
referendo deveria respeitar a matéria de “exclusiva” competência dos órgãos
autárquicos. Restava saber, questão que o Tribunal deixou em aberto, se então se
mantinha em vigor o disposto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 49/90, de 24 de
Agosto, na medida em que exigia para as consultas locais incidência sobre
matéria da exclusiva competência dos órgãos autárquicos. Ao incluir, agora, nas
questões passíveis de referendo, tanto as que respeitem a competências
“exclusivas” dos órgãos das autarquias como àquelas que por eles são
“partilhadas” com a Administração central e regional autónoma, o legislador
parece ter consagrado o entendimento de que, desde que se trate de poderes
próprios dos órgãos da autarquia respectiva, esta competência tanto pode
revestir carácter “dispositivo” (lato sensu) como “consultivo” ou de
“participação”, isto é, abrange a situação em que os órgãos autárquicos devam
deliberar ou decidir no uso de competências próprias especificadas pela
Constituição ou pela lei, ainda que integrando-se essa intervenção em processos
deliberativos ou decisórios de órgãos alheios à autarquia a que o referendo
respeita.
7. É patente pelo teor das perguntas propostas e dos considerandos do
projecto de deliberação e é, ainda, indiscutivelmente sufragado pela discussão
estabelecida na sessão da assembleia, que se pretende obter uma decisão do
eleitorado, que seria vinculativa para os órgãos da autarquia (artigo 219.º da
LORL), sobre a ocupação, uso e transformação do solo na área abrangida pelo
Plano de Pormenor do Jardim Urbano da Costa da Caparica (PPJU), ratificado pela
Resolução do Conselho de Ministros n.º 34/2005, publicada no Diário da
República, I Série-B, de 22 de Fevereiro de 2005.
Esta conclusão não é contrariada pelo facto de, nas perguntas a submeter ao
eleitorado, se fazer referência a “terrenos da propriedade da Junta de Freguesia
da Costa da Caparica”. Designadamente, não pode interpretar-se o projecto de
referendo como visando obter pronúncia popular sobre matéria que aos órgãos da
freguesia compita decidir e que radique na mera qualidade de proprietário por
parte da autarquia. Aquela referência foi introduzida, apenas, “para que a
freguesia tenha legitimidade para levar esta questão a referendo”, como revela a
intervenção de um dos proponentes durante a discussão da formulação das
perguntas, relatada na acta da sessão. Mas o que sempre se visou com o exercício
de democracia directa proposto foi obter o veredicto popular sobre o tipo de
ocupação do solo previsto no referido Plano de Pormenor e não sobre a posição a
assumir pela autarquia enquanto proprietária de parte dos terrenos necessários
às intervenções previstas para sua concretização. Além da motivação da proposta
e da discussão que antecedeu a deliberação, esta interpretação do objecto da
consulta popular é corroborada pelo facto de as perguntas referendárias não
conterem qualquer menção a opções que à autarquia coubesse fazer nessa
qualidade, designadamente aos termos da cedência ou de disposição dos terrenos,
e de, na mesma sessão, no ponto anterior da “ordem do dia”, ter sido apreciada e
reprovada a proposta de celebração de um protocolo entre a COSTAPOLIS, a Câmara
Municipal de Almada e a Junta de Freguesia, que seria o que poderia incidir
sobre competências emergentes de tal qualidade.
O PPJU é um plano urbanístico aprovado pela Assembleia Municipal de Almada,
integrando-se a área por ele abrangida na área de intervenção do “Programa Polis
de Almada”, delimitada no Decreto-Lei n.º 119/2000, de 4 de Julho. Este plano de
pormenor veio alterar a classificação e qualificação de espaços previstas para a
área em causa no Plano Director Municipal de Almada – daí a sua sujeição a
ratificação pelo Governo, nos termos previstos na alínea e) do n.º 3 do artigo
80.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro (cfr. RCM n.º 34/2005) –,
passando, designadamente, a prever a construção de uma área de habitação social,
no âmbito do PER (Programa Especial de Realojamento), destinada ao realojamento
de 144 agregados familiares (artigos 12.º e 22.º e segs. do respectivo
Regulamento), bem como a construção de instalações desportivas e equipamentos
recreativos (artigos 37.º e 38.º do Regulamento), a executar pelo sistema de
imposição administrativa, segundo o regime excepcional aplicável às sociedades
gestoras das intervenções previstas no “Programa Polis”, se necessário mediante
expropriação com pagamento da justa indemnização (artigo 43.º do Regulamento e
artigos 6.º a 8.º do Decreto-Lei n.º 314/2000).
Na linha atrás exposta, importa interrogar o regime de competências das
autarquias, seja o quadro geral de competências em matéria de ordenamento do
território e planeamento urbanístico, seja o regime especial do “Programa
Polis”, em ordem a saber se qualquer dos órgãos da freguesia teria poderes
próprios para decidir ou, de modo legalmente predeterminado, intervir no
procedimento decisório em tal domínio.
8. Quanto ao regime geral, a resposta é seguramente negativa, porque aos
órgãos de freguesia não são cometidos poderes próprios de iniciativa, elaboração
ou aprovação em matéria de planeamento urbanístico. Tais poderes competem, ao
nível da administração local, aos órgãos do município [artigo 29.º, alínea a),
da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, e artigos 74.º e 79.º do Decreto-Lei n.º
380/99, de 22 de Setembro].
Com efeito, a política de ordenamento do território e de urbanismo assenta
no sistema de gestão territorial que se organiza em três âmbitos: o âmbito
nacional, o âmbito regional e o âmbito municipal. O âmbito municipal é
concretizado através dos planos intermunicipais de ordenamento do território e
dos planos municipais de ordenamento do território, que compreendem os planos
directores municipais, os planos de urbanização e os planos de pormenor (artigo
2.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro). A lei atribui aos planos
municipais, a todos eles, incluindo aos planos de pormenor, natureza
regulamentar e força vinculativa das entidades públicas e, ainda, directa e
imediatamente, dos particulares (artigos 3.º e 69.º do Decreto‑Lei n.º 380/99).
Os planos de pormenor são instrumentos de planeamento urbanístico que
desenvolvem e concretizam propostas de organização espacial e ocupação do solo
de uma área específica do território municipal, definindo com detalhe a
concepção da forma de ocupação e servindo de base aos projectos de execução das
infra-estruturas, da arquitectura dos edifícios e dos espaços exteriores, de
acordo com as prioridades estabelecidas nos programas de execução constantes do
plano director municipal e do plano de urbanização (artigo 90.º do Decreto-Lei
n.º 380/99). São, naquele elenco, como diz Fernando Alves Correia, Manual de
Direito do Urbanismo, Vol. I, 2ª ed., pag. 305, planos dotados de mais elevado
grau de desenvolvimento analítico, no sentido de que as suas previsões não
encontram ulterior concretização em outras etapas planificatórias. Mas, ainda
que a área de intervenção se localize numa só freguesia, como na maior parte dos
casos sucederá, a competência, seja para a sua elaboração e aprovação, seja para
a sua alteração, revisão e suspensão (artigos 93.º e 94.º do Decreto-Lei n.º
380/99), é sempre dos órgãos municipais e nunca dos órgãos da freguesia.
É certo que, nos termos do n.º 3 do artigo 34.º da Lei n.º 169/99, de 18 de
Setembro, compete à junta de freguesia, no âmbito do ordenamento do território e
urbanismo:
“a) Participar, nos termos a acordar com a câmara municipal, no processo de
elaboração dos planos municipais de ordenamento do território.”
Porém, não pode incluir-se o objecto do presente referendo nesta
competência, que se integra no princípio de cooperação entre os vários sujeitos
de direito público na formação dos planos (cfr. artigo 22.º, n.º 2, do
Decreto-Lei n.º 380/99), porque ela consiste num poder funcional que só pode ser
exercido perante um procedimento de planificação em curso e mediante acordo com
a câmara municipal e não perante um plano já findo e contra as suas prescrições.
Assim, a realização do referendo não pode procurar respaldo nesta previsão
porque faltaria à junta de freguesia competência ratione temporis (cfr., perante
situação com afinidade com a presente, ponto 6 do acórdão n.º 498/94, publicado
no Diário da República, II Série, de 23 de Novembro de 1994, e acórdãos n.ºs
390/98, 113/99 e 518/99, publicados no Diário da República, II Série, de 9 de
Novembro de 1998, 11 de Outubro de 1999 e 14 de Outubro de 1999,
respectivamente).
Acresce que, como se verá já de seguida, os planos de pormenor elaborados ao
abrigo do “Programa Polis” têm um regime especial incompatível com esta forma de
participação, uma vez que a sua condução nem sequer compete à câmara municipal
(n.º 5 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 314/2000).
9. Efectivamente, a inexistência de poderes dos órgãos da freguesia no
domínio do planeamento urbanístico é ainda mais evidente em situações abrangidas
pelos instrumentos jurídicos específicos do “Programa Polis”.
A Lei n.º 18/2000, de 10 de Agosto, autorizou o Governo a criar um regime
especial de reordenamento urbano para as zonas de intervenção no âmbito do
“Programa Polis” aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 26/2000,
de 15 de Maio. No sentido e extensão dessa autorização legislativa, enunciados
no artigo 2.º desta Lei, destacam-se a declaração do relevante interesse público
nacional da realização das intervenções aprovadas ao abrigo do “Programa Polis”
e dos projectos de reordenamento urbano daí resultantes [alínea a)], a
atribuição às sociedades gestoras da competência para elaborar os planos de
urbanização, onde se revelar necessário, e os planos de pormenor para a
respectiva zona de intervenção [alínea c)] e a instituição de um dever de
cooperação, segundo o princípio de reciprocidade, entre todas as entidades,
públicas e privadas, cuja área de actuação esteja directamente relacionada com a
preparação e a realização das intervenções a realizar [alínea h)].
Ao abrigo desta autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 314/2000, de 2 de
Dezembro, estabeleceu um conjunto de medidas excepcionais consideradas
imprescindíveis ao êxito do programa de requalificação urbana, incidindo, ente
outros aspectos, sobre a elaboração dos instrumentos de gestão territorial
(artigo 3.º). Confere-se às sociedades gestoras responsáveis pela execução dos
projectos, que foi o modelo operacional adoptado, aproveitando-se a experiência
da intervenção de excepção com vista à realização da “Expo 98” – no caso a
“COSTAPOLIS, Sociedade para o Desenvolvimento do Programa Polis na Costa da
Caparica, S.A.”, criada pelo Decreto-Lei n.º 229/2001, de 20 de Agosto – poderes
especiais, designadamente os de elaborar os planos de urbanização e os planos de
pormenor que se revelarem necessários para proceder a esse reordenamento urbano
(n.º 5 do artigo 3.º do Decreto Lei 314/2000), embora sujeitos a aprovação pela
assembleia municipal e a ratificação governamental, mas com um procedimento
simplificado.
E, concretizando a autorização legislativa, o Decreto-Lei afirma expressamente o
interesse público nacional do “Programa Polis” e projectos de reordenamento
urbano daí resultantes (artigo 2.º) e institui o dever de cooperação activa e
empenhada na prossecução desse interesse público a cargo de todas as entidades
públicas e privadas cuja área de actuação esteja directamente relacionada com as
intervenções integradas nesse Programa (artigo 10.º).
Em síntese, neste domínio não houve transferência de competências para os órgãos
da freguesia. Pelo contrário, a orientação é de sentido inverso, concentrando-se
poderes, retirando-os aos próprios municípios para os conferir a sociedades de
que o Estado é accionista maioritário (cfr. Joana Mendes, “Programa Polis –
programa ou falta de programa para a requalificação das cidades?”, CEDOUA, Ano
IV, 1.2001, pág. 83 e segs.). A intervenção concorrente e concertada entre o
Estado e as autarquias locais na requalificação urbanística e ambiental dos
espaços urbanos, que traduz a consideração integrada dos interesses de ordem
nacional e local coenvolvidos, é protagonizada, a nível local, pelos órgãos
municipais.
Assim, as perguntas referendárias não versam sobre matéria integrada, a
qualquer título, na competência dos órgãos da freguesia e que respeite a
questões que estes órgãos devam decidir, pelo que a realização do referendo é
ilegal, face ao disposto no n.º 1 do artigo 3.º da LORL.
10. Acresce que o referendo proposto é ainda ilegal por directo confronto do
seu objecto com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º da LORL, que
exclui expressamente do âmbito do referendo as matérias reguladas por acto
legislativo ou por acto regulamentar estadual que vincule as autarquias locais.
Com efeito, o objecto do referendo recai sobre matéria regulada por acto
regulamentar vinculativo da autarquia, que contraria, num dos seus resultados
possíveis.
É certo que, no seu teor literal, aquele preceito refere matérias reguladas por
acto legislativo ou por acto regulamentar estadual e o plano de pormenor não é
uma coisa nem outra: é um regulamento municipal. Mas, pela sua razão de ser e à
semelhança dos limites estabelecidos no artigo 241.º da Constituição quanto ao
poder regulamentar local, o mesmo regime é aplicável à hipótese de o referendo
versar sobre matéria de regulamentos emanados das autarquias de grau superior.
Efectivamente, aquela exclusão visa assegurar o respeito pela legalidade
administrativa e evitar que o referendo possa conduzir os órgãos autárquicos ao
dilema de optar entre o não acatamento do seu resultado ou a emissão de um acto
ilegal (cfr. artigos 219.º a 221.º da LORL). Ora, essa situação tanto surge
perante actos regulamentares estaduais como perante actos regulamentares
regionais ou de autarquias de grau superior, que os órgãos da autarquia em causa
não possam afastar e que devam respeitar nas suas decisões. Têm, por isso, que
ser abrangidas pela norma de exclusão todas as questões que recaiam sob a alçada
do “bloco de legalidade” que os órgãos da autarquia em causa tenham de respeitar
nas suas decisões e que não disponham de poder para alterar, sob pena de
derrogação localizada ou singular de normas de hierarquia superior ou de o
resultado da consulta popular se transformar em simples “voto de protesto”, o
que é contrário ao regime de referendo local instituído.
Assim, os referendos de freguesia também não podem versar sobre matéria
disciplinada por actos regulamentares municipais, pelo que o referendo em causa,
recaindo sobre matéria das prescrições vinculativas de uso do solo constantes do
Plano de Pormenor do Jardim Urbano da Costa da Caparica, é ilegal por violação
do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º da LORL.
11. Tendo-se concluído no sentido de que a deliberação em exame sofre de
vício insanável, uma vez que o objecto do referendo viola o disposto no n.º 1 do
artigo 3.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2000, de
24 de Agosto, o que definitivamente impede a sua realização, torna-se
desnecessário proceder à apreciação das demais questões sobre que competiria ao
Tribunal pronunciar-se.
12. Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela ilegalidade
do referendo local que, na sua sessão extraordinária de 17 de Maio de 2006, a
Assembleia de Freguesia da Costa da Caparica deliberou realizar.
Lisboa, 8 de Junho de 2006
Vítor Gomes
Mário José de Araújo Torres
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Maria Fernanda Palma
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Paulo Mota Pinto
Bravo Serra
Benjamim Rodrigues
Gil Galvão
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos