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Processo n.º 355/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A., recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 e Novembro (LTC), do acórdão
proferido em 30 de Novembro de 2005 na Relação de Coimbra, pretendendo ver
apreciada a inconstitucionalidade 'do artigo 127º do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de que a prova é apreciada segundo a livre convicção da
entidade competente, sem ter em conta que, nos termos do n.º 2 do art. 32º da
Constituição, “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da
sentença de condenação” e o consequente princípio constitucional in dubio pro
reo', sendo que 'a “entidade competente” nela referida é sempre e só o tribunal
de 1ª instância, mesmo quando da decisão deste se interpôs recurso impugnando a
matéria de facto'.
O recurso não lhe foi admitido – decisão sumária de 24 de Abril de 2006 – não só
porque se entendeu que o recorrente nunca suscitara no processo, ao contrário do
que determina o n.º 2 do artigo 72 da LTC, qualquer questão de
inconstitucionalidade, como fundamentalmente porque a Relação de Coimbra não
aplicara na decisão recorrida a norma que o recorrente enunciou, e que pretende
impugnar no presente recurso, alegadamente retirada do artigo 127º do Código de
Processo Penal.
2. Contra essa decisão reclama o recorrente dizendo, em suma:
[...] O recorrente não pode concordar com essa decisão sumária, pelas razões que
passa a expor.
IV - Diz-se na douta decisão sumária que o recorrente não suscitou no processo
qualquer questão de inconstitucionalidade. O recorrente, salvo o devido
respeito, não concorda, pois alegou na sua conclusão 13ª que o Tribunal de 1ª
instância “ignorou o artigo 32 da Constituição ao não ter em conta que o arguido
se presume inocente até prova do contrário e o princípio in dubio pro reo”.
Ora, ignorar, isto é, não aplicar uma imposição de uma norma constitucional é
sem dúvida “uma questão de inconstitucionalidade”.
V - Por outro lado, no seu requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional o recorrente invocou a inconstitucionalidade da norma do
artigo 127 do C.P.P., interpretada - como a interpretou a Relação de Coimbra -
no sentido de que a “entidade competente” nela referida é sempre e só o Tribunal
de 1ª instância, não podendo o Tribunal da Relação, em recurso impugnatório da
matéria de facto, reapreciar esta matéria segundo a sua própria livre convicção,
por violação da norma do n.º 1 do art. 32 da Constituição, que consagra o
direito ao recurso.
Quanto a isto, diz o Exmo. Senhor Juiz-Conselheiro Relator que “se a Relação
procedeu a uma aplicação surpresa de determinada norma inconstitucional, então
caberia ao recorrente invocar a questão da inconstitucionalidade em reclamação,
assim possibilitando que o Tribunal recorrido apreciasse a questão. O que não
fez”.
Ora, por mais que percorresse o Código de Processo Penal e a Lei do Tribunal
Constitucional, o recorrente não conseguiu descortinar qualquer procedimento de
“reclamação” dos acórdãos da Relação com base na sua inconstitucionalidade.
Por isso, requereu o esclarecimento da douta decisão sumária, no sentido de ser
esclarecido ao abrigo de que norma legal é que poderia ter deduzido tal
reclamação.
Porém o Exmo. Senhor Juiz-Conselheiro Relator, baseando-se em que não era lícito
ao recorrente “questionar o tribunal quanto ao fundamento dos fundamentos
adoptados”, indeferiu-lhe o pedido.
Ora o recorrente continua a entender que não tinha a obrigação nem a
possibilidade de “reclamar” do acórdão da Relação com fundamento na sua
inconstitucionalidade, pelo que, salvo o devido respeito, também neste ponto
discorda da douta decisão sumária
VI - Finalmente, diz o Exmo. Senhor Juiz-Conselheiro Relator “que a Relação não
fez sequer aplicação da norma retirada do art. 127 do C.P.P.”.
Ora a verdade é que a Relação invocou o referido art. 127 várias vezes:
- ao longo das págs. 17 a 22 do acórdão
- a fls. 24 do mesmo acórdão
- a fls. 25 do mesmo acórdão.
E foi com base na interpretação - inconstitucional, na modesta opinião do
recorrente - desse artigo que a Relação julgou improcedente o recurso.
VII - Assim sendo, o recorrente, respeitosamente, permite-se discordar, da douta
“decisão sumária” proferida pelo Exmo. Senhor Juiz-Conselheiro Relator, pelo que
dela reclama para a conferência, nos termos do n.º 3 do art. 78-A da Lei do
Tribunal Constitucional.
Nestes termos e nos mais de direito, requer o recorrente:
- que seja admitida a sua reclamação para a conferência;
- que a Conferência se digne decidir tomar conhecimento do seu recurso.
A esta reclamação responde o representante do Ministério Público neste Tribunal,
dizendo:
1 - A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 - Na verdade, a argumentação do reclamante assenta apenas na não consideração
do carácter normativo do controlo da constitucionalidade, cometida ao Tribunal
Constitucional, e na natureza dos ónus que justificadamente recaem sobre o
recorrente, nos recursos tipificados na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei
n.º 28/82.
3. Retira-se da reclamação, com interesse para a presente lide, que o
reclamante contesta a decisão tanto na parte em que ponderou que nunca tinha
sido suscitada no processo uma verdadeira questão de inconstitucionalidade
normativa, como na parte em que concluiu que a norma impugnada não fora, afinal,
aplicada na decisão recorrida.
Este último argumento é, na verdade, o determinante, pois é absolutamente
essencial para o prosseguimento do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da LTC que a norma questionada tenha sido efectivamente aplicada na
decisão recorrida como sua ratio decidendi.
Ora, apura-se, sem margem para qualquer dúvida, que o Tribunal recorrido não
aplicou o artigo 127º do Código de Processo Penal no sentido de que 'a entidade
competente nele referida é sempre e só o tribunal de 1ª instância, não podendo
o tribunal da Relação, em recurso impugnatório da matéria de facto, reapreciar
esta matéria segundo a sua própria livre convicção', norma que o recorrente
enuncia como objecto do presente recurso.
Bastará atentar na forma como a decisão recorrida analisa a matéria relacionada
com a comprovação dos factos que materializam o preenchimento do tipo penal em
que o recorrente foi condenado, para se concluir que a Relação adoptou um
entendimento totalmente contrário àquele que a aceitação de uma tal norma
traduziria. Diz-se na decisão:
Na sentença recorrida, e fazendo a analise crítica de toda a prova produzida em
audiência (e de forma bastante exaustiva) se diz o motivo porque se atendeu, e
em que medida, aos depoimentos prestados (atendendo a uns e valorando-os, e
ignorando outros por não merecerem credibilidade).
Tudo conforme supra transcrito da sentença recorrida e que aqui damos por
reproduzido.
E não se diga que deve convencer uma versão da ocorrência dos factos, em
detrimento de outra, em função do número de testemunhas que sustentam uma ou
outra versão (conforme pretende o recorrente).
“As declarações da ofendida, quando credíveis e inferidas de todos os outros
elementos de prova, são suficientes para, segundo as regras da experiência, dar
como provados os factos” -rec. desta relação nº 3127/99, de 2-02-00.
Mas, no caso presente, apenas temos uns depoimentos que sustentam a ocorrência
da agressão e que convenceram o julgador, e outros que alegam que nada viram, de
nada se aperceberam, por estarem embrenhados no jogo das cartas (não dizendo ou
sendo peremptórios a afirmar que a agressão não existiu).
Funcionou o princípio da oralidade e imediação da prova.
Pela leitura dos depoimentos transcritos, tem de se concluir, como se concluiu
na sentença, que a agressão ocorreu. [...]
Do exposto resulta que na sentença recorrida, foram observados os princípios a
que deve obedecer a apreciação e valoração da prova, e o Tribunal que procedeu
ao julgamento não extravasou nenhum desses princípios.
O recorrente interpreta a prova existente de modo não coincidente com a
interpretação do Tribunal - valoriza alguns depoimentos (dos que afirmam nada
ter visto), desvalorizando a restante prova que serviu de fundamento à decisão.
Assim, tendo em conta o princípio da oralidade e da imediação da prova, sem
violação de normas ou princípios penais, na sentença recorrida, só podia
concluir-se como se concluiu em relação à matéria de facto provada.
Pelo exposto, entendemos que na sentença recorrida não foram violados os
princípios a que deve obedecer a apreciação e valoração da prova.
É suficiente haver depoimentos, de testemunhas ou declarantes a afirmarem os
factos. Basta que o façam de modo a convencer o julgador de que afirmam a
verdade, e certamente os restantes depoimentos não foram prestados de forma
convincente a contrariar essa “verdade”.
Na fundamentação se refere o porquê de uns depoimentos merecerem credibilidade,
em detrimento de outros.
É, pois, lógica e coerente a convicção do julgador ao imputar os factos ao
arguido/recorrente.
Não se verifica, pois a falta de prova para a atribuição dos factos e a sua
prática pelo arguido, nem sequer sendo necessário lançar mão do princípio in
dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo é o correlato processual do princípio da presunção
da inocência do arguido [...].
Mais à frente, a propósito do artigo 127º do Código de Processo Penal,
ponderou-se:
[...] Afigura-se-nos que ressalta, de forma límpida, do texto da sentença ter o
Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre a prova recolhida,
obtido convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a
verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua
condenação.[...]
O recorrente limita-se a discordar da forma como o tribunal recorrido terá
apreciado a prova produzida, porque atendeu a pormenores que o convenceram, e
daí tirou as necessárias ilações, enquanto para o recorrente resultaram em não
convencimento.
A redacção actual do art. 374 nº 2 é clara ao indicar que na motivação se deve
indicar as provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e fazer
exame crítico das mesmas.
Na sentença recorrida indica-se, o teor e sentido dos depoimentos prestados, de
forma fundamentada e com a análise crítica das provas.
Por isso, que a matéria dada como apurada, resulta da conjugação de toda a
prova, nomeadamente os depoimentos, que interpretados segundo as regras da
experiência e livre convicção do julgador - art. 127 do CPP - mereceram
credibilidade ao tribunal.
Na conjugação dos depoimentos com a credibilidade que cada um merece e as
inferências daí resultantes, partiu para a operação intelectual de formação da
convicção, resultando a prova dos factos.
O Juiz julgador na livre apreciação da prova consagrada no art. 127 do CPP, só
podia concluir, como concluiu, pela imputação dos factos ao arguido.
Assim, temos que não se verifica qualquer erro, a convicção do julgador tem
suporte nos depoimentos. [...]
A decisão em recurso verificou rigorosamente as provas produzidas na 1ª
instância, cotejando-as passo a passo com os princípios constitucionais e legais
que disciplinam a produção de prova e a actividade de aquisição processual dos
factos em processo penal.
É certo que, nesta actividade, fez aplicação extraída do artigo 127º do Código
de Processo Penal; mas é bem evidente que não aplicou a norma, retirada deste
mesmo preceito, que o recorrente enuncia como objecto do recurso.
De modo que a conclusão que é possível retirar é a de que o Tribunal recorrido
reapreciou os elementos de prova recolhidos no processo, fixando, segundo a sua
livre convicção, os factos provados; a circunstância de haver coincidência na
apreciação da prova pelas duas instâncias, não representa, ao contrário do que
parece querer afirmar o recorrente, um vício processual, antes significa a
constatação do acerto da decisão então em recurso.
Chegados a este resultado, torna-se dispensável analisar o outro fundamento da
decisão sumária reclamada, pois é já seguro que o Tribunal não pode conhecer do
recurso interposto.
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando a decisão
sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 28 de Junho de 2006
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060403.html ]