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Processo n.º 730/05
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. foi condenado, por sentença de 2 de Fevereiro de 2004 do
Tribunal Judicial de Alcácer do Sal, como autor de um crime de ofensas à
integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do
Código Penal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5, e de um crime
de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 2, do mesmo Código, em
idêntica pena, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 200 dias de multa à taxa
diária de € 5.
Desta sentença interpôs recurso para o Tribunal da Relação
de Évora, sustentando, em suma, a nulidade dessa decisão por perda da eficácia
da prova (artigos 328.º, n.º 6, e 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo
Penal – CPP) ou, se assim se não entendesse, a reapreciação da matéria de facto,
com revogação da sentença, por erro na apreciação da prova, e sua substituição
por outra, que o absolvesse da prática do crime de ameaça.
No parecer emitido pelo representante do Ministério Público
no Tribunal da Relação de Évora, para além de se sustentar não ter a prova
perdido eficácia por interrupção da audiência por mais de 30 dias, uma vez que
essa regra, contida no artigo 328.º, n.º 6, do CPP, não se aplica quando tenha
havido gravação da prova, como no presente caso ocorreu, preconizou‑se a
rejeição do recurso na parte relativa à decisão da matéria de facto, com base na
seguinte argumentação:
“Por outro lado, sendo certo que o recorrente parece querer sindicar a
matéria de facto, a qual, como se disse, nos termos dos artigos 363.º e 364.º,
n.º 1, do CPP, foi documentada em registo áudio, cabe dizer que o mesmo não
observou, como lhe era exigido, o disposto no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP,
procedendo às especificações, transcrições e indicação dos suportes técnicos, o
que restringe o presente recurso, com a flexibilidade permitida pelo artigo
410.º, n.º 2, e nos termos do artigo 428.º, n.º 2, ambos do CPP, à matéria de
direito.
De facto, visando‑se com o recurso também a reapreciação da matéria de facto
(e por referência também aos n.ºs 1 e 2 do mesmo normativo), cabe assinalar que
para o efeito estipulam os n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP que:
«3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o
recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas
alíneas b) e c) do número anterior fazem‑se por referência aos suportes
técnicos, havendo lugar a transcrição.»
Ora, o arguido, nas suas conclusões, referindo‑se aos depoimentos, limita‑se
a fazer vagas e aleatórias referências a insuficiência da prova, deixando
entender que fez diferente avaliação da do tribunal, mas não explicando o como e
porquê de tal, e fazendo, por outro lado, meras referências a erros de
julgamento perante a prova produzida em audiência, mas sem efectivamente os
precisar e interligar no seu concreto conteúdo substancial, nem explicitando das
razões porque se deveria julgar diferentemente.
Assim, destinando‑se as conclusões da motivação do recurso a resumir o
âmbito do recurso e os fundamentos por que se pretende obter o seu provimento,
devendo ser proposições sintéticas e concisas do que foi exposto na motivação
(cf. Acórdão desta Relação, de 19 de Dezembro de 2000 – processo n.º 1731/00),
E não se tendo cumprido satisfatoriamente com tal, ficou assim este
tribunal impedido de saber das razões e fundamentos do recorrente para a
impugnação da decisão da matéria de facto, pois, como se decidiu no recente
Acórdão de 6 de Maio de 2003, deste Tribunal da Relação de Évora (recurso n.º
168/03), «Impunha‑se às recorrentes que, de forma clara e precisa,
especificassem, isto é, individualizassem, os pontos de facto que considerassem
incorrectamente julgados e as provas factuais, concretas e individualizadas, que
impusessem decisão diversa, sendo que tais especificações, tendo as provas sido
gravadas, deviam ser feitas por referências aos suportes técnicos».
Pois, quanto a esta formalidade, como se decidiu no Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, de 11 de Janeiro de 2001 (Colectânea de Jurisprudência –
Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2001, tomo I, p. 201): «O legislador
não disse aqui nem mais nem menos do que pretendia dizer: que o recorrente em
matéria de facto tem o ónus de, além do mais, fazer expressamente aquelas
indicações e referir os respectivos suportes técnicos, caso em que há lugar
necessariamente à transcrição».
Impugnando pois o recorrente a convicção do tribunal, para o qual se limita,
nas suas conclusões, de uma forma vaga e genérica, a questionar da bondade da
decisão, e não sendo aqueles ónus de natureza puramente secundária ou formal,
antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria
impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, como se refere no
indicado recente Acórdão desta Relação de 6 de Maio de 2003, «Não é possível
definir o objecto do recurso relativamente à matéria de facto, o que, de acordo
com as disposições conjugadas dos artigos 412.º, n.ºs 3 e 4, 419.º e 420.º,
todos do CPP, determina a sua rejeição por manifesta improcedência».
O mesmo parecer, no que respeita à matéria de direito,
aspecto a que ficaria circunscrito o objecto do recurso, propugnou a sua
improcedência.
Este parecer foi, nos termos e para efeitos do disposto no
artigo 417.º, n.º 2, do CPP, notificado ao recorrente que, porém, não apresentou
qualquer resposta.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 7 de Junho
de 2005, negou provimento ao recurso, tendo, quanto à impugnação da decisão da
matéria de facto, consignado o seguinte:
“Antes de mais, cumpre referir que, muito embora o arguido tenha declarado
pretender sindicar tanto a matéria de facto como a de direito, o que é certo é
que nas conclusões da sua motivação não expôs de forma clara quais as provas que
impunham decisão diversa da recorrida, limitando‑se, sem mais, a remeter para a
globalidade dos depoimentos prestados por determinadas testemunhas, com alusão
aos suportes magnéticos em toda a sua extensão, sem nunca referir concretamente
quais os pontos desses depoimentos em que baseava a sua discordância.
Como tal, as conclusões da sua motivação não obedecem aos requisitos
constantes do artigo 412.°, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
E assim sendo, no que respeita à sindicância da matéria de facto, o recurso
está irremediavelmente comprometido, já que não se trata, em nossa opinião, de
um caso com possibilidade de correcção.”
É contra este acórdão que, pelo arguido, vem interposto o
presente recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e g), da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a
inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.°, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa (CRP), da norma constante do artigo 412.°, n.º 3, alínea
b), do CPP, “quando interpretada no sentido de que a falta de indicação dos
pontos concretos dos depoimentos testemunhais que impõem decisão diversa da
recorrida (mesmo quando indicados os depoimentos em causa, embora sem
concretizar especificamente os trechos de cada um) tem como efeito a rejeição
liminar do recurso interposto pelo arguido relativamente à matéria de facto, sem
que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência”,
referindo, no respectivo requerimento de interposição de recurso, que:
“O recorrente, nas conclusões da sua motivação, indicou as provas (no caso,
depoimentos testemunhais) que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo
referência aos suportes magnéticos e cumprindo, assim, de uma perspectiva mais
do que razoável, o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de
Processo Penal. Com enorme estupefacção se constatou que o Tribunal da Relação
de Évora veio a considerar que pelo facto de não «(..) referir concretamente
quais os pontos desses depoimentos em que baseava a sua discordância», as
conclusões da sua motivação não respeitavam os requisitos constantes do artigo
412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, o que comprometia
irremediavelmente o recurso!
A questão da inconstitucionalidade não foi suscitada anteriormente,
porquanto a interpretação que incidiu sobre a norma em apreço na decisão
recorrida foi de todo imprevisível, não sendo exigível que se antevisse a
possibilidade de tal interpretação! Assim, o recorrente encontrar‑se‑á
dispensado do cumprimento prévio do requisito previsto no artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da LTC, por não ter tido oportunidade processual de suscitar a
questão antes da prolação da decisão recorrida.
Aliás, em nossa modesta perspectiva e salvaguardando respeito por mais
erudito entendimento, a posição perfilhada, por unanimidade, no douto acórdão
recorrido é absolutamente exótica, ademais quando se encontra declarada a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, desde o ano de 2002, de
semelhante entendimento, relativamente aos requisitos constantes do n.º 2
daquele mesmo artigo 412.º do Código de Processo Penal (cf. Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 320/2002).
Não se vê em que medida a vertente situação poderá divergir da que foi
decidida no Acórdão n.º 320/2002, do Tribunal Constitucional, pelo que, na
perspectiva do recorrente, estar‑se‑á em presença de decisão que aplica norma já
anteriormente julgada inconstitucional e com força obrigatória geral!
Tem o Tribunal Constitucional entendido que em situação em que o recorrente
é surpreendido com aplicação ou interpretação normativa de todo imprevisível ou
inesperada, não lhe poderá impor‑se o ónus de suscitar a questão antes da
prolação da decisão em causa. Ora, é precisamente o que sucede na vertente
situação, até porque o interessado não dispôs, efectivamente, de oportunidade
para suscitar a questão da inconstitucionalidade antes de esgotado o poder
jurisdicional!”
O recurso foi admitido por despacho do Desembargador
Relator do Tribunal da Relação de Évora.
No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho em que
determinou a apresentação de alegações, consignou que o recorrente se deveria
pronunciar “sobre a eventualidade de não se conhecer do objecto do recurso, com
base em que: a) a interpretação do artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de
Processo Penal acolhida no acórdão recorrido (fls. 263) ser similar à já
defendida no parecer do representante do Ministério Público junto desse Tribunal
(fls. 243 a 245), pelo que o recorrente terá tido oportunidade processual de
suscitar a questão de inconstitucionalidade dessa interpretação na resposta que
poderia ter apresentado ao abrigo do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo
Penal; b) não existe identidade entre a norma declarada inconstitucional pelo
Acórdão n.º 320/2002 e a norma (ou interpretação normativa) aplicada na decisão
recorrida”.
O recorrente apresentou alegações, no termo das quais
formulou as seguintes conclusões:
“1. O tribunal recorrido rejeitou liminarmente o recurso que o arguido interpôs,
relativamente à matéria de facto, por, alegadamente, este não ter exposto de
forma clara, nas conclusões da sua motivação, quais as provas que impunham
decisão diversa da recorrida, limitando‑se «a remeter para a globalidade dos
depoimentos prestados por determinadas testemunhas, com alusão aos suportes
magnéticos em toda a sua extensão», considerando que tal vício não era passível
de correcção;
2. Segundo a interpretação que o Tribunal da Relação de Évora faz do normativo
constante do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, a falta de indicação ou indicação
desadequada de qualquer dos requisitos ali previstos determina a rejeição do
recurso, sem que seja dada ao recorrente a possibilidade de suprir o alegado
vício;
3. Porém, a omissão ou incorrecto cumprimento do ónus imposto pelo n.º 3 do
artigo 412.° do CPP, nomeadamente na sua alínea b), não pode, só por si, levar
ao não conhecimento, pelo Tribunal, da matéria de facto que o recorrente
pretendia ver sindicada;
4. Efectivamente, o direito ao recurso por parte do arguido em processo penal
inclui‑se no princípio constitucional das garantias de defesa e envolve a
possibilidade de ver reapreciado por um tribunal superior a decisão proferida
sobre a matéria de facto;
5. A cominação preclusiva absoluta imposta pelo Tribunal da Relação de Évora é
violadora do princípio da proporcionalidade, ínsito no n.º 2 do artigo 18.° da
CRP, e das garantias de defesa do arguido, previstas no artigo 32.°, n.º 1, da
Lei Fundamental;
6. Não era razoável impor ao arguido que previamente tivesse suscitado a questão
de inconstitucionalidade da interpretação normativa que temos em apreço, pois
que, supondo, fundamentadamente, ter cumprido os ónus formais que sobre ele
impendiam, o ónus adicional de antecipar a questão da inconstitucionalidade da
interpretação normativa é excessivo;
7. Assim sendo, deverá considerar‑se que o recorrente está dispensado do
cumprimento prévio do requisito previsto no artigo 70.°, n.º 1, alínea b), da
LTC;
8. Ainda que não se considere preenchido o requisito previsto no artigo 70.°,
n.º 1, alínea b), da LTC, sempre a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de
Évora é recorrível, por força do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.°
do referido diploma legal;
9. Na verdade, o Tribunal Constitucional [declarou], com força obrigatória
geral, «a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412.º, n.º 2,
do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de
indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas
suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do
arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal
deficiência» (Acórdão n.º 320/2002);
10. Existe identidade essencial entre a norma declarada inconstitucional pelo
Acórdão n.º 320/2002 e a norma (ou interpretação normativa) aplicada na decisão
recorrida;
11. Contudo, se por mais erudita perspectiva assim se não entendesse, sempre a
interpretação normativa efectuada na decisão recorrida foi já julgada
inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 32.° da CRP, ao menos, no
âmbito dos Acórdãos n.ºs 529/2003, 322/2004 e 405/2004;
12. Sendo a definição dos requisitos processuais, nomeadamente quanto ao
exercício do direito ao recurso, matéria que cabe à lei ordinária adjectiva, não
podem tais normativos ser encarados de perspectiva que estabeleça ónus ou
formalidades excessivas e desproporcionadas, que no fundo colocam em causa o
direito do arguido ao pleno exercício da sua defesa, como resulta do disposto
nos artigos 18.°, n.º 2, e 32.°, n.º 1, da CRP;
13. Assim sendo, deverá ser declarada a inconstitucionalidade material, por
violação do artigo 32.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da
norma constante do artigo 412.°, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal,
quando interpretada no sentido de que a falta de indicação dos pontos concretos
dos depoimentos testemunhais que impõem decisão diversa da recorrida (mesmo
quando indicados os depoimentos em causa, embora sem concretizar especificamente
os trechos de cada um) tem como efeito a rejeição liminar do recurso interposto
pelo arguido relativamente à matéria de facto, sem que ao mesmo seja facultada a
oportunidade de suprir tal deficiência.”
O representante do Ministério Público neste Tribunal
contra‑alegou, propugnando o não conhecimento do objecto do recurso, porquanto:
“Como dá nota, aliás, o douto despacho de fls. 274, é evidente que o
recorrente A. dispôs de plena oportunidade processual para suscitar, perante a
Relação de Évora, a questão de constitucionalidade que integra o objecto do
presente recurso.
Na verdade, a questão do deficiente cumprimento, na motivação apresentada,
do ónus a cargo do recorrente que pretende impugnar a decisão proferida sobre a
matéria de facto, constante de prova gravada ou registada, foi claramente
colocada no parecer exarado no visto do Ministério Público, ao qual o recorrente
podia (e devia) ter respondido, se pretendesse assegurar que lhe ficava aberta a
via de recurso tipificada na alínea b) do n.° 1 do artigo 70.º da Lei do
Tribunal Constitucional – já que para tal foi devidamente notificado, optando
por não apresentar qualquer resposta ou requerimento a tal matéria.
Deste modo, não se verificando os pressupostos do recurso interposto, com
base naquela alínea b), é evidente que dele se não deverá tomar conhecimento.
É, por outro lado, incontroverso que se não verificam os pressupostos de
admissibilidade do recurso tipificado na alínea g) do mesmo preceito legal, por
não existir a indispensável sobreposição ou coincidência normativa sobre a
interpretação normativa já apreciada pelo Tribunal Constitucional, no acórdão
fundamento invocado pelo recorrente, e a questionada nos autos.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Começando – como cumpre – pela apreciação das questões
suscitadas no despacho que determinou a elaboração das alegações e que poderiam
conduzir ao não conhecimento do objecto do recurso, há que reconhecer que o
recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC é
inadmissível.
Na verdade, constitui requisito específico dessa espécie de
recurso ter o recorrente suscitado “durante o processo” a questão de
inconstitucionalidade da norma que veio a ser aplicada na decisão recorrida e
tal requisito, funcionalmente entendido, pressupõe que a questão de
inconstitucionalidade tenha sido suscitada antes de esgotado o poder
jurisdicional do tribunal recorrido. Neste contexto, o artigo 72.º, n.º 2, da
LTC só confere legitimidade para a interposição do recurso previsto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da LTC à “parte que haja suscitado a questão da
inconstitucionalidade (...) de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela
conhecer”.
Tal requisito só se considera dispensável nas situações
especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder
jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas
situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de
oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes
de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo tido essa oportunidade, não
lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade,
atenta designadamente a natureza inesperada da interpretação e aplicação que
veio a ser feita da norma em causa.
Nenhuma destas excepções se verifica no presente caso, já
que, por um lado, não se pode considerar inesperada a interpretação adoptada no
acórdão recorrido, uma vez que este se limitou a acolher a que havia sido
preconizada no parecer do Ministério Público, parecer que foi notificado ao
recorrente justamente para este, querendo, lhe responder (artigo 417.º, n.º 2,
do CPP), e, por outro lado, o recorrente teve oportunidade processual –
justamente na resposta ao parecer do Ministério Público, cuja apresentação lhe
foi facultada, mas que ele decidiu não utilizar – para suscitar, perante o
tribunal recorrido, a questão de inconstitucionalidade que agora pretende ver
apreciada.
Assim, com base na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da
LTC, o presente recurso é inadmissível.
2.2. Mas será admissível ao abrigo da alínea g) do mesmo
preceito, que – concretizando a previsão do n.º 5 do artigo 280.º da CRP (“Cabe
ainda recurso para o Tribunal Constitucional, obrigatoriamente para o
Ministério Público, das decisões dos tribunais que apliquem norma anteriormente
julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional”) – admite
recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem
norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal
Constitucional?
A dificuldade que, no presente caso, a questão suscita
resulta da circunstância de o recorrente, no requerimento de interposição de
recurso de constitucionalidade, ao identificar – como o exige o n.º 3 do artigo
75.º‑A da LTC – “a decisão do Tribunal Constitucional (...) que, com
anterioridade, julgou inconstitucional (...) a norma aplicada pela decisão
recorrida”, ter indicado um Acórdão (o Acórdão n.º 320/2002) cujo juízo (aliás,
no caso, declaração com força obrigatória geral) de inconstitucionalidade
incidiu sobre norma que não coincide com a aplicada na decisão recorrida, mas
sendo certo que, tendo o recurso sido admitido e prosseguido para alegações,
nestas o recorrente identificou duas decisões do Tribunal Constitucional
(Acórdãos n.ºs 529/2003 e 322/2004) que efectivamente julgaram inconstitucional,
com anterioridade relativamente à decisão recorrida, a específica dimensão
normativa nesta aplicada como ratio decidendi para o não conhecimento do recurso
da matéria de facto.
Recorde‑se que o acórdão ora recorrido assentou essa sua
decisão no entendimento de que as conclusões da motivação do recurso do
recorrente “não obedecem aos requisitos constantes do artigo 412.º, n.º 3,
alínea b), do Código de Processo Penal”, por nessas conclusões não ter exposto
“de forma clara quais as provas que impunham decisão diversa da recorrida,
limitando‑se, sem mais, a remeter para a globalidade dos depoimentos prestados
por determinadas testemunhas, com alusão aos suportes magnéticos em toda a sua
extensão, sem nunca referir concretamente quais os pontos desses depoimentos em
que baseava a sua discordância”, situação que determinou o não conhecimento do
recurso no que respeitava à decisão da matéria de facto, sem que previamente
fosse endereçado ao recorrente convite para correcção das deficiências
detectadas.
Não existe coincidência entre essa dimensão normativa,
reportada ao artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, com a que foi objecto do
Acórdão n.º 320/2002, que, na sequência dos juízos de inconstitucionalidade
contidos nos Acórdãos n.ºs 288/2000, 388/2001 e 401/2001, declarou, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1,
da Constituição da República Portuguesa, da “norma constante do artigo 412.º,
n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que a falta de
indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas
suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do
arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal
deficiência”. Trata‑se, na verdade, de normas distintas: a do n.º 2 do artigo
412.º do CPP (em causa no Acórdão n.º 320/2002) enuncia as menções que as
conclusões da motivação do recurso devem conter quando este verse matéria de
direito; a do n.º 3 do mesmo preceito (em causa no presente recurso) respeita às
referências obrigatórias das conclusões quando no recurso se impugne a decisão
proferida sobre matéria de facto.
Mas a coincidência de dimensões normativas já existe entre
a aplicada na decisão recorrida e as que foram objecto de juízos de
inconstitucionalidade nos Acórdãos n.ºs 529/2003 e 322/2004, que julgaram
inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, o primeiro, “a
norma constante do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando
interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da
motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem
como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a
improcedência do recurso do arguido nessa parte, sem que ao mesmo seja facultada
oportunidade de suprir tal deficiência”; e o segundo, “a norma constante dos
n.°s 3 e 4 do artigo 412.° do Código de Processo Penal, interpretada no sentido
de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o
arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas
alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem
como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso
nessa parte, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade de suprir tal
deficiência”.
A questão da admissibilidade de recurso interposto ao
abrigo da então alínea j) [correspondente à actual alínea g)] do n.º 1 do artigo
70.º da LTC, em situação similar à presente, já foi apreciada no Acórdão n.º
133/88, em caso em que o anterior acórdão do Tribunal Constitucional indicado no
requerimento de interposição de recurso não havia recaído sobre a específica
norma então impugnada, mas em que, não tendo tal incorrecção levado à rejeição
do recurso, nem no tribunal a quo, nem na apreciação liminar no Tribunal
Constitucional, o recorrente viria, nas alegações aqui apresentadas, a indicar
correctamente o anterior Acórdão que julgara inconstitucional a norma em causa.
Apesar disso, no Acórdão n.º 133/88, por maioria, acabou por decidir‑se não
tomar conhecimento do recurso, com a seguinte argumentação:
“3 – Conforme refere o Ex.mo Procurador‑Geral da República Adjunto, nenhuma
das normas constantes do Decreto‑Lei n.º 187/83 efectivamente aplicadas na
decisão recorrida – ou seja, a do n.º 1 do artigo 9.º, na parte em que define
crime de contrabando, a da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º e as dos n.ºs 1 e 4
do artigo 18.º – haviam sido julgadas inconstitucionais nos acórdãos mencionados
no requerimento de interposição do recurso.
Com efeito, no Acórdão n.º 173/85 este Tribunal julgou inconstitucional a
norma constante do artigo 22.º, n.º 1, alínea a), do Decreto‑Lei em causa e no
Acórdão n.º 254/86 foram julgadas inconstitucionais as normas constantes do n.º
1 do artigo 9.º, tão‑só na parte em que fixa a sanção do crime de contrabando,
e da alínea c) do n.º 2 do mesmo artigo.
Invoca, no entanto, o magistrado do Ministério Público, nas suas alegações,
que, por um lado, este Tribunal, noutro acórdão, já julgara inconstitucional a
norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º, e isto antes de ter sido proferida a
decisão recorrida, e que, por outro lado, a apreciação da questão da eventual
inconstitucionalidade desta última norma exige uma simultânea apreciação da
constitucionalidade das restantes normas do mesmo bloco normativo, com ela
efectivamente aplicadas no caso sub judicio.
Cumpre, porém, e antes de mais, determinar se é admissível um recurso
interposto ao abrigo do preceituado no n.º 5 do artigo 280.º da Constituição e
na alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, sem que se identifique
com precisão a decisão do Tribunal Constitucional que haja anteriormente julgado
inconstitucional a norma aplicada pelo tribunal a quo.
Ora, a resposta a esta questão há‑de ser necessariamente negativa.
Com efeito, em tais casos, cabe recurso de constitucionalidade das decisões
dos restantes tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada
inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Quer isto dizer que a existência
de prévia decisão do Tribunal Constitucional no sentido indicado constitui
pressuposto do recurso, pressuposto esse que, por incidir sobre matéria de
facto, há‑de ser comprovado quando da interposição do recurso.
É que – recorde‑se – a decisão sobre a admissibilidade do recurso cabe
sempre, prima facie, ao próprio tribunal recorrido, pelo que nem se pode sequer
invocar a circunstância de o Tribunal Constitucional dever conhecer, melhor que
ninguém, as suas próprias decisões.
De qualquer forma, seria manifestamente contrário aos princípios gerais de
direito processual que, invocado pelo recorrente um determinado facto que
constitui pressuposto do recurso, o tribunal devesse ir, oficiosamente,
averiguar da sua veracidade, sem que sobre o próprio recorrente impendesse o
ónus de fazer a respectiva prova. Aliás, nem tal busca seria praticamente viável
de modo a assegurar, com um mínimo de garantia, que a decisão sobre a
admissibilidade do recurso se apresentava devidamente fundada, salvo se todos
os tribunais pudessem recorrer a um banco de dados actualizados, referente às
decisões do Tribunal Constitucional, o que, como é sabido, não acontece.
Nesta conformidade, há que concluir que sobre o recorrente impende o ónus de
indicar o anterior acórdão do Tribunal Constitucional que haja julgado
inconstitucional a norma aplicada pelo tribunal recorrido, quando pretenda
interpor o recurso previsto no n.º 5 do artigo 280.º da Constituição.
No caso vertente, os acórdãos indicados pelo recorrente não se referiam às
normas aplicadas pelo juiz do Tribunal de Esposende, pelo que se não fez prova
atempada da ocorrência de um pressuposto essencial do recurso.
Nestes termos, não se toma conhecimento do recurso.”
A este Acórdão foram apostos votos de vencido do primitivo
relator, Conselheiro Magalhães Godinho, e do Conselheiro Cardoso da Costa.
Lê‑se no primeiro:
“Vencido. Entendi que o Tribunal devia conhecer do recurso, pois perfilhei,
inteiramente, no projecto de acórdão que elaborei e não obteve vencimento, o
ponto de vista expresso pelo Procurador‑Geral Adjunto na sua alegação. De
resto, entendo que os recursos a este Tribunal devem ser facilitados, e não
dificultados, e que, invocando‑se decisão anterior do Tribunal, nos termos
constitucionais, o recurso deve ser conhecido, ainda que a indicação esteja
errada, desde que, efectivamente, como acontecia neste caso, houvesse já
decisão do Tribunal sobre inconstitucionalidade da norma. Além disso, se o
relator entendesse – e eu não o entendi – que a indicação feita pelo recorrente
não era exacta, ou era incompleta, e susceptível de inviabilizar o recurso, ou
qualquer Sr. Juiz, ao ter vista do processo, tivesse o mesmo entendimento,
deveria então o relator notificar o recorrente para corrigir a inexactidão ou
completar o seu pedido. Não o fazendo, o relator, não usando dos meios que o n.º
3 do artigo 690.º do Código de Processo Civil põe à sua disposição, retirou ao
recorrente a possibilidade de esclarecer e completar a sua alegação. Ora, não se
me afigura justo que por uma deficiência do relator, e para mim não deixaria de
o ser se ele entendesse propor se não tomasse conhecimento do recurso, seja
penalizado o recorrente.”
Por seu turno, o voto de vencido do Conselheiro Cardoso da
Costa é do seguinte teor:
“Propendi – e nesse sentido votei – a que se tomasse conhecimento do
recurso. E isto por me parecer excessiva, não propriamente a doutrina geral
constante do acórdão, mas a correspondente solução em casos — como o dos
presentes autos – em que, por um lado, tendo o recorrente chegado a alegar, veio
na alegação a indicar correctamente o acórdão anterior do Tribunal
Constitucional de cuja existência dependia a admissibilidade do recurso, e em
que, por outro lado, era perfeitamente conhecida do Tribunal a ocorrência de um
tal pressuposto.”
Reapreciando a questão, afigura‑se que pelo menos em
situações, como a presente, em que o recorrente – tendo inicialmente indicado,
no requerimento de interposição de recurso ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, um anterior acórdão do Tribunal Constitucional que julgara
inconstitucional uma dimensão normativa não rigorosamente coincidente com a
aplicada na decisão recorrida – vem a identificar, antes de proferida decisão,
seja no tribunal a quo, seja no Tribunal Constitucional, a não admitir ou
rejeitar o recurso com base nessa incorrecção, um outro acórdão deste Tribunal
que efectivamente julgara inconstitucional a norma aplicada, se deve conhecer
do mérito do recurso.
Tal é justificado pelo princípio da preferência pelas
decisões de mérito em detrimento das decisões de forma, derivado do direito a
tutela jurisdicional efectiva, e do princípio da funcionalidade e
proporcionalidade dos ónus e cominações processuais, que se pode fundar no
princípio da proporcionalidade das restrições (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP)
ao direito de acesso à justiça (artigo 20.º, n.º 1, da CRP) e na regra do
processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP) – cf. Carlos Lopes do Rego, “Os
princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos
ónus e cominações e o regime da citação em processo civil”, em Estudos em
Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp.
836‑859).
Especial relevância assume, no caso, a específica
finalidade do tipo de recurso em causa, em que, para além da “necessidade de
garantir a autoridade do Tribunal Constitucional, a harmonia de julgados e
unidade de orientação jurisprudencial” (Carlos Blanco de Morais, Justiça
Constitucional, tomo II, 2005, p. 741), “está patente o postulado da supremacia
do Tribunal Constitucional – o postulado de que, em matéria de
inconstitucionalidade, se a primeira palavra cabe a qualquer tribunal, a última
lhe deve pertencer”, postulado que, “por sua vez, decorre da ideia de garantia
da Constituição, por o Tribunal Constitucional ser o órgão especificamente
legitimado para esse efeito” (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional,
tomo VI, 2.ª edição, 2005, p. 213 e nota 6, acolhendo, neste último ponto, a
posição de Miguel Galvão Teles (“A competência da competência do Tribunal
Constitucional”, em Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional,
Coimbra, 1995, pp. 105‑125, em especial p. 118, nota 22), que liga a norma do
n.º 5 do artigo 280.º da CRP “a um propósito de defesa da Constituição”: “quando
já tiver havido decisão no sentido da inconstitucionalidade, não só se legitima
a possibilidade de recurso pela parte, ainda que não haja suscitada a questão
durante o processo, como o recurso haverá de ser obrigatório, no interesse da
Constituição”.
Tratando‑se de um recurso “em defesa da Constituição”, mais
do que em defesa dos interesses subjectivos do recorrente, a Constituição não
prescreve, quanto a ele, no n.º 5 do seu artigo 280.º, quaisquer restrições
específicas no que concerne à legitimidade para recorrer (pelo contrário:
torna‑o obrigatório para o Ministério Público), contrariamente ao que estipula,
no precedente n.º 4, correspondente aos recursos das alíneas b) e f) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, em que a limita à “parte que haja suscitado a questão da
inconstitucionalidade ou da ilegalidade”. E mais: enquanto o referido n.º 4
remete expressamente para a lei a regulação do regime de admissão dos recursos
correspondentes às ditas alíneas b) e f), nenhuma remissão para a lei é feita
no n.º 5, quanto aos recursos correspondentes à alínea g) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC. Da literalidade deste n.º 5 resulta que sempre que uma decisão dos
tribunais aplique norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo
Tribunal Constitucional cabe recurso para este Tribunal, obrigatório para o
Ministério Público.
A razoabilidade da imposição ao recorrente do ónus de
identificação dessa anterior decisão prende‑se com a facilitação do controlo,
desde logo pelo tribunal autor da decisão recorrida, da verificação do requisito
específico deste tipo de recurso. Ora, se, antes de proferida qualquer decisão
no sentido da não admissão do recurso com base na identificação incorrecta,
pelo recorrente, do acórdão anterior do Tribunal Constitucional que teria
julgado inconstitucional a norma aplicada na decisão recorrida, sobrevém
correcção do erro, pelo próprio recorrente, nas alegações apresentadas no
Tribunal Constitucional, e constatada a efectiva coincidência entre a dimensão
normativa julgada inconstitucional nos Acórdãos agora correctamente citados e a
dimensão normativa aplicada na decisão recorrida, decidir‑se, agora, não
conhecer do mérito do recurso, seria transformar aquele ónus numa exigência
puramente formal, destituída de qualquer sentido útil e razoável quanto à
disciplina processual e, por isso, desproporcionada. Na verdade, o recorrente
acabou por fornecer ao Tribunal os elementos necessários para comprovar a
coincidência das dimensões normativas em causa, numa fase processual em que
nenhuma decisão sobre a admissão do recurso havia sido tomada.
Termos em que se considera o presente recurso admissível,
ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2.3. Como se referiu, este Tribunal, no Acórdão n.º
529/2003, já julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
CRP, a norma constante do artigo 412.º, n.º 3, do CPP, “quando interpretada no
sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer
das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito o não
conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso do
arguido nessa parte, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal
deficiência”.
Após referências aos Acórdãos n.ºs 259/2002 (salientando
que, diferentemente da situação nele apreciada e que culminou num juízo de não
inconstitucionalidade, no caso sobre que recaiu o Acórdão n.º 529/2003 estava em
causa recurso do arguido, e não do assistente, e a deficiência que motivara a
rejeição era imputada, na decisão recorrida, apenas às conclusões e não também
ao próprio teor da motivação do recurso), e à jurisprudência anterior – sempre
no sentido da inconstitucionalidade, com base em tratar‑se de uma restrição
desproporcionada do direito à defesa do arguido, na dimensão do direito ao
recurso – quer relativa aos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do CPP,
“quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da
motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem a
formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões” (Acórdãos n.ºs
193/97, 43/99, 417/99, 43/2000 e 337/2000), quer relativa à interpretação dos
artigos 59.º, n.º 3, e 63.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro,
que conduza à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido quando se
verifique “falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação”
(Acórdão n.º 303/99) ou quando tal recurso seja apresentado “sem conclusões”
(Acórdão n.º 319/99), quer relativa ao n.º 2 do artigo 412.º do CPP, quando à
falta, nas conclusões da motivação de recurso versando matéria de direito, das
menções exigidas nas três alíneas desse preceito (Acórdãos n.ºs 288/2000 e
320/2002), o Acórdão n.º 529/2003 concluiu:
“Esta jurisprudência, que mantém inteira validade, é inteiramente transponível
para os presentes autos, uma vez que, também aqui, houve lugar a um não
conhecimento da impugnação da matéria de facto e à improcedência do recurso.
Ora, na perspectiva das garantias de defesa, que é a aqui relevante, é
absolutamente indiferente que o ónus que não é cumprido pelo arguido recorrente
seja o da não indicação, nas conclusões da alegação do recurso, das menções a
que se referem o n.º 2, com a consequente rejeição do recurso, ou das menções a
que se referem o n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, com o
consequente não conhecimento da matéria e a improcedência do recurso.”
Idêntico juízo de inconstitucionalidade foi formulado, como
já se referiu, no Acórdão n.º 322/2004, e, posteriormente, pelo Acórdão n.º
405/2004 (que julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da
CRP, a norma dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, “interpretada no sentido de
que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o
arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na
alínea a) e, pela forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3,
tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a
improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a
oportunidade de suprir tal deficiência”).
É este jurisprudência que ora se reitera – salientando‑se,
tal como se fez no Acórdão n.º 405/2004, que, diferentemente da situação sobre
que versou o Acórdão n.º 140/2004 (e também o já citado Acórdão n.º 259/2002), a
deficiência que motivou a rejeição do recurso, pelo acórdão ora recorrido,
respeita apenas às conclusões da motivação do recurso penal, e não também ao
teor desta motivação. Na verdade, no n.º 7 do acórdão recorrido, atrás
transcrito, expressamente se refere que “nas conclusões da sua motivação não
expôs [o arguido] de forma clara quais as provas que impunham decisão diversa da
recorrida”, e, assim, “as conclusões da sua motivação não obedecem aos
requisitos constantes do artigo 413.º, n.º 3, alínea b), do CPP” (sublinhados
acrescentados), pelo que “no que respeita à sindicância da matéria de facto, o
recurso está irremediavelmente comprometido, já que não se trata, em nossa
opinião, de um caso com possibilidade de correcção”. Como se vê, no juízo
emitido pelo acórdão recorrido nenhuma alusão se faz a que, também no teor da
motivação do recurso penal, o arguido não indicara “as provas que impõem decisão
diversa da recorrida”; e, percorrendo essa motivação – sem que incumba ao
Tribunal Constitucional emitir, nesta sede, juízo sobre a suficiência do aí
alegado –, constata‑se que nela, na sua parte III-I (“O erro na apreciação da
prova”) se fazem especificadas menções às sua próprias declarações (fls. 175) e
aos depoimentos das testemunhas Almerinda Nunes, Carmen Nunes, Marisa Pereira e
Hugo Constantino (fls. 176 a 177). No presente caso, portanto, não se verifica
o específico circunstancialismo que conduziu aos juízos de não
inconstitucionalidade constantes dos Acórdãos n.ºs 259/2002 e 140/2004, sendo
antes transponíveis os juízos de inconstitucionalidade constantes dos Acórdãos
n.ºs 529/2003, 322/2004 e 405/2004 (disponíveis, como os anteriormente citados,
em www.tribunalconstitucional.pt).
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º,
n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo
412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, quando interpretada no
sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso do
arguido, de forma clara, das provas que impunham decisão diversa da recorrida,
tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a
improcedência do recurso nessa parte, sem que ao arguido seja facultada
oportunidade de suprir tal deficiência; e, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso, determinando‑se a
reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada, em conformidade com o
precedente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Junho de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos