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Processo nº 75/2006
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. e B. foram condenados, por despacho de 26 de Novembro de 2004, nas custas
dos incidentes a que deram causa com a interposição de dois recursos que foram
indeferidos (um por intempestividade, outro por inadmissibilidade legal).
Notificados de tal despacho requereram a sua reforma quanto a custas, nos termos
do disposto no artigo 669º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Sobre tal requerimento, recaiu o seguinte despacho proferido em 12 de Janeiro de
2005:
Vêm os remitentes requerer ao Tribunal “se digne dar sem efeito a condenação dos
remitentes no pagamento das custas dos incidentes supra referidos”.
Ora tal pedido não consubstancia qualquer “reforma” das decisões relativas a
custas, pelo que se indefere, por absolutamente carecido de cobertura legal,
condenando‑se os requerentes nas custas do incidente anómalo com taxa de justiça
fixada em 10 (dez) UC (art°. 16° do C.C.J.).
A. e B. interpuseram recurso do despacho de 12 de Janeiro de 2005, recurso que
foi indeferido, por inadmissibilidade legal, nos termos do artigo 670º, nº 2, do
Código de Processo Civil.
Os recorrentes deduziram então reclamação, nos termos do artigo 688º do Código
de Processo Civil, invocando a inconstitucionalidade do artigo 670º, nº 2, do
Código de Processo Civil.
O Presidente do Tribunal da Relação de Évora, por decisão de 6 de Outubro de
2005, entendeu o seguinte:
II.1. Notificados do despacho, proferido em 26N0V04, que os condenou nas custas
dos incidentes a que deram causa com a interposição de dois recursos, vieram os
ora Reclamantes, “nos termos do disposto no art° 669°, n° 1, al. b), do CPC
requerer a reforma quanto a custas relativamente às 2ª e 3ª Decisões aí
proferidas” (sic), requerimento esse que viria a ser indeferido, “por
absolutamente carecido de cobertura legal” uma vez que o “pedido” nele formulado
(“dar sem efeito a condenação dos remitentes no pagamento das custas dos
incidentes supra referidos”), não consubstancia qualquer “reforma” das decisões
relativas a custas”.
É deste despacho que os Remitentes interpuseram o recurso que – por “legalmente
inadmissível, na medida em que se refere a um despacho insusceptível de recurso”
– foi indeferido, “ao abrigo do disposto nos art.°s 670°, n.° 2 e 687°, n° 3,
ambos do C. P. Civil”. Daí a presente reclamação.
Sustentam os Reclamantes” que o despacho recorrido “não é um despacho que
indefira um pedido de reforma quanto a custas, nos termos e para os efeitos do
disposto no art. 670º, n° 2, do CPC”, pois que “não conheceu, não decidiu, nem
indeferiu qualquer pedido de reforma” nem, por outro lado, analisou “ainda que
perfunctoriamente, os fundamentos expostos pelos Remitentes”.
Mas, se o despacho recorrido “não conheceu, não decidiu, nem indeferiu qualquer
pedido de reforma” nem, por outro lado, analisou “ainda que perfunctoriamente,
os fundamentos expostos pelos Remitentes”, o meio legal para reagir contra o
vício de que tal despacho estará inquinado, face aos termos em que os
Reclamantes configuram a questão, é – não o recurso – mas a reclamação, de
harmonia com o postulado segundo o qual dos despachos recorre-se, contra as
nulidades reclama-se (cfr. art°s 66º, n° 3 e 668°, n°1 e 3, ambos do CPC).
Tendo os Remitentes lançado mão do recurso – meio inidóneo para reagir contra a
pretensa ilegalidade – a presente reclamação contra o indeferimento daquele
recurso está votada ao insucesso (diga-se, entre parênteses, que, mesmo que
tivesse sido arguida, a nulidade de que enfermaria o despacho recorrido, face
aos termos em que os Reclamantes apresentam a questão, extravasaria o âmbito da
presente reclamação, meio legal de que o recorrente apenas pode lançar mão para
reagir contra a não admissão ou a retenção do recurso – art° 688° do CPC).
E porque usaram indevidamente do recurso, não podem os Reclamantes queixar-se de
violação do “direito fundamental de acesso ao Direito e aos Tribunais, a uma
tutela jurisdicional efectiva e à igualdade, tutelados nos arts. 13° e 20º da
Constituição”.
II.2. Sendo, porém, como é, das decisões – e não da sua fundamentação – que se
recorre, a decisão recorrida (ou seja, a que indeferiu a requerida reforma
quanto a custas, independentemente das razões que determinaram o indeferimento)
é insusceptível de recurso como claramente flui do disposto no n° 2, 1°
segmento, do art° 670° do CPC, que reza assim: “Do despacho que indeferir o
requerimento de rectificação, esclarecimento ou reforma não cabe recurso”.
Argumentam os Reclamantes que “a norma estabelecida no referido art. 670°, n° 2,
do CPC, que determina a irrecorribilidade dos despachos que indefiram o
requerimento de rectificação, esclarecimento ou reforma, não se pretende aplicar
ao pedido de reforma das decisões quanto a custas e multa previsto no art. 669°,
n° 1, a), do CPC, mas apenas aos pedidos de reforma das decisões de mérito
referidos no art. 669°, n° 2, do CPC.” Citam em abono da sua tese, aliás douta,
Fernando Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Penal, 4ª ed., p.
55).
Salvo o devido respeito, este entendimento não pode ser acolhido, desde logo
porque a lei não distingue entre “reforma [da sentença] quanto a custas” [art°
669°, n° 1, al, b), do CPC] e “reforma da sentença” nos casos referidos nas als.
a) e b) do n° 2 do mesmo artigo. “Reforma [da sentença] quanto a custas” e
“reforma da sentença” nos casos referidos nas als. a) e b) do n° 2 do cit. art°
são espécies do mesmo género: trata-se, em ambos os casos, de reforma da
sentença. Atente-se na epígrafe dos art°s 669°:
“Esclarecimento ou reforma da sentença”. Por outro lado, o processamento da
reforma (previsto no art° 670º) é precisamente o mesmo, trate-se de reforma
quanto a custas, trate‑se de reforma nos casos referidos nas als. a) e b) do n°
2 do art° 669°.
Ora, o que a lei não distingue não deve o intérprete distinguir (sobre
irrecorribilidade da decisão que indefere o pedido reforma da decisão quanto a
custas, pode ver-se, entre muitos, o Ac. do STA, 24MAR88, BMJ, 375‑424).
Quanto à invocada inconstitucionalidade, acrescentar-se-á que o princípio do
direito ao recurso das decisões dos tribunais, por forma a que haja um duplo
grau de jurisdição, consagrado nos art°s 20º, n° 1 e 32°, n° 1 (este em matéria
penal) da Lei Fundamental, não é absoluto, mesmo em matéria penal, dispondo o
legislador de uma ampla liberdade de conformação no estabelecimento de
requisitos de admissibilidade dos recursos. Como pode ler-se no Ac. do TC, n.°
31/87, de 28JAN87 (publicado no DR, II série, de 9FEV87 e BMJ, 363-191), há-de
admitir-se que “essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em
certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa
mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial
dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido”.
E as normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não consagram, em
matéria de acesso à justiça, direitos e princípios que não estejam já contidos
nos art°s 13° e 20° da CRP (cfr. Acs do TC, n°s 163/90, 210/92, 346/92, 275/94,
403/94 e 739/98 e Carlos Lopes do Rego, Acesso ao Direito e aos Tribunais, in
Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, 1993, p. 83).
Em consequência, foi indeferida a reclamação.
2. A. e B. interpuseram recurso de constitucionalidade para apreciação da
conformidade à Constituição do nº 2 do artigo 670º do Código de Processo Civil.
Os recorrentes apresentaram alegações que concluíram do seguinte modo:
Deve ser julgada inconstitucional a interpretação do art. 670º, nº 2, do Código
de Processo Civil no sentido de não ser admissível recurso do despacho que, não
conhecendo do mérito do pedido de reforma quanto a custas nem apreciando os
respectivos fundamentos, se limita a não admitir esse pedido de reforma.
O Ministério Público contra‑alegou, concluindo o seguinte:
1 – A norma constante do n° 2 do artigo 670º do Código de Processo Civil, ao
prescrever a irrecorribilidade do despacho que indefere o requerimento de
reforma quanto a custas (nos mesmos termos em que tal regra vigora para a
rejeição dos demais incidentes pós-decisórios) não viola os artigos 13° e 20° da
Constituição da República Portuguesa.
2 – Na verdade, a específica irrecorribilidade da decisão proferida no âmbito de
tal incidente pós-decisório em nada preclude a interposição, nos termos gerais,
de recurso da decisão que originariamente condenou a parte em custas,
sedimentada e tornada definitiva com a rejeição do pedido de reforma – e
contando-se o prazo para interpor tal recurso da notificação da decisão
proferida sobre o requerimento de reforma, nos termos do artigo 686°, n° 1, do
Código de Processo Civil.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Por seu turno, o Banco C., SA, contra‑alegou, igualmente, concluindo o seguinte:
1. Pretendem, os remidores que este douto Tribunal declare a
inconstitucionalidade do n°. 2 do art°. 670º do C.P.Civil ao abrigo do qual lhes
foi indeferido o recurso do despacho que recaiu sobre o requerimento de reforma
de decisão que os condenou em custas.
2. Os remidores, sendo embora aqueles a quem a lei reconhece o direito de remir
os bens adjudicados ou vendidos, não tem o estatuto processual de parte.
3. Inconformados com a condenação em custas, relativamente ao despacho que não
atendeu a anulação da venda, requereram a rectificação, esclarecimentos e
reforma desse despacho quanto a custas, nos termos do art°. 669°. do C.P.Civil,
tendo tal pedido sido objecto do despacho de fls.
4. Desse despacho que se pronunciou sobre o requerimento de rectificação,
esclarecimentos e reforma quanto a custas formulado nos termos do art°. 669°. do
C.P.Civil, interpuseram os recorrentes recurso que não foi aceite com o
fundamento de que, conforme dispõe o n°. 2 do art°. 670°. do C.P.Civil, desses
despachos não cabe recurso.
5. O n°. 2 do art°. 670°. apenas veda o recurso autónomo do despacho que se
pronunciou sobre o requerimento de rectificação e esclarecimento, mas não
impedia que o vencido tivesse recorrido da decisão primitiva.
6. Se os recorrentes se conformaram com a decisão relevância a mesma transitou
em julgado [sic].
7. Como tem sido entendimento da doutrina e da Jurisprudência, a decisão que
desatenda o requerimento quanto à reforma não admite recurso autónomo.
Efectivamente, o Tribunal de recurso ao conhecer o recurso da decisão final,
pode anular a decisão do Tribunal, quanto a custas, quando repute excessiva essa
condenação.
8. A nossa lei processual não faculta às partes duas diferentes vias recurso
para o indeferimento do requerimento da reforma quanto a custas, motivo porque,
como se disse atrás entendemos que não é admissível o recurso autónomo, que
seria o agravo do despacho que lhe indefira esse requerimento.
9. Do despacho que indefira os pedidos de rectificação de erros materiais (art.
667, n. 1), de aclaração ou esclarecimento de obscuridade ou ambiguidade ou da
reforma da sentença quanto a custas (art. 669, n.s 1 e 2), também não cabe
recurso, na medida em que tal questão pode ser atendida no recurso da decisão
final que, no caso sub judice, seria o recurso do despacho que indeferiu a
anulação da venda.
10. E não se diga que estamos perante manifesta proibição de indefesa, “que
consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os
órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito, a
violação do direito à tutela efectiva, sob o ponto de vista da limitação do
direito, verificar‑se‑á, sobretudo, quando a não observância das normas
processuais ou de princípios gerais do processo acarreta a impossibilidade de o
particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos
para os seus interesses” (in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.
Ed., Coimbra, 1993, pp. 163 e 164 de Gomes Canotilho e Vital Moreira).
11. Nada disto acontece, por força da aplicação da norma em apreço, já que ela
pressupõe que previamente foi dada oportunidade processual aos recorrentes de
defender a sua pretensão, não os coloca numa situação de indefesa, porquanto não
houve inobservância de normas processuais ou de princípios gerais de processo,
que lhes acarretaria a impossibilidade de exercerem o seu direito de recurso,
daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses.
12. Aliás, os recorrentes nem sequer negam que aquela oportunidade de recurso
lhes foi dada, já que admitem que foram notificados da decisão primitiva e que
da mesma apenas requereram a sua reforma quanto a custas, sendo que o agravo que
interpuseram, e que foi recusado, foi do despacho que indeferiu a reforma da
decisão quanto a custas.
13. A interpretação dada à norma ínsita no n°. 2 do art°. 670º. do C.P.Civil,
pelo despacho em apreço, em nada colide com o princípio constitucional que
garante o acesso ao direito e aos Tribunais, já que no caso concreto não se
achavam os recorrentes privados de deduzir e defender os seus direitos que lhe
possam porventura assistir no recurso da decisão principal. O que esta norma
proíbe é o recurso autónomo.
Os demais recorridos não contra‑alegaram.
Os recorrentes apresentaram uma resposta às contra‑alegações que se encontra
apensa por linha.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
3. A norma que os recorrentes submeteram à apreciação do Tribunal
Constitucional tem a seguinte redacção: “do despacho que indeferir o
requerimento de rectificação, esclarecimento ou reforma, não cabe recurso”.
Os recorrentes insurgem‑se, assim, contra a norma que não permite “a
reapreciação de uma decisão que, relativamente a um único requerimento de
recurso não admitido, determina a condenação do requerente em 2 x 15 UCs = 30
UCs, isto é, € 2 670” (fls. 136).
Os recorrentes invocam erro de direito na aplicação da norma do artigo 670º, nº
2, do Código de Processo Civil, já que o despacho que recaiu sobre o pedido de
reforma quanto a custas não o indeferiu, tendo antes procedido à sua não
admissão.
Sublinhe‑se que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar a correcta
interpretação do direito infraconstitucional, apenas lhe cabendo apreciar a
conformidade à Constituição de normas aplicadas pela decisão recorrida. Deste
modo, um eventual erro de direito cometido pelo tribunal a quo é, no contexto do
presente recurso, inconsequente.
Os recorrentes invocam, por outro lado, o disposto no artigo 733º do Código de
Processo Civil, segundo o qual os sujeitos processuais podem agravar das
decisões de que não possa apelar‑se e que sejam susceptíveis de recurso.
Ora, tal preceito, de carácter genérico, não consubstancia argumento a favor da
pretensão dos recorrentes. Por um lado, trata‑se de uma norma de carácter
genérico. Por outro lado, a referida norma consagra a possibilidade de recurso
de agravo apenas nos casos em que a decisão admite recurso. No presente caso,
foi aplicada uma norma que consagra precisamente a irrecorribilidade de uma
categoria de decisões (a norma do artigo 670º, nº 2, do Código de Processo
Civil).
É essa norma que se deve apreciar na perspectiva da constitucionalidade.
4. Os recorrentes requereram, ao abrigo do artigo 669º, nº 1, alínea b), do
Código de Processo Civil, a reforma quanto a custas de uma decisão de não
admissão de dois recursos. Indeferido (ou não admitido) o pedido de reforma, os
recorrentes interpuseram recurso dessa decisão de não admissão, recurso que não
foi admitido, nos termos do artigo 670º, nº 2, do Código de Processo Civil. Será
tal norma inconstitucional?
Os recorrentes pretendiam ver apreciada em sede de recurso a decisão que os
condenou em custas. Ora, após o indeferimento (ou não admissão) do pedido de
reforma, os recorrentes podiam interpor recurso da própria decisão que os
condenou em custas, nos termos do artigo 688º do Código de Processo Civil. No
entanto, os recorrentes, em vez de utilizarem essa via impugnatória, optaram por
recorrer da decisão que não admitiu o pedido de reforma quanto a custas, contra
o disposto no artigo 670º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Verifica‑se, pois, que a não apreciação da decisão que condenou os recorrentes
em custas por uma instância em sede de recurso se deveu, não à aplicação de uma
norma inconstitucional, mas antes, fundamentalmente, a uma estratégia processual
que se traduziu em optar pela utilização de um mecanismo impugnatório legalmente
vedado, quando podia ser utilizado o recurso expressamente previsto: o recurso
da decisão que condenou em custas nos termos do artigo 688º do Código de
Processo Civil (era esta decisão que os recorrentes queriam ver apreciado).
Não se verifica, portanto, qualquer violação dos artigos 13º e 20º da
Constituição.
De resto, não deriva da argumentação dos recorrentes qualquer sentido preciso de
violação do princípio da igualdade e também não se compreende como poderia
ocorrer tal violação porque, como é óbvio, qualquer sujeito processual que se
encontre na situação dos recorrentes verá o caso decidido nos termos em que se
decidiu nos presentes autos.
5. Improcede, assim, o presente recurso.
III
Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do nº 2 do artigo 670º do Código de
Processo Civil;
b) Negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão
recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 27 de Junho de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos