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Processo n.º 157/06
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Por acórdão de 15 de Novembro de 2005, o Supremo Tribunal de
Justiça julgou inadmissível o recurso de revista que A., LDA pretendia interpor
a impugnar o acórdão de 25 de Janeiro de 2005 da Relação do Porto. No mesmo
acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu negar procedência à questão de
inconstitucionalidade normativa suscitada pela recorrente a propósito da
aplicação, ao caso, do disposto no n.º 2 do artigo 56º do Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), norma que
efectivamente veio a fundamentar o julgamento de inadmissibilidade do recurso.
Inconformada, A., LDA interpõe, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, mediante requerimento do seguinte teor:
A recorrente pretende que seja apreciada a constitucionalidade/
inconstitucionalidade do artigo 56º, n.º2 do D.L. 132/93 de 23/04/1993 (CPEREF),
face ao principio constitucional do Acesso ao Direito, aos Tribunais e à
Justiça, consignado no artigo 20.º da C.R.P.
A recorrente informa que a peça processual onde foi suscitada a
inconstitucionalidade do referido artigo 56°, nº 2 do D.L. 132/93, foi a
reclamação contra o indeferimento da admissibilidade do recurso, quando os autos
se encontravam no Tribunal de Relação do Porto e se pretendia que subissem ao
Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
2. O recurso foi, porém, decidido por decisão sumária proferida no
processo, com o seguinte fundamento:
Ora, antes mesmo de averiguar com rigor se se verificam, no caso, os requisitos
que habilitariam a recorrente a interpor o presente recurso, deve desde logo
reconhecer-se que a pretensão é manifestamente improcedente.
Na verdade, e conforme dá nota o acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional
tem mantido o entendimento, constante, de que a Constituição não impõe ao
legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes
graus de jurisdição para defesa dos seus direitos.
E, isto, apesar de se dever entender que, nesta área, o poder do legislador
ordinário não é ilimitado, por lhe ser imposta uma garantia contra violações
radicais do sistema de recursos instituídos, e uma garantia de que o acesso aos
sucessivos graus de jurisdição deve ser definido segundo critérios objectivos,
ancorados numa ideia de proporcionalidade (valor das causas, natureza das
questões), que respeitem o princípio da igualdade, tratando de forma igual o que
é idêntico.
Ora, o Tribunal também já fez notar que a instauração da acção e a consequente
fixação do respectivo valor constitui uma simples expectativa jurídica que não
investe o interessado no direito subjectivo ao recurso, pois o invocado direito
de acesso à justiça, extraído do citado artigo 20º da Constituição, visa apenas
estabelecer uma protecção contra normas que, de forma injustificada ou
surpreendente, queiram limitar essa faculdade. Deve, porém, aceitar-se que o
sistema de limitação de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça visa,
essencialmente, o descongestionamento daquele Tribunal superior, proporcionando
condições indispensáveis a que trabalhe com eficácia; não pode, por isso,
afirmar-se que o sistema seja desproporcionado relativamente à redução do âmbito
do direito de recurso que implica.
Enfim, impõe-se considerar que a norma impugnada, constante do artigo 56º, n.º2
do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93 de 23 de Abril, na parte em que restringe o
recurso da decisão de homologação, somente o admitindo para o tribunal da
relação, não ofende o principio constitucional do acesso ao direito, aos
tribunais e à justiça, consignado no artigo 20.º da Constituição, ou qualquer
outro.
Com este fundamento, nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, julga-se o
recurso improcedente.
3. É contra esta decisão que reclama a recorrente, nos seguintes
termos:
1) Salvo todo o imenso respeito - que é muito - a decisão sumária proferida pelo
Venerando Conselheiro Relator, terá ser revogada por outra que declare
inconstitucional, o artigo 56°, nº 2, do Decreto Lei 132/93, de 23 de Abril de
1993, por violação do Principio Constitucional do Acesso ao Direito, aos
Tribunais e à Justiça, consignado no artigo 20° da CRP, dando assim cumprimento
substancial ao Princípio em causa.
2) Creia Venerando Conselheiro que, não reclamaríamos da decisão proferida por
V. Exa., se entendêssemos que o artigo 56, n° 2 do CPEREF, fosse uma norma
jurídica conforme a Constituição.
3) Como julgamos - e pensamos que bem - que o referido dispositivo legal é
violador da Constituição e dos princípios nela consagrados, requeremos que o
mesmo não fosse aplicado e se admitisse, do Tribunal da Relação, recurso para o
Supremo Tribunal de Justiça, como se impõe.
Da inconstitucionalidade do art. 56° n.º 2 do C.P.E.R.E.F
4) Constitui princípio estruturante de todo o Direito Processual Civil português
que as questões de direito, deverão ser apreciadas e decididas, em última
instância, pelo Supremo Tribunal de Justiça.
5) Aliás, o dispositivo legal emanado do art. 729° do C.P.C., estatui que “aos
factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo aplica
definitivamente o regime jurídico que julgue adequado”.
6) As limitações à subida de recursos até ao S.T.J., decorrem da aplicação das
regras da alçada e da sucumbência, provinda do art. 678 do C.P.C..
7) E como bem diz o Venerando Conselheiro Re1ator, nós também reconhecemos 'que
o sistema de limitação de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça visa,
essencialmente, o descongestionamento daquele tribunal superior, proporcionando
condições indispensáveis a que trabalhe com eficácia' .
8) E conhecemos avultada jurisprudência do Tribunal Constitucional que,
uniformemente, vem entendendo que o art. 678° do C.P.C., não padece de qualquer
vício de inconstitucionalidade (cfr. entre outros, os Ac. n.º163/90 in Diário da
República, II Série, de 18 de Outubro de 1991, e Acórdão do Tribunal
Constitucional, 16° vol., pág. 301; o Acórdão n° 346/92 in Acórdãos do Tribunal
Constitucional 23° vol., pág. 451; e o Acórdão n° 377/96 in Diário da República,
II Série, de 12 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33°
vol., pág. 585.).
9) No entanto, julgamos nós que o caso, não é idêntico, ou sequer semelhante,
aquele que decorre da aplicação do art. 678º do CPC.
10) No caso 'sub iudice', trata-se de um processo de recuperação de uma empresa,
cujo valor da acção é substancialmente superior ao da alçada do Tribunal da
Relação;
11) Cuja deliberação obteve aprovação de uma larguíssima maioria na Assembleia
de credores;
12) Que foi homologada pela Juiz de 1ª Instância.
13) E, dessa decisão, recorreu para o Tribunal da Relação o credor 'MEIT' (um
credor apenas), fundando-se tão só em questões de direito, tendo logrado
conseguir revogar (em parte) a decisão da 1ª Instância.
14) Mas, não podemos olvidar que a última instância em questões de direito, é
competência exclusiva do Supremo Tribunal de Justiça, desde que o valor (ou
outras circunstâncias ) da causa o admita.
15) No caso dos autos, a recorrente/reclamante, pretende discutir questões de
direito no mais alto Tribunal da Nação.
16) O valor da acção permite esse anseio e essa pretensão.
17) No entanto, o art. 56° nº 2 do C.P.E.R.E.F., corta-lhe essa
possibilidade!...
18) Por isso, sustentamos que o referido artigo, padece de inconstitucionalidade
porque viola o art. 20° da C.R.P. e o principio daí adveniente do acesso à
Justiça.
19) E, no caso dos autos, a justiça em última instância só poderá ser feita pelo
Supremo Tribunal de Justiça.
20) A manter-se o entendimento que foi sufragado pelo Venerando Conselheiro
Relator, na sua decisão sumária - e julgamos que a mesma será revogada -
estar-se-ia a contribuir para a criação de uma jurisprudência 'menor', na medida
em que, no âmbito dos processos de recuperação de empresas, só se permitiria o
recurso até ao Tribunal da Relação.
21) E até entendemos a solução legislativa, na medida em que nos processos de
recuperação de empresas, a questão de facto é sobejamente mais relevante que a
questão de direito, tal como acontece nos processos de jurisdição voluntária.
22) E, no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, também existe limitação
de recurso sendo este admissível até ao Tribunal da Relação (cf. artigo 1411º,
nº 2 do CPC, o qual prescreve 'das resoluções proferidas segundo critérios de
conveniência ou oportunidade, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal
de Justiça').
23) Porém - a contrario sensu - das decisões de direito, o legislador admite
recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça no âmbito dos processos de jurisdição
voluntária.
24) É, portanto, este regime que a recorrente pretende que se aplique no caso em
apreço, por analogia, para consubstanciar o princípio constitucional em análise.
25) Isto é, no âmbito das questões de facto, compreende-se que a Instância de
recurso termine no Tribunal da Relação.
26) Contudo, no tocante às questões de direito, entende a recorrente que deverá
ter acesso até à mais alta Instância portuguesa, pois só a essa lhe é
reconhecido o poder de fixar jurisprudência.
27) No caso 'sub iudice', o objecto de recurso que a recorrente interpôs para o
Supremo Tribunal de Justiça, versa tão só sobre questões de direito e visa
aferir se a medida proposta pelo gestor judicial, aprovada em Assembleia de
Credores e homologada pela Juiz de 1ª Instancia, é ou não legal.
28) A vingar a decisão até agora proferida - e não vingará certamente - leva a
que uma questão de direito da máxima relevância jurídica, seja decidida em
última Instância pelo Tribunal da Relação, quando o valor da causa, em
circunstâncias normais, admitiria recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
29) A aceitarmos como bom o regime e legal ordinário - e não aceitamos - estamos
a permitir regimes contraditórios em situações análogas (contraditoriedade entre
o regime dos processos de jurisdição voluntária e os processos especiais de
recuperação de empresas e falências).
30) O regime de recurso nos processos de recuperação de empresas e falências
deverão ser tratados de igual forma aos processos de jurisdição voluntária
conforme estatui o artigo 1411, n.º 2 do CPC, pois só assim teremos um regime de
recurso justo e que proteja o descongestionamento do Supremo Tribunal de
Justiça, conforme defende o Venerando Conselheiro.
Fundamento da inconstitucionalidade
31) Dispõe o art. 20° da C.R.P. que 'a todos é assegurado o acesso ao direito e
aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos,
não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
32) Neste dispositivo constitucional está aflorado, e consagrado, o princípio do
acesso ao direito, aos tribunais e à justiça.
33) O acesso à justiça não se materializa apenas com a tutela jurisdicional
junto dos tribunais.
34) Aceder à justiça é a possibilidade de - no plano jurídico - permitir a
obtenção de uma decisão da mais alta instância portuguesa - o S.T.J.
35) A aplicação do art. 56° nº 2 do C.P.E.R.E.F., segundo o qual 'a homologação
depende apenas da observância das normas legais aplicáveis, dela cabendo recurso
somente para o tribunal da relação', leva a que a jurisprudência neste tipo de
processos se enfatize através dos Tribunais de Relação.
36) Sem qualquer menosprezo pelos Tribunais de Relação, salientamos que apenas a
jurisprudência emanada do Supremo, vale como precedente - por vezes, muito perto
da vinculatividade - no âmbito do julgamento do aspecto jurídico da causa.
37) Verdadeiramente, no caso dos autos, uma questão jurídica tão complexa, só
foi apreciada e decidida, com profundidade no Tribunal da Relação.
38) Não podemos olvidar que a decisão do juiz de 1ª instância foi apenas uma
decisão homologatória.
39) Na 1ª instância, o juiz da causa não efectuou um verdadeiro juízo
jurisdicional, sobre o caso.
40) Assim sendo, este caso necessita de ser reapreciado, para se materializar a
justiça que é princípio constitucional.
41) Esta questão jurídica, deveras complexa, merece subir até ao Supremo para aí
se decidir, definitivamente, a questão conforme de direito.
42) Só o recurso para o S.T.J. poderá, no caso dos autos, concretizar o acesso
ao direito, aos tribunais e à justiça, consagrado no art. 20° da C.R.P..
Termos em que requer a Vossas Excelências se dignem acolher os fundamentos da
reclamação agora interposta, e por via disso, ordenem a revogação da decisão
sumária proferida pelo Venerando Conselheiro relator, por outra que reconheça a
admissibilidade do recurso para o STJ, pois só assim se concretiza a almejada…
JUSTIÇA (Constitutional)!...
4. Vejamos:
Pretende a recorrente ter acesso, por via de recurso, ao Supremo Tribunal de
Justiça, para impugnar o acórdão de 25 de Janeiro de 2005 da Relação do Porto,
que lhe foi adverso. A pretensão foi negada por acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça que afastou a questão de inconstitucionalidade normativa suscitada pela
recorrente a propósito da aplicação, ao caso, do disposto no n.º 2 do artigo 56º
do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência
(CPEREF), norma que efectivamente veio a fundamentar o julgamento de
inadmissibilidade do recurso.
A decisão sumária proferida fundamentou-se na jurisprudência deste Tribunal,
posição que tem constantemente adoptado no sentido de que a Constituição não
impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a
diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos.
A recorrente, ora reclamante, mostra-se ainda inconformada, conforme resulta da
reclamação acima transcrita.
Ora, tal como se afirma no acórdão recorrido, a recorrente radica a sua
pretensão em princípio que a Constituição não acolhe.
Na verdade, em vão se procurará na Constituição qualquer regra que consagre o
invocado 'princípio estruturante de todo o Direito Processual Civil português',
segundo o qual 'as questões de direito, deverão ser apreciadas e decididas, em
última instância, pelo Supremo Tribunal de Justiça', conforme alega a
recorrente. Por isso, o legislador ordinário não está impedido de reservar ou
limitar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, impondo-se, apenas, que – como
se disse na decisão sumária – não provoque violações radicais do sistema de
recursos instituídos, e garanta que o acesso aos sucessivos graus de jurisdição
seja definido segundo critérios objectivos, ancorados numa ideia de
proporcionalidade (valor das causas, natureza das questões), que respeitem o
princípio da igualdade, tratando de forma igual o que é idêntico.
No domínio da matéria de que tratam os autos, o legislador procurou
deliberadamente construir um sistema processual específico que afastou do
regime-regra tipificado no Código de Processo Civil, e estabeleceu, conforme se
assinala no preâmbulo do diploma que aprovou o Código, significativas alterações
em matéria de recursos das decisões judiciais proferidas ao longo da acção,
centradas, acima de tudo, na ideia de celeridade processual e de limitação do
recurso [característica que, aliás, se acentuou no código aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março]. Sem negar a possibilidade, de nestes
processos, se descortinarem relevantíssimas questões de natureza jurídica, o
certo é que o seu fim específico consiste na avaliação, por meio de critérios
estritamente económicos, da viabilidade económica da empresa.
Conforme diz o legislador no aludido preâmbulo,
[...] Se a expectativa de recuperação financeira da devedora claudica, cessa
toda a legitimidade dos sacrifícios impostos, em nome da solidariedade nacional,
às múltiplas entidades suas credoras.
Os programas de recuperação económica da empresa insolvente não são planos de
caridade evangélica aplicados aos que dela dependem, porque não é nessa vertente
da vida social que a caridade encontra o seu lugar próprio. Só a real
viabilidade económica da empresa em dificuldade pode legitimar, sobretudo numa
economia de mercado como a que hoje vigora no espaço comunitário europeu, o
cerceamento da reacção legal daqueles cujos direitos foram violados.
Esta imperiosa necessidade de distinguir, a propósito de cada empresa cuja
insolvência seja reconhecida em juízo, entre as que podem e as que não podem, na
prática, ser consideradas economicamente viáveis, obrigou o legislador a
aproximar o processo especial de falência, onde fatalmente hão-de cair as
devedoras que nenhuma expectativa séria de salvação oferecem aos seus credores.
E, além da aproximação entre os dois processos especiais, estreitamente ligados
entre si pela função capital de cada um deles, sentiu-se ainda a necessidade de
rever alguns dos pontos mais importantes do actual processo de falência, à luz
das realidades da política económica comunitária.
Esses são, de facto, os dois objectivos fundamentais do diploma legislativo no
qual se consagra a nova disciplina dos dois processos especiais estreitamente
ligados entre si.[...]
Face a estes objectivos, a regra questionada não se figura desajustada nem
proibida pela Constituição. Note-se, aliás, para responder a argumento agora
adiantado pela reclamante, que a actual redacção do n.º 2 do artigo 1411º do
Código de Processo Civil se limita a submeter os processos de jurisdição
voluntária à regra da generalidade dos recursos, pelo que nem se justifica uma
especial consideração do respectivo regime na solução da questão que nos ocupa.
É, assim, improcedente a argumentação exposta pela reclamante.
Decide-se, por isso, indeferir a reclamação, mantendo a decisão sumária que
negou provimento ao recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos