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Processo n.º 1006/05
Plenário
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. O Provedor de Justiça, no uso da competência
prevista no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República
Portuguesa (CRP), requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e declaração
de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, “das normas constantes
do artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto da Aposentação, aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro, na medida em que não permitem a
contagem da integralidade do tempo de serviço prestado, na situação em que o
aposentado opta pela segunda aposentação, por violação do princípio do
aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador, consagrado
no artigo 63.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa”.
O artigo 80.º do Estatuto da Aposentação, na
sua versão originária, dispunha, sob a epígrafe Nova aposentação, o seguinte:
“1 – Se o aposentado, quer pelas províncias ultramarinas, quer
pela Caixa, tiver direito de inscrição nesta última pelo novo cargo que lhe seja
permitido exercer, poderá optar pela aposentação correspondente a esse cargo e
ao tempo de serviço que nele prestar, salvo nos casos em que lei especial
permita a acumulação das pensões.
2 – Não será de considerar para cômputo da nova pensão o tempo
de serviço anterior à primeira aposentação.”
O artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 30‑C/92, de 28
de Dezembro (Orçamento do Estado para 1993), alterou a epígrafe do referido
artigo 80.º (Nova aposentação e revisão da pensão), manteve inalterados os n.ºs
1 e 2, e aditou os n.ºs 3 e 4, do seguinte teor:
“3 – Nos casos em que o aposentado opte por manter a primeira
aposentação, haverá lugar à divisão da pensão respectiva, a qual só pode ser
requerida depois da cessação de funções a título definitivo e é devida a partir
do dia 1 do mês imediato ao da apresentação do pedido.
4 – O montante da pensão a que se refere o número anterior é
igual à pensão auferida à data do requerimento multiplicada pelo factor
resultante da divisão de todo o tempo de serviço prestado, até ao limite máximo
de 36 anos, pelo tempo de serviço contado no cálculo da pensão inicial.”
2. Para fundamentar o pedido, o Provedor de
Justiça apresenta os seguintes argumentos:
– nos termos do regime que globalmente resulta
do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação, e salvo nos casos em que lei especial
permite a acumulação de pensões, o aposentado deverá, desde logo, e antes de
mais, optar entre manter a primeira aposentação ou requerer a segunda
aposentação, neste caso optando por esta última, e prescindindo da primeira;
– se o aposentado optar por manter a primeira
aposentação, será então revista a pensão que vinha auferindo até aí, isto é, até
à data da apresentação do pedido de revisão da pensão que já recebia, nos termos
e através da aplicação da fórmula acolhida nos n.ºs 3 e 4 do artigo 80.º do
Estatuto;
– a opção pela primeira aposentação e,
consequentemente, pela percepção da correspondente pensão, já revista por
aplicação da fórmula referida no n.º 4 do artigo 80.º do Estatuto,
proporcionará, em princípio, a contabilização de todo o tempo de serviço – em
moldes de alguma forma discutíveis, matéria em que não se entrará nesta sede –
prestado pelo aposentado, quer no âmbito das funções que levaram à primeira
aposentação, quer no que toca ao exercício das funções posteriores à primeira
aposentação, até à data da cessação de funções a título definitivo;
– o mesmo já não sucederá se o aposentado optar
pela segunda aposentação, já que, neste caso, resulta claro da lei que só
relevará, para o cálculo da pensão a receber, o tempo de serviço prestado no
exercício deste segundo cargo ou destas segundas funções;
– se o aposentado optar pela segunda
aposentação, terá de prescindir da primeira – e da pensão que auferia a esse
título –, sendo que, para cálculo da pensão a receber por via da segunda
aposentação, não releva o tempo – qualquer que ele seja, pouco ou muito
significativo – de serviço prestado antes do exercício das funções que
propiciaram a segunda aposentação.
O Provedor de Justiça tece, depois, algumas
considerações sobre o alcance do n.º 2 do artigo 80.º do Estatuto da
Aposentação, referindo, nomeadamente, uma Recomendação (de que juntou cópia)
que o seu antecessor naquele cargo dirigira ao Governo em 23 de Maio de 2000,
aduzindo a este propósito:
“Precisamente na medida em que a Caixa Geral de Aposentações,
na aplicação do normativo [o n.º 2 do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação]
às situações concretas, seguiria uma interpretação literal da norma, com isso
alcançando‑se situações absurdas que decerto não terão estado na mente do
legislador, dirigiu o meu antecessor, com data de 23 de Maio de 2000, ao
Governo, uma Recomendação (com o nº 15/B/2000), no sentido de, por via
interpretativa ou, se caso fosse, através de alteração da lei, apenas não poder
ser contado para efeitos da segunda aposentação o tempo de serviço prestado
anteriormente à primeira e que relevou para o respectivo cálculo.
No documento em causa, de que se junta cópia, recomendou‑se
igualmente a adopção de medidas tendo em vista a alteração do normativo em
causa, no sentido de se prever um regime excepcional para as situações dos
pensionistas ao abrigo do disposto no Decreto‑Lei n.º 362/78, de 28 de Novembro,
e dos pensionistas de invalidez que conseguiram, posteriormente, reabilitar‑se e
ingressar novamente na função pública. Tal recomendação nunca viria a ser
acatada pelo então Governo, nem pelos que lhe sucederam.
No entanto, e através de Despacho com data de 26 de Junho de
2003, cujo teor me foi dado a conhecer por comunicação de 27 de Junho de 2003, o
então Secretário de Estado do Orçamento viria a acatar a Recomendação, apenas
na parte respeitante à interpretação a conferir ao n.º 2 do artigo 80.º do
Estatuto, nos seguintes termos: «No que respeita à interpretação do n.º 2 do
artigo 80.º do Estatuto da Aposentação, no sentido de apenas não poder ser
contado para efeitos de segunda aposentação o tempo de serviço prestado
anteriormente à primeira e que relevou para o respectivo cálculo, é meu
entendimento o de que, de facto, sem prejuízo da correcção jurídica e possível
defesa da interpretação que tem vindo a ser seguida pela Caixa Geral de
Aposentações, uma interpretação mais conforme à Constituição aponta para que se
adopte a recomendação do Senhor Provedor de Justiça. Assim, e uma vez que tal
interpretação cabe na letra do referido artigo 80.º, n.º 2, entendo que
doravante, nas situações ainda não consolidadas na ordem jurídica, poderá passar
a ser seguida, sem necessidade de qualquer alteração legislativa».
Ao que foi possível apurar, tal orientação estará a ser
seguida, na prática, pela Caixa Geral de Aposentações.”
Em seguida, o requerente discorre sobre o
sentido da norma do artigo 63.º, n.º 4, da CRP, considerando que “o referido
preceito constitucional, embora remetendo para a lei o cálculo das pensões de
velhice e invalidez, desde logo determina e impõe que, para esse cálculo, seja
contabilizado todo o tempo de trabalho, mesmo que prestado em diferentes
regimes”.
Após proceder a citações de doutrina e de
jurisprudência (o Acórdão n.º 1016/96), o Provedor de Justiça sustenta que “[É]
manifesto que as normas contidas no artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto da
Aposentação, acima transcritas, na situação concreta em que o aposentado opta
pela segunda aposentação – se optar pela primeira aposentação, a revisão da
pensão permite, na prática, à partida, a contagem de todo o tempo de serviço –,
não possibilitam que seja contabilizado, para efeitos de atribuição de uma
pensão de aposentação, todo o tempo de serviço prestado pelo trabalhador, até ao
limite de 36 anos, ao arrepio do que se encontra estabelecido na acima
identificada norma da Lei Fundamental”.
E, depois de citar também o Acórdão n.º 411/99
deste Tribunal, o requerente termina do seguinte modo:
“(...) não pode deixar de concluir‑se que a não contagem da
integralidade do tempo de serviço na situação em que o aposentado opta pela
segunda aposentação, que resulta inequívoca dos n.ºs 1 e 2 do artigo 80.º do
Estatuto da Aposentação, reforçada pela sua conjugação com os n.ºs 3 e 4 do
mesmo normativo, é claramente violadora do mencionado artigo 63.º, n.º 4, da
Constituição, na medida em que contraria o princípio do aproveitamento total do
tempo de serviço prestado pelo trabalhador, consagrado naquela disposição
constitucional.”
3. Notificado para responder, querendo, sobre o
presente pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade, nos termos dos
artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), o
Primeiro‑Ministro ofereceu o merecimento dos autos e solicitou que, caso o
Tribunal se pronuncie pela inconstitucionalidade, utilize a faculdade de
limitação dos seus efeitos “apenas a partir do momento da declaração dessa
inconstitucionalidade, atendendo a que a atribuição de outros efeitos
produziria insegurança jurídica, poria em causa a equidade no tratamento dos
destinatários das normas e o interesse público relacionado com os encargos do
pagamento das pensões, já que o regime actualmente em vigor permite a opção de
regimes por parte dos particulares”.
4. Debatido o memorando apresentado, nos termos
do artigo 63.º da LTC, pelo Vice‑Presidente do Tribunal, por delegação do
Presidente, ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 2, da mesma Lei, e fixada
a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, procedeu‑se à
distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II – Fundamentação
5. Da fundamentação do requerimento do Provedor
de Justiça e, designadamente, dos respectivos intróito e pedido final, resulta
que constitui seu objecto a apreciação da constitucionalidade das normas
constantes quer do n.º 1 (que concede ao trabalhador o direito de optar pela
“segunda aposentação”), quer do n.º 2 (que determina que, nesse caso, não será
de considerar para cômputo da nova pensão o tempo de serviço anterior à primeira
aposentação) do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação, embora conjugadas entre
si.
Assim, objecto do presente pedido de
declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade é a norma,
reportada aos n.ºs 1 e 2 do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação, segundo a
qual, quando o aposentado, que tenha voltado a exercer funções públicas, findo
este novo período, opte pela aposentação correspondente ao mesmo período, não é
de considerar, para cômputo da nova pensão, o tempo de serviço anterior à
primeira aposentação.
6. Aos aposentados é, em regra, proibido o
exercício de funções públicas ou a prestação de trabalho remunerado, ainda que
em regime de contrato de tarefa ou de avença, em quaisquer serviços do Estado,
pessoas colectivas públicas ou empresas públicas (artigo 78.º, n.º 1, do
Estatuto da Aposentação, alterado, por último, pelo Decreto‑Lei n.º 179/2005, de
2 de Novembro). A essa regra excepcionavam‑se e excepcionam‑se: (i) na redacção
originária do preceito: o exercício de funções “em regime de mera prestação de
serviços, nas condições previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º, e nos
demais casos permitidos por lei, quer directamente, quer mediante autorização do
Conselho de Ministros”; (ii) na redacção do Decreto‑Lei n.º 215/87, de 19 de
Maio: “a) Quando exerçam funções em regime de prestação de serviços nas
condições previstas na alínea a) do n.º 2 do artigo 1.º; b) Quando haja lei que
o permite; c) Quando, sob proposta do membro do Governo que tenha poder
hierárquico ou tutela sob a entidade onde prestará o seu trabalho o aposentado
ou reservista, o Primeiro‑Ministro, por despacho, o autorize, constando no
despacho o regime jurídico a que ficará sujeito e a remuneração atribuída”; e
(iii) na redacção actual: “a) Quando haja lei que o permita; b) Quando, por
razões de interesse público excepcional, o Primeiro‑Ministro expressamente o
decida, nos termos dos números seguintes”.
Quando ocorram os casos excepcionais em que o
exercício de funções por aposentados é admissível, colocam‑se os problemas de
determinar: (i) o modo de remuneração desse exercício, enquanto o mesmo
perdurar; e (ii) a repercussão desse segundo período de exercício de funções em
sede de pensão de aposentação.
A primeira questão é regulada pelo subsequente
artigo 79.º, que dispõe que aos aposentados a quem seja permitido desempenhar
outras funções públicas é mantida a pensão de aposentação e: (i) “abonada uma
terça parte da remuneração que competir a essas funções, salvo se lei especial
determinar ou o Conselho de Ministros autorizar abono superior, até ao limite da
mesma remuneração” (redacção originária); (ii) “abonada uma terça parte da
remuneração que competir a essas funções, salvo se o Primeiro‑Ministro, sob
proposta do membro do Governo que tenha o poder hierárquico ou de tutela sobre a
entidade em que prestará o seu trabalho o aposentado ou reservista, autorizar
montante superior, até ao limite da mesma remuneração” (redacção do Decreto‑Lei
n.º 215/87); (iii) “abonada uma terça parte da remuneração base que competir
àquelas funções ou trabalho, ou, quando lhes seja mais favorável, mantida esta
remuneração, acrescida de uma terça parte da pensão ou remuneração na reserva
que lhes seja devida” (redacção do Decreto‑Lei n.º 179/2005). Relativamente ao
preceituado neste artigo 79.º, o Tribunal Constitucional já emitiu duas
decisões: pelo Acórdão n.º 386/91 foi essa norma julgada inconstitucional por
violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição (versão emergente
da revisão de 1989), “mas somente na medida em que permite que o montante da
pensão de reforma percebida por um aposentado, somado ao abono de uma terça
parte da remuneração que competir ao permitido desempenho de outras funções
públicas por parte do mesmo aposentado, seja inferior ao quantitativo de tal
remuneração”; e pelo Acórdão n.º 258/2002 não foi julgado inconstitucional “o
segmento normativo do artigo 79.º do Decreto‑Lei n.º 498/72, de 9 de Dezembro,
que – consentindo embora a redução da remuneração global devida a um aposentado
que for autorizado a exercer outra função pública –, garanta ao aposentado a
percepção do quantitativo que competir a essa função pública”.
À segunda questão enunciada respeita o artigo
80.º do Estatuto da Aposentação, cujos n.ºs 1 e 2 (que mantêm inalterada a
redacção originária) são questionados pelo presente pedido de declaração de
inconstitucionalidade, preceito a que a Lei n.º 30‑C/92 aditou os n.ºs 3 e 4,
como logo de início se referiu.
O regime configurado na redacção actual do
artigo 80.º do Estatuto da Aposentação aplica-se de acordo com os seguintes
parâmetros:
1) do ponto de vista do âmbito pessoal de
aplicação, aos aposentados que: (i) voluntariamente venham a exercer um novo
cargo; (ii) tiverem, pelo exercício desse novo cargo, direito de inscrição na
Caixa;
2) do ponto de vista do funcionamento do
mecanismo de aposentação nele definido, prevê‑se, como regime‑regra (“salvo nos
casos em que a lei especial permita a acumulação das pensões”), que o
aposentado: (i) opte pela aposentação que já possuía; (ii) opte pela aposentação
correspondente ao novo cargo e ao tempo de serviço nele prestado;
3) a opção pela aposentação correspondente ao
“primeiro ciclo” de vida laboral, isto é, pela “primeira aposentação”, implica
a revisão da pensão [embora o texto do n.º 3 mencione “divisão da pensão”, do
contexto e da nova epígrafe resulta que o que está em causa é a revisão da
pensão] que a esta corresponde, nos termos e através da aplicação da fórmula
acolhida nos n.ºs 3 e 4 do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação;
4) a opção pela aposentação correspondente ao
“segundo ciclo” de vida laboral, isto é, pela “segunda aposentação”, implica
que, no cômputo da nova pensão, não seja considerado o tempo de serviço
anterior à primeira aposentação, nos termos do n.º 2 do artigo 80.º do Estatuto
da Aposentação.
Em suma, enquanto, na redacção originária do
preceito, cingido aos seus n.ºs 1 e 2, se dispunha, de acordo com o princípio da
impossibilidade de cumulação de pensões, que, findo o novo período de exercício
de funções por aposentado, este tinha de optar entre uma das duas pensões (pela
correspondente ao primeiro período de actividade, sem qualquer revisão que
atendesse ao segundo período de actividade; ou pela correspondente ao segundo
período de actividade, sem que para o cálculo desta fosse de considerar o tempo
de serviço anterior à primeira aposentação), já o aditamento, pela Lei n.º
30‑C/92, dos n.ºs 3 e 4, veio alterar substancialmente a situação, determinando
que, quando o aposentado optasse por manter a primeira aposentação, havia lugar
à revisão dessa pensão, ao contrário do que sucedia anteriormente.
Nos termos do n.º 4, o montante da (primeira)
pensão “revista” será igual à pensão auferida à data do respectivo requerimento
“multiplicada pelo factor resultante da divisão de todo o tempo de serviço
prestado, até ao limite máximo de 36 anos, pelo tempo de serviço contado no
cálculo da pensão inicial”.
7. O parâmetro constitucional invocado pelo
requerente centra‑se no actual n.º 4 do artigo 63.º da CRP: “Todo o tempo de
trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e
invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido
prestado”. Esta regra foi introduzida na revisão constitucional de 1989, como
n.º 5 do artigo 63.º da CRP, tendo transitado para o n.º 4 pela revisão
constitucional de 1997.
Este Tribunal já teve oportunidade de se
pronunciar sobre o sentido e alcance desta prescrição constitucional.
Fê‑lo, primeiro, de modo incidental, no Acórdão
n.º 1016/96, onde, apesar de não ter tomado conhecimento do objecto do recurso,
em que estava em causa uma pretensa recusa de aplicação, com fundamento em
inconstitucionalidade, da norma do artigo 80.º, n.º 1, do Estatuto da
Aposentação, teceu algumas considerações sobre o sentido do então n.º 5 do
artigo 63.º da CRP, que interessa reter: “é uma norma portadora de um sentido
inovador (que naturalmente não teria se se limitasse a remeter para a lei),
consubstanciado no aproveitamento integral do tempo de trabalho para efeitos de
pensões de velhice e invalidez, o que implica o direito de acumulação dos tempos
de trabalho que tenham sido prestados, mesmo que em regimes distintos,
respeitado que seja o limite máximo de 36 anos”.
Por outro lado, no Acórdão n.º 411/99, o
Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 80.º
do Estatuto da Aposentação, desenvolvendo para o efeito uma argumentação que
começou por analisar a génese e o alcance da norma constitucional do artigo
63.º, n.º 4, da CRP:
“A aprovação da referida norma constitucional foi fruto de uma
proposta do Partido Socialista, no âmbito da revisão constitucional de 1989, a
qual gerou grande controvérsia. Justificando a alteração proposta, afirmou um
Deputado socialista que «a ponte que hoje falta entre os vários sectores de
actividade deve ser lançada no sentido de todo o tempo de trabalho contribuir –
nos termos da lei – para o cômputo das pensões de aposentação ou reforma. Não
vemos razão para que um tipo de trabalho seja, neste domínio, sobrevalorizado
em relação a outro» (Diário da Assembleia da República, II Série, n.º 23‑RC, de
7 de Julho de 1988, pág. 654).
Um outro Deputado do grupo parlamentar socialista pronunciou‑se
no sentido de «dever ser evidente que uma norma deste tipo não implica
homogeneidades lesivas, por exemplo, dos trabalhadores da função pública que
têm regime próprio. Esta norma é uma norma de máximo aproveitamento – aquilo a
que se poderia chamar em bom rigor uma norma de economia de tempos, mas não uma
norma que impulsione ou vincule a homogeneidade de regimes, designadamente
homogeneidade lesiva da situação específica dos trabalhadores da função
pública».
Afirmou‑se ainda na discussão parlamentar que a Constituição
passaria a admitir, após a alteração, uma intercomunicabilidade de regimes de
aposentação (entre a função pública e o sector privado). «A questão é que [a
intercomunicabilidade] faz‑se em termos que permitem manter a identidade de
dois regimes; os regimes são diferentes, pode‑se transitar de um regime para o
outro, há aproveitamento integral do tempo de serviço prestado e, digamos, dos
tempos não só de trabalho como dos tempos equivalentes que tenham sido vividos
num regime e noutro. Não há perda de tempo, por assim dizer, é essa a
preocupação fundamental. Daqui não deve emanar nenhuma preocupação de
homogeneidade de regimes, isto é, de unificação, por esta razão, de regimes. Mas
é preciso deixar isso claro.» (Diário da Assembleia da República, II Série, n.º
81-RC, de 9 de Março de 1989, pág. 2388).
A alteração constitucional de 1989 pretendeu, assim, promover
um aproveitamento total do tempo de serviço prestado pelo trabalhador,
independentemente do sistema de segurança social a que ele tenha aderido, e
desde que tenha efectuado os descontos legalmente previstos.
É ainda hoje essa a intenção, que se encontra claramente
manifestada no n.º 4 do artigo 63.º da Constituição (versão de 1997): «Todo o
tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de
velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido
prestado.»”.
Em seguida, o Tribunal averiguou se a remissão
para a lei, operada pelo n.º 4 do artigo 63.º da CRP, conferia ao legislador
credencial para introduzir restrições ao princípio do aproveitamento total do
tempo de trabalho para efeitos de cálculo das pensões de velhice e de invalidez:
“Quando o texto constitucional remete para «os termos da lei»,
fá‑lo para efeitos de concretização do direito, não a título de cláusula
habilitativa de restrições. A utilização da expressão «todo o tempo de
trabalho...», em conjugação com o segmento «independentemente do sector de
actividade em que tiver sido prestado», impõe, nesta matéria, a obrigação, para
o legislador ordinário, de prever a contagem integral do tempo de serviço
prestado pelo trabalhador, sem restrições que afectem o núcleo essencial do
direito.
Como o direito à contagem do tempo de serviço para efeitos de
aposentação tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias,
aplica‑se‑lhe o regime destes – constante do artigo 18.º da Constituição da
República Portuguesa –, por força da extensão operada pelo artigo 17.º da
Constituição.
A admitir‑se a solução propugnada pela recorrente, a norma
constitucional ficaria esvaziada no seu sentido e o direito à contagem de todo
o tempo de serviço seria afectado no seu núcleo essencial. Tal consequência está
vedada pelo n.º 3 do artigo 18.º da Lei Fundamental.
Se a lei fraccionar o tempo de trabalho para efeitos de
aposentação – assim eliminando uma parte do tempo de trabalho prestado –, já não
será todo o tempo de trabalho a contribuir para o cálculo das pensões, mas
apenas uma parte dele.
Tal solução implicaria interpretar a Constituição de acordo com
a lei e não interpretar a lei de acordo com a Constituição, como se impõe.”
Também a doutrina tem assinalado que, com a
introdução do preceito constitucional em causa, se “pretende salientar o
princípio do aproveitamento total do tempo de trabalho para efeitos de pensões
de velhice e invalidez, acumulando‑se os tempos de trabalho prestados em várias
actividades e respectivos descontos para os diversos organismos da segurança
social” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, 1993, p. 340).
Em anotação às alterações introduzidas pela
revisão constitucional de 1989, José Magalhães (Dicionário da Revisão
Constitucional, Mem Martins, 1989, p. 103) assinala, quanto ao n.º 5 do artigo
63.º, que: “Inovadoramente, veio estabelecer-se que «todo o tempo de trabalho
contribuirá, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e
invalidez, independentemente do sector de actividade em que tiver sido prestado»
(n.º 5). A consagração desta regra tem importantíssimas consequências: a) o
regime previsto é aplicável qualquer que seja o vínculo laboral ou o sistema
contributivo; b) embora se aluda a «todo o tempo de trabalho», o cálculo das
pensões deve, como é próprio do direito à segurança social, abranger não apenas
os períodos de actividade laboral em sentido estrito mas também os períodos
equivalentes, em que, não tendo sido prestado trabalho, tenha havido
contribuição ou a mesma seja, por lei, dispensável (v. g., desemprego, salários
em atraso); c) a nova norma implica uma tal articulação entre os diversos
sistemas de protecção social que faculte aos interessados pensões unificadas ou
a cumulação de todos os regimes (somando benefícios emergentes do regime geral
com prestações dos outros regimes: da função pública, dos regimes especiais
aplicáveis a certos grupos de trabalhadores, bem como aos profissionais
inscritos em regime de seguro social voluntário); d) não decorre da nova
disposição constitucional a obrigação da instituição de um sistema único
contributivo, nem de integração dos sistemas de protecção (cuja necessidade de
harmonização flui, porém, já da Constituição); e) a garantia instituída implica
que o valor das pensões unificadas nunca possa ser inferior ao da soma das
pensões a que o beneficiário teria direito em cada um dos regimes a que
pertenceu, nem pode prejudicar o direito de acumulação com pensões de natureza
distinta (v. g., por doenças profissionais ou acidentes de trabalho), com
carácter complementar (v. g., complemento de cônjuge, subsídio de grande
inválido) ou resultantes da inscrição em esquemas complementares geridos por
associações de socorros mútuos, empresas seguradoras, fundos de pensões ou
outras entidades; f) a lei deve assegurar que o cálculo abranja todo o tempo de
trabalho, quer tenha sido prestado sucessivamente, quer simultaneamente em
regimes distintos; g) refere-se «o cálculo» das pensões e não o cômputo a que
aludia o acordo PSD/PS».
8. Delineado o regime legal pertinente (supra,
n.º 6) e enunciado o parâmetro constitucional relevante (supra, n.º 7), segue‑se
apurar se as normas impugnadas violam o n.º 4 do artigo 63.º da CRP.
O sistema que resulta da conjugação das normas
dos n.ºs 1 e 2 do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação implica que o
trabalhador que opte por uma “segunda aposentação” veja, no cálculo da
respectiva pensão, ser eliminada uma parcela do tempo de serviço prestado.
Existe, neste caso, um afastamento em relação à ideia de um aproveitamento
integral do tempo de serviço para efeitos de cálculo do montante da pensão,
quando se refira essa integralidade ao somatório aritmético dos dois ciclos de
vida laboral.
A questão que se coloca neste processo de
fiscalização abstracta consiste em saber se essa opção pela “segunda
aposentação”, no quadro das (duas) alternativas que emergem do artigo 80.º do
Estatuto da Aposentação, considerado este no seu conjunto, significa que a
escolha por parte do interessado dessa “segunda aposentação” se traduz num
frustrar do princípio subjacente ao n.º 4 do artigo 63.º da CRP. A considerar‑se
que não – a considerar‑se que, nesse quadro, tal opção pela “segunda
aposentação” não frustra os objectivos dessa disposição constitucional –, à
ideia de que se não está em tal hipótese a aproveitar a integralidade (a soma
aritmética) do tempo de serviço correspondente aos dois ciclos laborais não se
segue, como consequência, um juízo de desconformidade constitucional
relativamente a essa alternativa fornecida pelo artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do
Estatuto da Aposentação. Tudo depende do sentido que, interpretativamente, se
fixar à norma constitucional, sendo certo que é através da interpretação que se
estabelece a “mensagem normativa” relevante para alcançar o sentido do texto:
“Todo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das
pensões de velhice e invalidez, independentemente do sector de actividade em que
tiver sido prestado” (artigo 63.º, n.º 4, da CRP). É nesta indagação de um
sentido (normativo) que se encerra o significado profundo da interpretação
jurídica, enquanto “actividade racional que confere significado a um texto legal
(ou) actividade intelectual respeitante à determinação da mensagem normativa
contida num texto” (Aharon Barak, Purposive Interpretation in Law, Princeton,
2005, p. 3), e é esta determinação interpretativa de qual o sentido do texto que
incumbe a este Tribunal, enquanto órgão superior da justiça constitucional.
Ora, a este respeito – e adianta‑se a conclusão
que será seguidamente explicitada –, entende‑se que o sentido do artigo 63.º,
n.º 4, da CRP não é o de inviabilizar a possibilidade de uma opção voluntária
do aposentado por um cálculo mais vantajoso do montante da pensão, quando esta
escolha foi exercida num quadro legal que comportava, alternativamente, a
possibilidade de se optar por uma outra forma de cálculo (o da pensão fixada
nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação) que
permitia a consideração de todo o tempo de trabalho prestado. E – note‑se – que,
atento o momento em que é exercida (não antecipadamente, mas apenas após o
vencimento das duas “pensões” possíveis), nenhuma dúvida de constitucionalidade
suscita o reconhecimento da disponibilidade, pelo respectivo titular, de
qualquer uma das pensões.
Na verdade, o princípio do aproveitamento
integral do tempo de trabalho, consagrado no artigo 63.º, n.º 4, da CRP, não
foi directamente concebido para situações que, pela sua natureza, possuem uma
configuração excepcional, em que se permite a um trabalhador aposentado voltar
a exercer funções e, no exercício destas, acumular a pensão que vinha auferindo
e uma parcela do vencimento correspondente às novas funções.
Antes com ele se pretendeu designadamente
evitar, como resulta da discussão parlamentar referida no relatório do Acórdão
n.º 411/99, que, no cômputo da pensão de aposentação que um trabalhador receba
ao concluir a sua vida laboral, existam parcelas de tempo de serviço que não
sejam contabilizadas. Trata‑se, portanto, de um princípio que não foi gizado
para situações, como a que ora se nos depara, em que é concedida ao trabalhador
uma opção que se situa à margem da lógica global do sistema e que representa
inequivocamente um plus em face dessa lógica, e sim para aquelas situações (a
que chamaríamos comuns, ou regra) em que, ao calcular a pensão de um trabalhador
no termo do seu período normal de trabalho, há que considerar diversos
sub-períodos em que aquele cotizou para distintos sistemas de pensões. Em tal
caso, o preceito constitucional em questão impede que no cômputo do tempo de
trabalho a proceder seja desconsiderado qualquer daqueles sub-períodos, assim se
realizando, para efeitos de cálculo de pensão, o aproveitamento integral do
tempo de trabalho.
Na hipótese excepcional que nos ocupa, tal
objectivo há-de ter‑se por realizado quando ao trabalhador é atribuída uma
primeira pensão de aposentação. Simplesmente, este resolve depois regressar à
vida activa, o que lhe é permitido fazer com manutenção da anterior pensão. E,
findo este outro ciclo, o tempo de trabalho prestado é (nos termos dos n.ºs 3 e
4 do artigo 80.º) susceptível de ser considerado numa actualização da anterior
pensão, assim se realizando o aproveitamento, ainda que em moldes diferenciados,
do tempo de trabalho correspondente ao segundo ciclo laboral. Mas, como se
disse, este sistema comporta uma alternativa, que redunda num plus. Tal plus
corresponde à concessão ao trabalhador da possibilidade de, caso assim o
entenda (decerto que porque isso lhe seja mais favorável), optar por um
diferente sistema de cálculo de pensões que o leva a prescindir, de forma
voluntária, sublinhe‑se, da relevância do tempo de serviço prestado
anteriormente à primeira aposentação.
Em face disso, seria anómalo - ou, no mínimo,
paradoxal - que, em nome da obediência a um princípio constitucional de cariz
protectivo, se viesse a eliminar o relevo reconhecido à autonomia da vontade do
trabalhador quando esta surge ordenada para a obtenção de um regime que lhe é
presumivelmente mais favorável (pois só assim se explica, aparentemente, que o
interessado opte pela segunda aposentação).
Como atrás se explicitou (supra, n.º 6), o
Estatuto da Aposentação faz associar consequências jurídicas distintas às
diversas opções feitas pelo trabalhador: num caso, a revisão da primeira pensão
de aposentação (“melhorada” através da ponderação prevista no n.º 4 do artigo
80.º); no outro caso, além do recebimento de uma pensão seguramente mais elevada
que a correspondente à “primeira aposentação”, a ausência de contabilização do
tempo de serviço prestado anteriormente a esta primeira aposentação.
Interessa ainda recordar que, como também já se
assinalou, o trabalhador aposentado que inicie – voluntariamente, repete‑se –
um novo “ciclo de vida laboral” mantém, durante esse período, a pensão que
auferia em virtude de ter exercido funções num “primeiro ciclo de vida
laboral”.
Há que assinalar, desde logo, que existem, por
assim dizer, dois “momentos volitivos” nesta situação: o primeiro, consistente
no reingresso na vida activa, com manutenção da pensão auferida e,
parcialmente, com acumulação da remuneração correspondente às novas funções; o
segundo momento, correspondente à opção em sede de cálculo da pensão de
aposentação, por uma ou outra das soluções que a lei permite.
Na lógica do sistema – e com aproveitamento
integral do tempo de trabalho –, a solução‑regra é, quanto a este último, a
correspondente à “primeira alternativa”: o trabalhador aposentado que reiniciou
funções terá, no final, direito a uma pensão em que são contabilizados em
certos termos o tempo de serviço e os descontos efectuados no “segundo ciclo” da
sua vida activa.
Simplesmente, entendeu o legislador permitir –
acrescentar como alternativa a esta possibilidade – uma situação diversa, à
margem da lógica global do sistema, concedendo ao trabalhador a faculdade de
optar por uma aposentação baseada apenas no tempo de serviço correspondente ao
“segundo ciclo” de vida laboral. Tal opção será feita pelo trabalhador, ao que
tudo indica, dentro de uma lógica de “escolha racional”, se tal corresponder a
uma melhoria – da sua situação – em relação ao outro termo da alternativa.
Por outras palavras, o aposentado que reinicie
funções – no exercício das quais, reitera‑se, continua a auferir a pensão
correspondente ao “primeiro ciclo de vida laboral” - é confrontado com a
seguinte alternativa: optar por uma fórmula de cálculo de pensões que respeita o
princípio do aproveitamento integral do tempo de serviço e que incorpora, no
cálculo da pensão, o “segundo ciclo” da sua actividade laboral; escolher apenas
a pensão correspondente ao exercício de funções neste “segundo ciclo” de vida
laboral, na qual já não é contabilizado o tempo de serviço correspondente ao
“primeiro ciclo”.
No regime do segundo termo desta opção – cuja
existência não decorre de qualquer imposição constitucional, em particular do
n.º 4 do artigo 63.º da CRP – ocorre uma espécie de neutralização do tempo de
serviço prestado anteriormente à primeira aposentação (e que foi contabilizado
no cômputo da pensão que a esta corresponder). A este respeito, o n.º 2 do
artigo 80.º do Estatuto da Aposentação é taxativo: “não será de considerar para
cômputo da nova pensão o tempo de serviço anterior à primeira aposentação”.
A questão que se coloca traduz‑se em saber se,
em nome do respeito pelo preceituado no n.º 4 do artigo 63.º da CRP, o
legislador fica de todo em todo inibido de consagrar, nos termos em que isso
resulta do artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto da Aposentação, medidas de
conteúdo aparentemente mais favorável ao trabalhador que, ademais, só são
aplicáveis por sua iniciativa ou com o seu acordo.
Ora, a tal respeito, entende‑se que ao
legislador não está vedado proceder assim e consideramos, por isso mesmo, não se
justificar (particularmente, como aqui sucede, em sede de fiscalização
abstracta, na qual as normas objecto são encaradas na sua mais ampla
potencialidade interpretativa e não, como acontece na fiscalização concreta, já
moldadas por uma determinada interpretação), a inviabilização de um regime como
o decorrente do artigo 80.º do Estatuto da Aposentação, nas duas opções dele
resultantes.
Na verdade, o legislador, através do quadro
normativo ora em análise, permite ao aposentado: (i) voltar a exercer funções;
(ii) cumular a pensão que auferia com o vencimento correspondente às novas
pensões; e, enfim, (iii) optar, se acaso entender que isso lhe é vantajoso, por
uma pensão calculada apenas com base no tempo de serviço prestado no “segundo
ciclo” de vida laboral.
Perante este cenário, entende‑se que o respeito
pelo princípio constitucional do aproveitamento integral do tempo de serviço não
impede o legislador de estabelecer uma possibilidade que depende de uma escolha
do trabalhador e que lhe é mais favorável do que aqueloutra que, essa sim, se
refere (e dá pleno cumprimento) ao princípio consignado no n.º 4 do artigo 63.º
da CRP. Pois, como se afirmou, o que se pretendeu, com a consagração deste
princípio pela Lei Constitucional n.º 1/89, foi impedir que, nas situações
comuns, existissem parcelas da vida activa dos trabalhadores que, no final, não
fossem contabilizadas para efeitos de cálculo do montante da pensão
(estipulando‑se, por exemplo, que o tempo de serviço no sector privado não
contaria para aqueles que se aposentassem pelo exercício de funções públicas).
Mas afigura‑se não se ter querido impedir que, em situações de todo em todo
excepcionais, se concedesse ao trabalhador a faculdade de escolher uma solução
mais vantajosa, ainda que com “perda” ou “inutilização” de anos de serviço, por
tal não ser requerido pela ratio da norma em questão.
Trata‑se, portanto – e esta é a conclusão a que
se chega –, com o regime decorrente do artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do Estatuto da
Aposentação, de oferecer uma outra alternativa, para além daquela que satisfaz
integralmente o “princípio do aproveitamento integral do tempo de trabalho”. A
norma em causa, entendida com este sentido, não fere esse princípio
constitucional.
Anote‑se, lateralmente, que o invocado Acórdão
n.º 411/99 recaiu sobre realidade distinta da ora em causa. Tratava‑se de
processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, em que o Tribunal
Constitucional foi chamado a pronunciar‑se sobre a conformidade constitucional
da interpretação, acolhida na decisão judicial então recorrida, da norma do
artigo 80.º, n.º 2, do Estatuto da Aposentação, na redacção anterior à Lei n.º
30‑C/92, interpretação essa segundo a qual o requerimento de uma segunda pensão
extinguia ope legis o direito a auferir a primeira, sem que ao interessado fosse
facultada a alternativa de requerer a “revisão” desta tendo em conta o segundo
período de exercício de funções. Nessa interpretação, julgada inconstitucional
pelo tribunal recorrido e pelo Tribunal Constitucional, nenhum dos termos da
alternativa facultada ao interessado assegurava a relevância integral do tempo
de serviço prestado. Diversamente, no presente processo, atendendo decisivamente
às alterações introduzidas pela Lei n.º 30‑C/92, o regime‑regra assegura o
respeito do princípio consagrado no n.º 4 do artigo 63.º da CRP, e a
alternativa que é facultada ao interessado, embora não acate em rigor esse
princípio, só será, naturalmente, por ele utilizada se se revelar mais favorável
do que aquele primeiro regime.
IV – Decisão
9. Em face do exposto, acorda‑se em não
declarar a inconstitucionalidade das normas do artigo 80.º, n.ºs 1 e 2, do
Estatuto da Aposentação, aprovado pelo Decreto‑Lei nº. 498/72, de 9 de Dezembro,
na redacção da Lei n.º 30‑C/92, de 28 de Dezembro.
Lisboa, 21 de Junho de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Paulo Mota Pinto
Bravo Serra
Benjamim Silva Rodrigues
Gil Galvão
Maria João Antunes
Vítor Gomes
Maria Fernanda Palma (Vencida nos termos da declaração de voto junta)
Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão por discordar da decisão do Tribunal
Constitucional, pelas razões seguintes.
Assim, entendo, tal como o Provedor de Justiça, que o artigo 80º, nºs 1 e 2, do
Estatuto da Aposentação contradiz o artigo 63º, nº 4, da Constituição, do qual
resulta que no cálculo das pensões de velhice e invalidez seja contabilizado
todo o tempo de trabalho, mesmo que prestado em diferentes regimes. E considero
também que aqueles preceitos contrariam o princípio do aproveitamento total do
tempo de serviço prestado pelos trabalhadores.
A minha convicção não foi enfraquecida pela argumentação do Acórdão que assenta
na ideia de que, compreendendo a lei uma faculdade de opção entre duas hipóteses
de aposentação (para trabalhadores que exerçam cargos distintos e que obtiveram
direito à aposentação no fim do primeiro ciclo de trabalho e de contribuições) e
respeitando uma dessas hipóteses o princípio do aproveitamento total do tempo de
serviço prestado, tanto bastará para estar cumprida a imposição constitucional.
Uma tal argumentação admite, quanto a mim, duas coisas dificilmente
sustentáveis. Em primeiro lugar, que a lei possa oferecer como opção uma fórmula
para aposentação que não cumpre as imposições constitucionais, funcionando,
assim, as referidas imposições como um modo supletivo de regulamentação de que
todos se poderiam desembaraçar em certas circunstâncias; em segundo lugar, o
Acórdão pressupõe que o trabalhador pode ter vantagens em optar por uma pensão
que não contabilize todo o tempo de serviço prestado, justificada pelo cargo
exercido já aposentado. Ora, uma tal “vantagem”, sem dúvida matematicamente
concebível, só existiria à custa de uma ficção de resultado empobrecedor
derivada da imputação do tempo de serviço prestado após a primeira aposentação
na base de cálculo dessa primeira pensão. Deste modo, um trabalhador que opte
pela segunda pensão sem a contagem integral do tempo de serviço teve de se
confrontar com o resultado economicamente diminuído da contabilização total do
tempo de serviço relativamente a uma pensão de aposentação fundamentada no
primeiro ciclo produtivo e contributivo.
A interpretação da Constituição como se o princípio da contagem integral do
tempo de serviço não se relacionasse com a verdadeira carreira contributiva
corresponde, no meu parecer, a uma leitura minimalista e restritiva do texto
constitucional. Este pretende, na verdade, que todo o tempo de serviço, mesmo
que prestado em diferentes actividades, seja contabilizado no cálculo das
pensões a que o trabalhador tenha direito. Ora, como se pressupõe, na presente
legislação, que se justifique uma pensão pelas funções que o trabalhador prestou
no segundo ciclo, mantendo‑se, naturalmente, o princípio da impossibilidade de
acumulação de pensões, cria‑se uma situação legal em que é reconhecido um
direito a uma pensão sem respeito pela contagem integral do tempo de serviço.
Não há, neste sistema, qualquer plus, como se afirma no Acórdão, isto é, um
acréscimo de direitos, mas antes uma fórmula que não considera a imputação de
todo o tempo de serviço no direito adquirido à obtenção de uma pensão de
aposentação.
A fórmula legal impõe que a pensão com contagem integral do tempo de serviço
seja calculada, em função do sector de actividade e não independentemente dele,
como prescreve a Constituição. Com efeito, só o tempo prestado no primeiro
sector de actividade absorve o tempo de serviço posteriormente prestado,
emprestando‑lhe ultra‑activamente a base de cálculo. É, pois, na desadequação
entre o tempo de serviço e a base de cálculo que se trai a verdade do esforço
contributivo e a justiça na atribuição da pensão, uma e outra conjugadamente
impostas pela citada norma constitucional.
Maria Fernanda Palma