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Processo nº 416/2006
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Janeiro de 2006, de
fls. 33, foi negado provimento ao recurso que A., arguido no processo comum
colectivo n.º 518/04.OGAVNO-A, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Ourém,
interpusera da decisão de fls. 26, que indeferira o requerimento que formulara
com o objectivo de obter a substituição da prisão preventiva em que se encontra
por 'internamento em estabelecimento adequado para tratamento da
toxicodependência' com vigilância electrónica, nos seguintes termos:
'Como é consabido a prisão preventiva é a última das medidas e só deve ser
decretada quando nenhuma das outras, menos gravosas, se mostrem suficientes para
acautelar as finalidades da investigação e a prevenção de futuros crimes – artº
28º n.º 2 da CRP e artº 193º n.º 2 do CPP – sendo também certo que a prisão
preventiva não é um adiantamento da pena, embora nela possa ser descontada, mas
tão só uma medida cautelar que visa acautelar as finalidades apontadas.
A prisão preventiva a que o ora recorrente foi submetido foi decretada porque
não só se indiciava a sua prática de vários crimes dolosos de furto cuja pena
máxima abstracta é superior a três anos, preenchendo-se assim o requisito
objectivo para a decretação desta medida – artº 202º do CPP – mas também porque
se considerou que atendendo à reiteração dos crimes praticados e à
toxicodependência do arguido havia perigo de continuação da actividade criminosa
e que a gravidade e a reiteração da prática dos mesmos crimes, a sua libertação
causaria insegurança, intranquilidade e alarme social – circunstâncias que
preenchem os requisitos de carácter subjectivo necessários à aplicação da
referida medida – artº 204º do CPP.
Como bem nota o Ex.mo PGA, o propósito manifestado pelo arguido não é
incompatível com a medida de coacção a que está sujeito, pois que, mesmo
encontrando-se detido, pode, como até aqui, submeter-se a tratamento da
toxicodependência, deslocando-se às consultas do C.A.T.
Por outra parte, o propósito de se submeter a tratamento do toxicodependência
não tem a virtualidade de atenuar as exigências cautelares que determinaram a
aplicação da mais gravosa das medidas coactivas, sendo certo que nesta altura em
que já foi condenado em pena de prisão de sete anos, decisão confirmada pelo
Tribunal da Relação, a proporcionalidade e adequação da medida coactiva
parece-nos evidente – artº 193º n.º 1 do CPP.'
Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional, 'por no seu
entendimento a interpretação dada naquele acórdão ao artº 202º do C. P. Penal
violar os princípios de adequação e proporcionalidade, consagrados no artº28º-!,
(…)'.
O recurso não foi admitido, pelo despacho de fls. 40, 'porquanto o recorrente
não aponta em concreto qual a interpretação da norma do art. 28º n.º 1 da
Constituição que foi violada'.
Veio então o arguido reclamar deste despacho, indicando então que recorria ao
abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro, o que não constava do requerimento de interposição de recurso, e
concluindo a reclamação da seguinte forma:
'1. No presente recurso aprecia-se a inconstitucionalidade da norma do artº 202º
do C.P.Penal, por a interpretação que lhe é dada no Acórdão recorrido violar os
princípios da adequação e da proporcionalidade consagrados no artº 28-n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa, como inequivocamente resulta do
requerimento de interposição de recurso.
2. A decisão de fls. 178 [40] ofende assim o disposto no artº 75º-A da Lei 28/82
de 15 de Novembro'.
2. Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da
improcedência da reclamação, por não ter sido suscitada, 'nem «durante o
processo», nem no âmbito do requerimento de interposição de recurso para este
Tribunal Constitucional, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa,
susceptível de constituir objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta:
o recorrente não controverte qualquer «critério normativo», de índole genérica,
subjacente ao preceito legal indicado, mas o concreto e casuístico juízo
subsuntivo, ligado ao preenchimento, na específica e individual situação dos
autos, da «fattispecie» que condiciona a aplicação ao arguido da medida de
coacção da prisão preventiva'.
3. A reclamação é, na verdade, improcedente.
Como resulta da Constituição e da lei e o Tribunal Constitucional tem
repetidamente afirmado, o recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do
nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se
a que este Tribunal aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de
interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão
recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante
o processo” (al. b) citada), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim
resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo
Tribunal (cfr. a título de exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96,
publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro
de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
Ora, no caso, o ora reclamante apenas questiona a aplicação do artigo 202º do
Código de Processo Penal – e, aliás, de outros preceitos deste mesmo Código,
apontados no requerimento de interposição de recurso – ao seu caso concreto,
nunca identificando qualquer norma ou qualquer interpretação normativa daquele
preceito susceptível de ser apreciada no âmbito do recurso que interpôs. Não o
fez no requerimento de interposição de recurso nem, agora, na reclamação contra
o despacho de não admissão do recurso.
Muito diferentemente, explica por que razão é que as particularidades do caso
exigiriam, em seu entender, a substituição da medida de coação decretada por
outra.
Nada impede que apenas se invoque a inconstitucionalidade de uma certa
interpretação ou dimensão normativa de um determinado preceito. Nesse caso,
todavia, não basta, para definir o objecto de um recurso de constitucionalidade,
afirmar que se está a questionar a interpretação com que esse preceito foi
interpretado pela decisão de que o recurso é interposto.
Como se escreveu, por exemplo, no acórdão nº 178/95 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 30º, 1118): “Tendo a questão de constitucionalidade que ser
suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão nº 269/94,
Diário da República, II Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se
questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique
esse sentido (essa interpretação) em termos que, se este tribunal o vier a
julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir,
por forma a que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os
outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral, saibam qual o
sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a
Lei Fundamental”.
Caso contrário, estar-se-ia, não só a transferir para o Tribunal Constitucional
o ónus de definir o objecto do recurso, mas também a tornar impossível a
verificação do preenchimento dos respectivos pressupostos de admissibilidade –
em particular, do ónus de suscitar a inconstitucionalidade 'durante o processo'
(al. b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82) e a aplicação da norma
impugnada, como ratio decidendi, pela decisão recorrida (artigo 79º-C da mesma
lei).
Nestes termos, indefere-se a reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício