Imprimir acórdão
Processo n.º 693/04
1ª Secção
Relator: Conselheiro Pamplona de Oliveira
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos autos de expropriação por utilidade pública, em que é
expropriante o INSTITUTO DE ESTRADAS DE PORTUGAL e expropriados A. e B..,
decidiu a Relação do Porto confirmar a sentença recorrida proferida no Tribunal
Judicial de Gondomar.
É desse acórdão que recorre o Ministério Público, nos termos da alínea a) do n.º
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo:
O Ministério Público, notificado do teor do douto acórdão proferido a 04-05-24
nos autos de apelação à margem identificados, em que é apelante o IEP, sendo
apelados A. e B.vem, nos termos do art. 280°, nºs 1, al. a) e n.º 3, da
Constituição da República Portuguesa, do mesmo interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, nos seguintes termos:
1º - O recurso é interposto ao abrigo dos Arts. 70°, n.º 1, al. a) e 72°, n/s 1,
al. a) e 3, da Lei n.º 28/82, de 15.11, porquanto,
2º - O douto acórdão recorrido recusou, implicitamente, aplicar a norma do art.
24°, n.º 5, do Código das Expropriações, aprovado pelo Dec. Lei n.º 438/91, de
09/11,
3º - Com o fundamento de que o art. 24°, n.º 5, do Código das Expropriações de
1991 é inconstitucional quando interpretado por forma a excluir da classificação
de 'solo apto para construção' os terrenos integrados na RAN, não desafectados,
expropriados para nele se construir uma estrada, por violação do direito de
propriedade privada e do direito a justa indemnização em caso de expropriação,
previstos no art. 62° da Constituição da República Portuguesa.
4º - O Tribunal Constitucional, por douto Acórdão n.º 172/02, proferido a
02/04/17, no Proc. n.º 227/01 – 2ª Secção, decidiu: 'Não julgar inconstitucional
a norma do n.º 5 do artigo 24° do Código das Expropriações vigente, interpretada
por forma a excluir da classificação como 'solo apto para a construção' solos
integrados na Reserva Agrícola Nacional expropriados para implantação de vias de
comunicação.' (no mesmo sentido, quanto a solos integrados na Reserva Agrícola
Nacional expropriados para implantação de escolas, o douto Acórdão n.º 557/03,
proferido a 03/11/12, no Proc. n.º 235/03 – 3ª Secção, ambos in
www.tribunalconstitucional.pt).
Foi, no entanto, proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, com o
seguinte fundamento:
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto ao abrigo
da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, como o presente, tem como
pressuposto a desaplicação de uma norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade na decisão recorrida. No presente caso, a decisão
recorrida não aplicou o disposto no n.º 5 do artigo 24º do Código das
Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91 de 9 de Novembro, que estipula
ser “equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não
possa ser utilizado na construção”.
Importa, no entanto, averiguar se o Tribunal desaplicou a norma com fundamento
em inconstitucionalidade apesar de a julgar aplicável ao caso concreto, ou se,
pelo contrário, não aplicou a norma por ter considerado não ser aplicável ao
caso em julgamento.
[...]
Do que resulta da leitura desta decisão é que a Relação do Porto concluiu, face
às circunstâncias do caso concreto, dever classificar-se a parcela expropriada
como solo apto para construção.
Verifica-se, assim, que a não aplicação da norma do n.º 5 do artigo 24º do
Código das Expropriações não teve como fundamento a sua inconstitucionalidade; a
não aplicação da norma decorreu da qualificação da parcela como solo apto para
construção segundo os critérios estabelecidos no n.º 2 do artigo 24º do Código
das Expropriações, que determinariam o afastamento da doutrina fixada no n.º 5
do mesmo artigo.
Deve, assim, concluir-se que se não verifica o pressuposto essencial deste
recurso, que consiste na recusa de aplicação de uma norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade.
Pelo exposto decide-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da LTC,
não conhecer do objecto do recurso.
2. Contra esta decisão reclama o representante do Ministério
Público neste Tribunal, dizendo:
1° - No requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta, o
representante do Mº Pº junto do Tribunal da Relação do Porto expressamente
salienta que a recusa de aplicação normativa em que se funda o recurso
obrigatório que interpõe é implícita, pressupondo necessariamente a qualificação
da parcela expropriada como 'terreno apto para construção' um juízo de
desconformidade com a Lei Fundamental da norma constante do artigo 24°, nº 5, do
Código de Expropriações.
2° - Na verdade, situando-se a parcela expropriada “área classificada como
Reserva Agrícola Nacional tanto no plano de Urbanização de S. Cosme, como no
plano Director Municipal” é evidente que a referida norma legal - ao prescrever
que é equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não
possa ser utilizado na construção - foi necessariamente desconsiderada, com o
argumento, aliás claramente expressado, de que o regime impeditivo da
qualificação dos solos, nela contido, seria materialmente inconstitucional, por
violação do artigo 62° da Constituição.
3° - Deste modo, no 'iter' lógico-jurídico do acórdão recorrido, a ponderação
concreta e casuística das reais e 'naturalísticas' aptidões edificativas da
parcela em causa (decorrente da sua localização e vizinhança, nomeadamente) tem
como pressuposto prévio e indispensável a desconsideração dos limites de
natureza normativa à edificabilidade, decorrentes da lei ou regulamento, que
incidiam sobre o prédio expropriado, inserido na RAN .
4° - A ponderação, em concreto, das reais e naturalísticas aptidões edificativas
do terreno expropriado - e a consequente 'qualificação' da parcela como solo
apto para construção - não pode, deste modo, desligar-se do - juízo de
inconstitucionalidade material previamente formulado quanto à norma que - por
razões legais e regulamentares - obstava à qualificação do terreno como 'apto
para construção', apesar de, quanto a ele, se verificarem em concreto, os
critérios estabelecidos no nº 2 do artigo 24° do Código das Expropriações.
5° - Dito por outras palavras, a ponderação das reais e naturalísticas aptidões
edificativas da parcela expropriada pressupôs, na lógica do acórdão recorrido, a
desvalorização dos condicionamentos à construção urbana que decorreriam da
respectiva inserção na RAN - sendo precisamente nesse ponto que se verificou uma
recusa implícita de aplicação da norma especificada como integrando o objecto do
recurso.
6° - Pelo que se sustenta a verificação dos pressupostos do recurso
obrigatoriamente interposto -pelo Ministério Público, o qual deverá prosseguir
os seus termos.
3. Importa decidir.
Radica a reclamação em análise na questão de saber se no acórdão da Relação do
Porto foi, ou não foi, desaplicada – com fundamento em inconstitucionalidade – a
norma que constitui o objecto do recurso, contida no artigo 24° n.º 5 do Código
das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91 de 09 de Novembro.
Na decisão sumária em crise entendeu-se, em suma, que 'a não aplicação da norma
do n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações não teve como fundamento a
sua inconstitucionalidade', pois decorrera da qualificação da parcela como solo
apto para construção segundo os critérios estabelecidos no n.º 2 do artigo 24º
do Código das Expropriações, 'que determinariam o afastamento da doutrina fixada
no n.º 5 do mesmo artigo'.
Entende o reclamante, ao contrário, ser 'evidente' que a referida norma legal
foi desaplicada na decisão recorrida por ser 'materialmente inconstitucional,
por violação do artigo 62° da Constituição.'
Vejamos.
Na base do problema está a verificação dos pressupostos do recurso previsto na
alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, norma que
prevê o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais 'que
recusem a aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade'.
Ora, no caso em presença (como, aliás, reconhece o reclamante), não existe no
acórdão recorrido qualquer declaração expressa a afastar a aplicação da aludida
norma por motivo de inconstitucionalidade. Pode, é certo, suceder que a não
aplicação na decisão recorrida de uma determinada norma infra-constitucional
ocorra sem a dita declaração formal, embora resulte de um substantivo juízo de
incompatibilidade inconstitucional.
Nesses casos, o Tribunal tem decidido ser admissível o recurso interposto com
fundamento na alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, por, na verdade, se estar
perante um verdadeiro julgamento, implícito, de inconstitucionalidade normativa
(por exemplo, Acórdãos n.ºs 445/99, 687/99, 21/2001, 104/01, 212/01, 404/01,
285/02 e 281/03, todos disponíveis na página do Tribunal Constitucional em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ).
Conforme o Tribunal tem afirmado nessas circunstâncias, haverá então que
procurar na decisão recorrida o real fundamento da escolha e aplicação do regime
legal que constitui a ratio decidendi da solução perfilhada, pois, se se
concluir que a opção resultou do afastamento do regime jurídico em princípio
aplicável, mas recusado por ser incompatível com a Constituição, estará aberta a
possibilidade de conhecer do mencionado recurso previsto na já citada alínea a)
do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
Em suma, o critério que há-de orientar a tarefa de averiguar se na decisão
recorrida ocorreu, ou não, uma verdadeira desaplicação da norma com fundamento
em inconstitucionalidade e com virtualidade para permitir o aludido recurso
cinge-se, em primeiro lugar, a verificar se há uma declaração expressa de recusa
de aplicação da referida norma; não havendo essa declaração formal, importará
então saber se a decisão assentou numa norma que substancialmente foi
determinada por se ter afastado outra norma com fundamento na sua
inconstitucionalidade; e, finalmente, porque o recurso em causa é também um
recurso instrumental, há-de apurar-se se, tendo em conta a lógica fundamentadora
do julgado, a decisão não seria a mesma, ainda que o juízo de desaplicação da
norma não tivesse ocorrido.
Já vimos que não existe, no caso em análise, uma declaração formal de recusa de
aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, do n.º 5 do artigo 24º do
Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91 de 9 de Novembro, que
estipula ser “equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou
regulamento, não possa ser utilizado na construção”.
Importará, assim, apurar se o real fundamento da escolha do regime legal que
constitui a ratio decidendi da solução recorrida resultou do afastamento do
regime jurídico em princípio aplicável, mas recusado por ser incompatível com a
Constituição.
Na verdade, para que ocorresse a desaplicação da norma, seria imperioso que o
Tribunal tivesse, em primeiro lugar, dado como assente que a parcela deveria ser
submetida ao regime nela previsto, ou seja, que o terreno em causa não pudesse
ser utilizado na construção, em virtude de lei ou regulamento; todavia, o
tribunal não considerou que a hipótese prevista em tal norma estivesse
preenchida. Na verdade, a aplicação da norma ficou logo prejudicada em virtude
de se haver constatado que a parcela em causa, apesar de se incluir na reserva
agrícola nacional, era apta para a construção, embora condicionada, uma vez que
o respectivo Plano Director Municipal nela permitia construir até 'uma área
máxima de habitação de 200 m2 e a um número máximo de 2 pisos', tal como, aliás,
reconhece o Instituto das Estradas de Portugal, no recurso interposto para a
Relação.
Torna-se, assim, evidente, que, ao contrário do que afirma o Ministério Público,
a não consideração do disposto n.º 5 do artigo 24º do Código das Expropriações,
aprovado pelo Decreto-Lei 438/91 de 9 de Novembro, que estipula dever ser
“equiparado a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não
possa ser utilizado na construção”, tem a ver com as circunstâncias particulares
do caso concreto, pois, perante a constatação de que no terreno em causa era
permitida a construção, embora condicionada, nunca seria de aplicar a norma que
impunha a classificação de solo apto para outros fins.
Estamos, assim, perante um caso semelhante ao julgado pelo Acórdão n.º 281/03,
já citado, no qual se disse:
[...] Em conclusão: a não aplicação no caso dos autos da norma do n.º 5 do
artigo 24º do Código das Expropriações de 1991 (norma que, como ficou dito,
equipara a solo para outros fins o solo que, por lei ou regulamento, não possa
ser utilizado na construção) – e, consequentemente, a não aplicação do artigo
26º, n.º 1, do mesmo Código – decorre inevitavelmente da qualificação do terreno
como «solo apto para a construção». Na verdade, se o solo for qualificado como
«apto para a construção» (nos termos de alguma das alíneas do n.º 2 do artigo
24º do Código das Expropriações), não pode simultaneamente ser abrangido pela
disposição que «equipara a solo para outros fins o solo que, por lei ou
regulamento, não possa ser utilizado na construção» (nos termos do n.º 5 do
mesmo artigo 24º).[...]
4. Nestes termos, indefere-se a reclamação, mantendo a decisão
sumária de não conhecimento do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 8 de Junho de 2006
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria Helena Brito
Rui Manuel Moura Ramos