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Processo n.º 383/06
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. deduziu reclamação do despacho do Conselheiro Relator do
Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso que pretendia interpor
para o Tribunal Constitucional.
2. Resulta dos autos que:
2.1. Na 7ª Vara Criminal de Lisboa, foi o arguido A. condenado “como
autor de um crime de associação criminosa (p. e p. art.s 89º, n.ºs 1 e 3, da Lei
15/2001 de 05/06 e 34º, n.ºs 1 e 3 do DL 376-A/89 de 25/10), na pena de 5 anos
de prisão; como co-autor de um crime de contrabando qualificado (art.s 21º e
23º, al.s a), c), d) e h), do DL 376-A/89 de 25/10), na pena de 3 anos de prisão
e 200 dias de multa à taxa diária de € 498,80 (= € 99.760,00) e, como co-autor
de um crime de corrupção activa (art. 374º, n.º 1, do CP), na pena de 5 anos de
prisão; e, em cúmulo, na pena unitária de 8 anos de prisão e 200 dias de multa
(= € 99.760)”.
2.2. Tendo sido interposto recurso pelo arguido, o Tribunal da
Relação de Lisboa concedeu parcial provimento ao recurso, reduzindo a pena
correspondente ao crime de corrupção a 4 anos de prisão e a correspondente ao
concurso criminoso a 7 anos e seis meses de prisão.
2.3. Da decisão da Relação interpôs A. recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça.
2.4. Por acórdão de 7 de Julho de 2005, o Supremo Tribunal de Justiça
decidiu rejeitar, “por inadmissibilidade e/ou manifesta improcedência”, o
recurso interposto por A., fundamentando assim a sua decisão (fls. 13 e
seguintes dos presentes autos de reclamação).
“[…]
8.1. Não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas
relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior
a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções (art. 400º, n.º 1, al. e),
do CPP).
8.2. Também não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em
recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância, em processo por
crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em
caso de concurso de infracções (art. 400º, n.º 1, al. f), do CPP).
8.3. Mas, tendo a «pena aplicável» ao concurso (cfr. art. 77.2 do Código Penal)
como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários
crimes e como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários
crimes, o recurso (até por força do disposto no art. 399º do Código de Processo
Penal) já será admissível – no tocante à medida da pena conjunta – se a pena
aplicável ao concurso exceder, salvo dupla conforme, 5 anos de prisão ou
exceder, mesmo nessa hipótese, 8 anos de prisão.
8.4. Esta interpretação do art. 400.1.e e f do CPP não só leva em conta que «no
concurso de infracções, um caso especial de determinação da pena, a pena
aplicável [ao concurso] tem como limite máximo a soma das penas concretamente
aplicadas aos vários crimes (artigo 77° do CP)» como impede que «um tribunal da
Relação possa condenar por decisão irrecorrível numa pena [conjunta] de [8 a] 25
anos de prisão, apesar de nenhum dos crimes do concurso ser punível com pena de
prisão superior a 5 [ou 8] anos».
8.5. No caso, o recurso, quanto aos crimes conexos e suas penas, é inadmissível
e, quanto à pena conjunta, manifestamente improcedente. No todo, enfim, é de
rejeitar (art. 420.1 do CPP).
[…].”.
2.5. Requerida a aclaração deste acórdão de 7 de Julho de 2005 (fls.
20 e seguintes), e arguida a respectiva nulidade (fls. 22 e seguintes), foram,
por acórdão do Supremo de 3 de Novembro de 2005, as correspondentes reclamações
indeferidas (fls. 25 e seguintes).
2.6. A. requereu posteriormente a anulação do acórdão final global
(fls. 29 e seguintes).
Interpôs simultaneamente recurso do mesmo acórdão para o Tribunal
Constitucional (fls. 32 e seguinte).
Na sequência de um acórdão do Supremo de 19 de Janeiro de 2006, que
indeferiu o referido pedido de anulação, A. interpôs novo recurso para o
Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls. 34 e seguinte):
“1. A alínea do n.º 1 do art.70°, ao abrigo da qual o recurso é interposto é a
al. b);
2. As normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie são as dos arts.
a) 399°,
b) 400° n.º 1 al. e ),
c) 400° n.º 1 al. f),
d) 420° e
e ) 420° n.º 4, e ainda
f) 185° n.º 1, todos do Cód. Proc. Penal.
3. As normas da nossa Lei Fundamental que se consideram violadas com a
interpretação e aplicação que foram feitas daqueles incisos legais são:
a) 32° n.º 1, e
b) 208° n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
4. As peças processuais nas quais o recorrente já suscitou a questão da
inconstitucionalidade, foram as seguintes:
a) Requerimento de arguição de nulidades/reclamação do aliás douto acórdão
proferido no Venerando Supremo Tribunal de Justiça, nos presentes autos, em 7 de
Julho de 2005;
b) Requerimento para aclaração do mesmo e aliás douto acórdão;
c) Motivação do recurso interposto para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça
do aliás douto acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação de Lisboa;
d) Motivação do recurso interposto para este último Venerando, Tribunal do aliás
douto acórdão proferido na 1ª instância.
[…].”.
2.7. O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal de Justiça, decidiu
não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos (fls.
36 e seguinte):
“[…]
Pretendem os arguidos […] e A. – através dos seus requerimentos de 09FEV06 –
recorrer constitucionalmente dos acórdãos de 07JUL05 (que rejeitou, por
inadmissibilidade e manifesta improcedência, os recursos por eles opostos ao
acórdão da Relação de Lisboa que, em 29ABR04, fixara respectivamente em 8 anos
de prisão e em 7,5 anos de prisão as penas conjuntas correspondentes aos
concursos criminosos por que haviam sido julgados, em 25MAR03, na 7ª Vara
Criminal de Lisboa), de 03NOV05 (que indeferiu o seu pedido de aclaração do
acórdão anterior) e de 19JAN06 (que indeferiu igualmente o seu pedido de
anulação dos dois acórdãos precedentes). O recurso para o Tribunal
Constitucional foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da
LTC, nele se tendo indicado, como «normas cuja inconstitucionalidade se pretende
que o tribunal aprecie», as dos art.s 399º e 400.1 e) e f), 420.1 e 4 e 185.1 do
CPP.
Quanto à norma do art. 185.1 («Apreensão de coisas perecíveis, perigosas ou
deterioráveis»), nenhuma das decisões recorridas a aplicou.
Quanto às dos art.s 400.1 e) e f), «ao Tribunal Constitucional não compete
apreciar a correcção da interpretação do direito ordinário feita pela decisão
recorrida, mas tão-só apurar se essa interpretação, que recebe como um dado da
questão, é, [ou] não, conforme às normas e princípios constitucionais». A esse
respeito, «tudo se passa» – no caso – «como se existisse uma norma legal que, de
forma clara e explícita, dissesse que não havia recurso para o STJ de acórdãos
das Relações que tivessem confirmado (mesmo que parcialmente, desde que in
melius) decisão da 1ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos
crimes, individualmente considerados, por que o arguido fora condenado não
ultrapassasse 8 anos de prisão». Ora, «à pergunta sobre se essa norma seria
inconstitucional, a resposta do Tribunal Constitucional tem sido – e continua
(…) a ser – negativa, pela elementar razão de que não é constitucionalmente
imposto, mesmo em processo penal, um terceiro grau de jurisdição» (TC 03JAN06,
relator Cons. Mário Torres, ac. n.º 2/06, proc. n.º 954/05-2).
E, enfim, quanto às do art. 420.1 e 4, o ora recorrente pretende ter invocado a
«questão» da sua (pretensa) inconstitucionalidade no requerimento de arguição de
nulidades.
Porém, o incidente de arguição de nulidades não é o momento processual próprio
para invocação de inconstitucionalidades. Nem poderá tolerar-se – como não se
tolerará agora – que tal incidente seja aproveitado como meio ínvio de
«preparar» um recurso constitucional fundado na aplicação, pela decisão
recorrida, de «norma cuja inconstitucionalidade haja sido [mas efectivamente o
não tenha] suscitada durante o processo» (art. 70.1.b da LTC).
De qualquer modo, e quanto à «aplicação e interpretação [do art. 420.1 do CPP],
quando permite uma apreciação sumária, sem audição do arguido, das pretensões
contidas no recurso», recorda-se aqui o que a esse respeito já se disse no
acórdão de 19JAN06: «É importante precisar que o que aqui se equaciona não é a
possibilidade de os tribunais superiores seleccionarem as causas que lhes são
submetidas mas sim um regime simplificado de decisão quando seja manifesto que o
recurso, por razões processuais ou de mérito, não pode proceder».
E o mesmo se dirá – repetindo o que já oportunamente se disse – quanto à alegada
inconstitucionalidade da norma do art. 420.4 do CPP: «Não só à rejeição do
recurso por manifesta improcedência corresponde, de preceito (art. 420.4 do
CPP), a condenação do recorrente em sanção processual de 3 e 10 UC
(independentemente dos requisitos exigidos, pelo art. 456.1 e 2 do CPC, para a
condenação em multa por litigância de má fé), como tal «manifesta improcedência»
– diversamente do que o reclamante entende – não tem a ver com os «casos de
inobservância de requisitos formais e adjectivos» e, menos ainda, com aqueles
«em que o recurso verse sobre a apreciação de matéria vedada ao STJ» (que serão
aqueles em que se «verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão
nos termos do art. 414.2» – art. 420.1, 2ª parte), mas antes, como no caso,
«quando seja manifesto que o recurso, por razões (...) de mérito, não pode
proceder».
Os recursos não são pois admissíveis quanto às inconstitucionalidades não
suscitadas durante o processo (art. 70.1.b da LTC), e, quanto às demais, é de
indeferir porque «manifestamente infundados»: «O requerimento de interposição de
recurso para o Tribunal Constitucional deve ser indeferido (...), no caso dos
recursos previstos nas alíneas b) e f) do n. º 1 do artigo 70º, quando forem
manifestamente Infundados» (art. 76.2 da LTC).
Acresce, em relação ao recorrente A., que já em 24NOV05 (fls. 17920 e ss.)
interpusera recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão final global».
Ora, tendo-o feito nessa data (por antecipação, já que […] na mesma data
«requereu a anulação do acórdão final global», e condicionalmente, prevenindo a
hipótese de o pedido de anulação vir – como veio em 19JAN05 – a ser indeferido),
não poderia fazê-lo agora (em 9FEV, à noite), de novo, depois de inadmitido
(nesse mesmo dia, de manhã) o requerimento anterior.
[…]
E indefiro, também, os recursos de constitucionalidade, de 9FEV06, dos cidadãos
[…] e A..
[…]”.
2.8. A. reclamou do despacho que lhe não admitiu o recurso para o
Tribunal Constitucional (fls. 2 e seguintes), nos seguintes termos:
“1. O ora reclamante havia apresentado a petição de recurso para o Alto Tribunal
Constitucional, indicando as seguintes normas cujas inconstitucionalidade
pretendia ver sindicada:
arts. 399°, 400º 1 e) e f), 420° 1 e 4 e 185º, 1, todos do CPP.
2. O Meritíssimo Senhor Conselheiro Relator apreciou, em primeiro lugar, este
último artigo, o qual, manifestamente, extravasava do contexto processual em que
foi indicado por mero lapso, já que o que se tinha pretendido era invocar o art.
188°. Tem pois toda a razão, quando afirma que nenhuma das decisões aplicou
norma sobre «Apreensão de coisas perecíveis, perigosa ou deterioráveis». Assim,
resta ao ora reclamante, nesta parte, conformar-se com a decisão, e confessar o
seu erro, que facilmente pode ser convolado de lapsus linguae em lapsus calami.
3. Passou depois o mesmo Ilustre Magistrado à análise do art. 400° 1 e) e f),
onde, salvo o sempre e muito devido respeito, agita o argumento do terror do 3°
grau (de jurisdição), defendendo a sonegação ao conhecimento do Tribunal
Constitucional da questão que se pretendia que fosse por este Alto Tribunal
apreciada, por isso que «... à pergunta sobre se essa norma seria
inconstitucional tem sido – e continua (...) a ser – negativa...», citando a
este propósito um aresto de que foi relator o Excelentíssimo Senhor Conselheiro
Mário Torres.
Contudo, este entendimento, vocacionado para, no limite, fundamentar a extinção
do Tribunal Constitucional, já que em todos os processos de apreciação da
constitucionalidade de interpretação e aplicação de normas se poderá agitar a
terrífica bandeira do 3° grau (de jurisdição), não é sustentável em face do
alegado e a alegar pelo ora reclamante, como se crê que irá ser reconhecido pela
serena e isenta lucidez deste Alto Tribunal.
4. No concernente aos meios «ínvios» a que mais uma vez, com uma insistência que
não pode deixar de ser menorizante da mandatária do ora reclamante, o que muito
se lamenta, até porque segundo um velho brocardo da praxe forense «nos Tribunais
a delicadeza nunca é demais», a apreciação feita sobre a indicação do art. 420°
1 e 4, omite o entendimento aceite pela mais recente Jurisprudência.
Acresce que é ininteligível o «distinguo» aludido sobre o poder de selecção de
causas por parte dos Tribunais superiores e o mero regime simplificado de
decisão. Conceitualmente, valorando referências subjectivas, concebe-se. Na
prática, é puramente temerário e aleatório.
O que pode transparecer deste argumento é, no fundo, uma aparência de quase
paternal protecção do STJ sobre o TC, que não quadra bem nem com os direitos do
arguido, nem com a dignidade deste Alto Tribunal.
O ora reclamante confessa que tem dificuldade em perceber que a declaração de
manifesta improcedência do recurso, por razões de mérito, possa ser emitida, sem
lhe ser dada a possibilidade de argumentar em sentido contrário. E que tal
declaração é sempre uma decisão infundamentada e uma petição de princípio. É um
precedente perigoso, até porque, quanto mais não seja, pode facilmente
confundir-se com o retorno ao princípio da oportunidade que, crê-se que há muito
tempo, cedeu perante o princípio da legalidade.
5. Sobre a indicação do art. 399º, tanto quanto se julga ter entendido, o aliás
douto despacho reclamado é pura e simplesmente omisso.
6. Refere-se ainda a impossibilidade legal do recurso interposto em 9 de
Fevereiro à noite pelo ora reclamante sobre a decisão tomada em 9 de Fevereiro
de manhã.
Com todo o maior respeito, desconhece o ora reclamante qualquer regulamentação
de prazo em horas dos recursos, apenas conhecendo a regulamentação de prazo em
dias. E não parece que o seu recurso tenha sido intempestivo por serôdio.
Para além do mais trata-se de questões e recursos diferentes, pois na verdade, o
ora reclamante tinha em apreciação no STJ dois recursos distintos em que
suscitava questões diversas, pelo que, apesar de não ter sido aceite um dos
recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, não fica o ora reclamante
impedido de recorrer de decisão que se encontrava em fase diferente e que
apreciara razões diferentes.
7. Acresce que está comprovado nos presentes autos que [o] ora reclamante
suscitou durante o processo inconstitucionalidades, nos momentos aliás indicados
no seu requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional.
Quanto [às] restantes inconstitucionalidades invocadas pelo ora reclamante e
identificadas no requerimento de arguição de nulidades, apenas foram invocadas
nessa fase porque se prendem com decisão também só proferida nesse momento, pelo
que o ora reclamante não podia invocá-las antes de ter sido proferida aquela
decisão.
8. Assim sendo, o ora reclamante requer que Vossa Excelência se digne ordenar
que o recurso interposto para este Alto Tribunal Constitucional seja admitido e
apreciado.
[…].”.
2.9. O despacho reclamado foi mantido, por despacho de fls. 8, nestes
termos:
“1. Mantenho o despacho reclamado (arts. 69º da LTC e 688.3 do CPC), com a nota
de que, quando nele se referiu «os arts. 400.1, e) e f)», se pretendia referir,
também, o art. 399º do CPP.
2. Notifique o MP para responder em 10 dias (art. 688.4 CPC).
3. Entretanto, certifique, por conta do reclamante, as peças de fls. 17792 e
ss., 17844 e ss., 17893 e ss., 17916 e ss., 17984 e ss., 18011/2 e 18029v e ss.
4. Oportunamente, devolva o processo principal à 1ª instância e remeta este
apenso ao Tribunal Constitucional.”.
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional emitiu parecer, do seguinte teor (fls. 39 v.º e 40):
“A presente reclamação – que apenas abrange a rejeição do recurso interposto
pelo requerimento de fls. 34 dos autos – carece obviamente de fundamento sério,
sendo idêntica à que é objecto do p. 382/06, da 1ª Secção.
Cumpre notar, desde logo, que o recorrente não cumpre minimamente o ónus de
delimitar, em termos inteligíveis, qual a específica interpretação ou dimensão
normativa dos preceitos legais «arrolados» como «inconstitucionais», e que
pretende controverter: não o faz manifestamente no requerimento de interposição
do recurso e continua a não o fazer no âmbito da presente reclamação,
desaproveitando, deste modo, a oportunidade de explicitar qual é, afinal, o
objecto normativo do recurso (bem sabendo que, na tramitação do processo de
reclamação, não cabe a prolação de «convite» para aperfeiçoar o dito
requerimento). Tal estratégia processual deficiente priva, em rigor, o recurso
do indispensável e verdadeiro objecto normativo, impedindo o Tribunal
Constitucional de saber quais são as questões sobre que deveria fazer incidir os
seus poderes cognitivos.
Acresce que se não mostra suscitada, durante o processo e em termos
processualmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa
(cfr. as conclusões do recurso para o STJ, transcritas a p. 17 dos autos), sendo
manifesto que a interpretação realizada pelo STJ, do disposto nos arts. 400º,
n.º 1, alínea e) e f) e 420º (incluindo o n.º 4) do CPP não pode seguramente
qualificar-se como constituindo «decisão surpresa», que, pelo seu carácter
«insólito» ou «imprevisível», dispensasse o recorrente do ónus de suscitação que
sobre si recaía.”.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Como sublinha o Ministério Público no seu parecer, a presente
reclamação é idêntica à que constitui objecto do processo n.º 382/06, desta 1ª
Secção. Nesse processo foi, no passado dia 10 de Maio, proferido o acórdão n.º
307/06, indeferindo a reclamação, nos seguintes termos:
“[…]
3.1. Cumpre decidir, começando por sublinhar que se a decisão do Tribunal
Constitucional revogar o despacho de indeferimento «faz caso julgado quanto à
admissibilidade do recurso» (n.º 4 do artigo 77º da LTC); tal determina que, ao
apreciar a reclamação, o Tribunal deva pronunciar-se não só sobre o específico
fundamento que motivou o despacho de não recebimento do recurso, mas sobre a
verificação de todos os demais pressupostos exigidos pelo tipo de recurso
interposto.
3.2. Deve ter-se em atenção, depois, que o reclamante se conformou com o
despacho reclamado na parte em que decidiu não admitir, como objecto do recurso,
norma constante do artigo 185º n.º 1 do Código de Processo Penal, pelo que não é
agora oportuno tratar desta matéria.
3.3. De seguida, caberá dizer – porque o reclamante em certa medida questiona na
reclamação esta matéria – que devendo o tribunal recorrido «apreciar a admissão»
de recurso de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 76º n.º 1 da LTC, não
lhe está vedado poder indeferir o requerimento de interposição do recurso,
interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, por motivo de
manifesta improcedência, conforme está expressamente previsto no n.º 2 do artigo
76º da mesma LTC; esta solução, que constitui um afloramento da genérica
proibição de praticar actos processuais inúteis, não traduz qualquer compressão
intolerável no direito do recorrente, pois tal decisão pode ser impugnada (como
efectivamente aconteceu) perante o próprio Tribunal Constitucional – n.º 4 do
artigo 76º da LTC.
Não pode, por isso, afirmar-se que ocorra sonegação da questão ao conhecimento
do Tribunal Constitucional, como infundadamente alega o reclamante.
4. À pretensão do reclamante opõe o Ministério Público um argumento
inultrapassável, ao afirmar, como acima se deixou transcrito, «que o recorrente
não cumpre minimamente o ónus de delimitar, em termos inteligíveis, qual a
específica interpretação ou dimensão normativa dos preceitos legais ‘arrolados’
como ‘inconstitucionais’, e que pretende controverter: não o faz manifestamente
no requerimento de interposição de recurso e continua a não o fazer no âmbito da
presente reclamação, desaproveitando, deste modo, a oportunidade de explicitar
qual é, afinal, o objecto normativo do recurso que pretende interpor (bem
sabendo que, na tramitação do processo de reclamação não cabe a prolação de
‘convite’ para aperfeiçoar o dito requerimento). Tal estratégia processual
priva, em rigor, o recurso de um verdadeiro objecto normativo, impedindo o
Tribunal Constitucional de conhecer quais as questões sobre que deveria fazer
incidir os seus poderes cognitivos».
Na verdade, exigindo-se, conforme jurisprudência constante e uniforme, que o
recorrente indique, no requerimento de interposição, qual a concreta dimensão
normativa impugnada, deve concluir-se que a mera indicação dos preceitos legais
impugnados não satisfaz este ónus do recorrente. Conforme se relata no Acórdão
n.º 39/2003, recordando o entendimento do Tribunal sobre o assunto:
«Como se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95, ‘Tendo a questão de
constitucionalidade que ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre
outros, o Acórdão nº 269/94, Diário da República, II Série, de 18 de Junho de
1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de
determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos
que, se este tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa
enunciar na decisão que proferir, por forma a que o tribunal recorrido que
houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os
operadores jurídicos em geral, saibam qual o sentido da norma em causa que não
pode ser adoptado, por ser incompatível com a Lei Fundamental’. Porém, in casu,
verifica-se que nem no requerimento de interposição do recurso nem na resposta
ao despacho de aperfeiçoamento – (...) – o recorrente identifica a exacta
dimensão ou interpretação normativa dos preceitos do Código de Processo Penal e
do Código de Processo Civil, por si referidos, cuja inconstitucionalidade
pretende ver apreciada, limitando-se a referir que tais preceitos são
inconstitucionais na interpretação que lhes é dada pelo Supremo Tribunal de
Justiça. Ora, tal forma de proceder não é suficiente para que se possa
considerar cumprido o ónus referido supra.
Efectivamente, pretender ver apreciada a inconstitucionalidade de um preceito na
interpretação normativa que lhe é dada por uma decisão judicial não é ainda
identificar essa interpretação normativa. Na verdade, ao limitar-se a remeter
para a ‘interpretação que lhes (aos preceitos) é dada pelo Supremo Tribunal de
Justiça’, o recorrente mais não está do que a transferir – de forma inadmissível
– para o Tribunal ad quem – no caso o Tribunal Constitucional – o ónus, que
sobre ele impende, de delimitar o objecto do recurso. Acresce que a não
indicação das exactas interpretações normativas dos preceitos referidos cuja
inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada coloca ainda o
Tribunal numa situação de verdadeira impossibilidade de verificar se se
encontram preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade do recurso que
pretendeu interpor, ou seja: (i) saber se o recorrente suscitou, durante o
processo, a inconstitucionalidade dessa dimensão normativa; (ii) saber se a
decisão recorrida utilizou, como ratio decidendi, a exacta dimensão normativa
cuja inconstitucionalidade foi suscitada. Por tudo o exposto, torna-se evidente
que não pode conhecer-se do objecto do recurso interposto pelo recorrente, por
falta dos seus pressupostos legais de admissibilidade».
Ora, os preceitos legais arrolados no requerimento de interposição do recurso
pelo reclamante comportam manifestamente diversas dimensões normativas, pelo que
se, por hipótese, fosse admitido este seu requerimento, o Tribunal ficaria
efectivamente sem saber qual o objecto do recurso.
Tal é o suficiente, sem que outros motivos devam a ser analisados, para concluir
pela falta de verificação dos pressupostos legais de admissibilidade do recurso
interposto.”.
É essa decisão que se reitera no presente processo. Pelos fundamentos
constantes do acórdão que acaba de se transcrever, conclui-se que o recurso de
constitucionalidade que o ora reclamante pretendia interpor não podia ser
admitido e, consequentemente, que a reclamação tem de ser indeferida.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal
Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades
de conta.
Lisboa, 17 de Maio de 2006
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos